Direito Penal

Análise do Momento Consumativo dos Crimes de Furto e de Roubo

 

O presente trabalho tem a difícil promessa de expor as diferentes formas de definir o momento consumativo dos mais importantes e corriqueiros delitos patrimoniais existentes no cotidiano forense. A dificuldade aqui proposta alcança divergências entre grandes nomes da doutrina penal, como também está presente nas mais altas cortes do poder judiciário brasileiro.

 

Os delitos de furto e roubo são ditos materiais, ou seja, somente devem ser considerados consumados quando, reunidos todos os elementos constitutivos do tipo penal incriminador, a conduta alcança lesionar o bem jurídico pretendido a ser protegido pela norma. Noutras palavras, o delito material é aquele que exige o resultado, por isso também é chamado de crime de resultado. O tipo penal incriminador descreve uma conduta e um resultado, sendo que este é exigido para ser considerado consumado o crime.

 

De outra forma, o delito formal é aquele em que o resultado é antecipado, pois o mesmo não é exigido para se considerar consumado o crime, isto é, praticada a conduta, o delito resta consumado. Embora o tipo penal incriminador descreva uma conduta e um resultado, bastaria aquela para que se pudesse considerar consumado o delito.

 

Ainda, é importante descrever os conceitos do delito consumado e do delito tentado, segundo o que preconiza o Código Penal, senão vejamos:

 

Art.14. Diz-se o crime:

Crime consumado

I consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; 

Tentativa

II tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Pena de tentativa

Parágrafo único – Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

 

O delito é considerado consumado quando todos os elementos descritos no tipo incriminador restam reunidos após a conduta. O tipo incriminador descrito na lei encerra adequação de subordinação imediata, uma vez que basta este preceito legal para tipificar o crime, ou seja, a conduta do agente se amolda com perfeição ao tipo penal incriminador, não havendo necessidade de se buscar nenhuma outra norma legal para se incriminá-la, a adequação típica é direta. Diferentemente, o delito tentado encerra uma adequação típica de subordinação indireta em que o comportamento do agente não se adéqua diretamente a figura típica. Aqui, há necessidade de se vincular a norma do tipo incriminador a outra norma contida noutro preceito para se conquistar punição pela conduta praticada. Logo, o crime, quando tentado, será tipificado pelo tipo incriminador correspondente e a norma do art.14, II, acima descrita, porquanto a sua aplicação esteja subordinada pela mediação deste artigo.

 

Pois bem, esclarecida a matéria preliminar necessária a fundamentar alguns pontos a serem percorridos, passemos a enfrentar as divergências sobre os momentos consumativos dos delitos de furto e de roubo.

 

Como vimos, o delito de furto é material, sendo necessária a ocorrência do resultado para se considerar a sua consumação. Diz o tipo penal incriminador do art. 155 do Código Penal:

 

Furto

Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

 

De acordo com as definições teóricas supramencionadas, o delito de furto para se consumar exige a lesão patrimonial da vítima, provocada pela conduta encerrada em uma ação de subtrair.  A dificuldade encontra residência no momento da lesão patrimonial, isto é, se é necessário o êxito completo por parte do meliante; se a perda patrimonial da vítima vem acompanhada da vantagem do agente.

 

Há quatro teorias para se definir o momento de consumação do delito patrimonial em destaque. A teoria da concretatio exige o simples contato físico entre o agente e a coisa a ser subtraída. A teoria da apprehensio – amotio -, segundo a qual se consuma o crime quando a coisa passa para o poder do agente. A teoria da ablatio tem a consumação ocorrida quando a coisa, além de apreendida, é transportada de um lugar a outro. Por fim, a teoria da illatio exige, para ocorrer a consumação, que a coisa seja levada ao local desejado pelo meliante para tê-la a salvo, quer dizer, somente encerra consumação o delito patrimonial, quando o agente detém a posse mansa e pacífica da coisa.

 

Conforme ainda ensina Nelson Hungria, o delito é material, somente havendo lesão patrimonial, quando há a superveniência do eventus damni, não havendo furto sem efetivo desfalque do patrimônio alheio. Não se deve indagar se o agente tem efetivamente lucro com sua conduta, sendo importante a lesão ao direito patrimonial da vítima.

 

Sobre o momento consumativo, admitida possibilidade de tentativa no delito material em comento, disserta o saudoso mestre:

 

“… é necessário estabelecer-se um estado tranquilo, embora transitório, de detenção da coisa por parte do agente. Inclino-me, decididamente, por esta última solução. Penso, aliás, que é a única aceitável perante o nosso direito positivo. O furto não se pode dizer consumado senão quando a custódia ou vigilância, direta ou indiretamente exercida pelo proprietário, tenha sido totalmente iludida. Se o ladrão é encalçado, ato seguido à aprehensio da coisa, e vem a ser privado desta, pela força ou por desistência involuntária, não importa que isto ocorra quando já fora da esfera de atividade patrimonial do proprietário: o furto deixou de se consumar, não passando da fase da tentativa. Não foi completamente frustrada a posse ou vigilância do dono. Não chegou este a perder, de todo, a possibilidade de contato material com a res

ou de exercício do seu poder de disposição sobre ela. A sua propriedade sofreu sério perigo, mas não propriamente uma efetiva lesão: a sua posse, como exercício da propriedade, foi perturbada, mas não definitivamente suprimida. Poder-se-ia falar em perigo de dano, mas não em dano real ou concreto. Enquanto está perseguindo o ladrão, o proprietário está agindo na defesa de sua posse, isto é, do exercício prático do seu domínio.”[1]

 

Não concordamos com o ilustre doutrinador, ousando bastante em divergir, concessa venia, acreditamos que o furto se consuma com a subtração seguida da lesão patrimonial. Retirada a coisa da vítima, ainda que por curto espaço de tempo, esta não mais podendo dispor do objeto, está configurada a lesão patrimonial. Perseguir o ladrão que já retirou o objeto da vítima somente configura que a vítima não mais pode usufruir da res. Ademais, podemos vislumbrar a hipótese em que o meliante é perseguido não pela vítima, mas por policiais que avistaram o criminoso, sendo que nesta proposta a disposição da vítima sobre seu bem é nula, configurado o furto consumado da mesma forma.

 

Caso o Código Penal estabelecesse um critério circunstancial de tempo, modo ou espaço, para condicionar a consumação, teria tipificado o crime de furto da seguinte forma: FURTO – subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem, detendo consigo a mesma de forma pacífica e segura, deslocando-a para outro lugar diverso daquele onde a subtraiu. Não foi dessa forma que o tipo descreveu a conduta e o resultado. Para ser bastante claro, quando a vítima não consegue mais dispor do bem, ainda que por curto espaço de tempo, acreditamos estar consumado o delito. Não estamos aqui a consignar ser o crime de furto um delito de resultado antecipado, uma vez que nossa proposta não elide a possibilidade de tentativa do crime ou diminui seu âmbito de incidência. Caso o agente tente retirar o bem da vítima e esta o detenha por meio da força, impedindo a retirada do bem da sua posse, estaria configurada a tentativa, porquanto o resultado não se configurou, logo ainda destacamos por excelência a forma material do crime de furto.

 

Ora, há tremenda contradição, pois fora dito que deve haver efetiva lesão patrimonial, não havendo necessidade de êxito por parte do agente, portanto nos parece satisfatória a seguinte situação ilustrativa: a consumação existe, quando a res  é retirada da vítima, mesmo que por curto espaço de tempo, não havendo necessidade de a posse ser tranquila; basta que haja a lesão ao bem jurídico patrimonial, estando impedida a vítima, por consequência, de exercer os poderes inerentes à propriedade da coisa.

 

É neste sentido que colacionamos a jurisprudência da Ministra Ellen Gracie do Supremo Tribunal Federal:

 

HC 89389 / SP – SÃO PAULO; Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE
Julgamento:  27/05/2008;  Órgão Julgador:  Segunda Turma

Ementa: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO. MOMENTO DA CONSUMAÇÃO. PERSEGUIÇÃO POLICIAL. PRISÃO EM FLAGRANTE. HABEAS CORPUS. 1. Na apreciação do recurso especial, houve expressa menção à circunstância de que foi comprovada a divergência pretoriana nos moldes do art. 225, do Regimento Interno daquela Corte. 2. Houve a resolução da questão jurídica envolvendo o momento da consumação do crime de furto, e não nova análise sobre valoração de prova. 3. A norma contida no inciso II, do art. 14, do Código Penal, ao tratar da modalidade tentada, contempla um tipo de extensão, fazendo com que se amplie a figura típica de determinados comportamentos reputados criminosos para abranger situações fáticas não previstas expressamente no tipo penal. 4. A polêmica diz respeito à consumação (ou não) do furto, porquanto questiona-se se houve a efetiva subtração. A conduta da subtração de coisa alheia se aperfeiçoa no momento em que o sujeito ativo passa a ter a posse da res fora da esfera da vigilância da vítima. 5. A circunstância de ter havido perseguição policial após a subtração, com subseqüente prisão do agente do crime, não permite a configuração de eventual tentativa do crime contra o patrimônio, cuidando-se de crime consumado. 6. Ordem denegada. (grifo nosso)

 

Destacou a Ministra em seu voto que a circunstância de ter havido a perseguição policial, logo em seguida ao ato de subtrair, com subsequente prisão do agente, não permite inferir que houve configuração de eventual tentativa do crime contra o patrimônio, cuidando-se, portanto, de crime consumado. Ainda, conclui que a orientação em contrário não permitiria a prisão em flagrante da pessoa que teria praticado crime consumado de furto ou roubo.

 

Sobre a prisão, não vamos tão alto neste raciocínio, uma vez que sempre há a forma do flagrante presumido, certo que o termo ‘logo após’ utilizado pelo Código de Processo Penal denota espaço de tempo suficiente a contemplar prisão em flagrante na forma imprópria.

 

O que estamos a dissertar é que a perseguição logo após a subtração do meliante que carrega consigo o objeto torna o delito de furto consumado, porquanto haverá efetiva lesão patrimonial da vítima que, embora por curto espaço de tempo, não mais disporá sobre seu antigo bem.

 

Ressalta-se que a fuga do meliante com a res pode ocasionar a deterioração da mesma, situação, inclusive comentada por Nelson Hungria, conforme se expõe:

 

“Cumpre repetir que, em face do nosso Código, o furto é crime material, isto é, para sua consumação é necessária a ocorrência de um eventus damni, de um dano efetivo, embora seja irrelevante indagar se foi alcançado o fim último do agente, que via de regra, é o de locupletação própria ou de outrem. … Suponha-se que o ladrão, em fuga e perseguido, atire de si a res furtiva

, que vai cair em lugar inacessível à recuperação dela: o furto consumou-se, porque se efetuou a diminuição patrimonial do proprietário, nada importando que o ladrão não tenha conseguido o almejado proveito.”[2]

 

A nosso ver, a ilustração da perseguição com deterioração da coisa é idêntica àquela situação normal de perseguição com consequente prisão do meliante, havendo, no segundo caso, a devolução do bem à vítima. Ocorre que o agente fora perseguido e alcançado, sendo a sua prisão efetuada com consequente devolução à vítima do bem outrora subtraído, a qual se viu privada de exercer os poderes inerentes à propriedade da res.

 

Na esteira de Rogério Greco, o entendimento divergente ao nosso se confirma, observemos:

“Entendemos, no entanto, que somente se pode concluir pela consumação quando o bem, após ser retirado da esfera de disponibilidade da vítima, vier a ingressar na posse tranquila do agente, mesmo que por curto espaço de tempo. O agente, portanto, ter tido tempo suficiente para dispor da coisa, pois, caso contrário, se isso não aconteceu, estaremos diante da tentativa.”[3]

 

Rebatendo o entendimento, data venia, se a lei penal desejasse que o agente tivesse a disponibilidade da coisa, logo após a subtração, descreveria o seguinte: subtrair bem alheio móvel, para si ou para outrem, obtendo vantagem. Mas, todos sabemos que não é esta a descrição do tipo, motivo por que acreditamos ser certo exagero exigir a vantagem pelo agente para consumar o delito, se não foi esta a exigência legal.

 

Heleno Cláudio Fragoso também traz sua valorosa contribuição:

 

“Para a consumação do furto, no sistema do código atual, é necessário que o agente tenha completado a subtração da coisa. Como já vimos, o próprio conceito de subtração exige o rompimento de um poder material de detenção sobre a coisa, e o estabelecimento de um novo. Em consequência, somente estará consumado o furto quando a coisa for tirada da esfera de vigilância do sujeito passivo, do seu poder de fato, submetendo-a o agente ao próprio poder autônomo de disposição. … Se, ao tirar a coisa, o agente é perseguido e, finalmente preso, não haverá furto consumado, pois não chegou a estabelecer o seu poder de fato sobre a coisa, o que exige a detenção mais ou menos tranquila.[4]

 

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça adotam a teoria da amotio, quando decidem que a consumação do delito ocorre no momento em que o proprietário perde, no todo ou em parte, a possibilidade de contato material com a res ou de exercício de custódia.

Guilherme de Souza Nucci aduz o seguinte:

 

“… o furto está consumado tão logo a coisa subtraída saia da esfera de proteção e disponibilidade da vítima, ingressando na do agente. É imprescindível, por tratar-se de crime material, que o bem seja tomado do ofendido, estando, ainda que por breve tempo, em posse mansa e tranquila do agente. Se houver perseguição e, em momento algum, conseguir o autor a livre disposição da coisa, trata-se de tentativa. Não se pode desprezar esta fase (posse tranquila da coisa em mãos do ladrão), sob pena de se transformar o furto em um crime formal.”[5]

 

Percebemos que, majoritariamente, a doutrina se posiciona de encontro ao nosso entendimento, bem como contrária ao entendimento da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. No entanto, o posicionamento de Damásio se amolda ao nosso entendimento, senão vejamos:

“Para nós, o furto atinge a consumação no momento em que o objeto material é retirado da esfera de posse e disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor, ainda que este não obtenha a posse tranquila.”[6]

 

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também aponta no sentido por nós aqui defendido.

 

RECURSO ESPECIAL Nº 820.380 – SP (2006/0031702-1) RELATOR : MINISTRO GILSON DIPP

CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO. MOMENTO DA CONSUMAÇÃO DO DELITO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I. O delito de furto consuma-se com a simples posse, ainda que breve, da coisa alheia móvel subtraída clandestinamente, sendo desnecessário que o bem saia da esfera de vigilância da vítima. Precedentes. II. Recurso conhecido e provido.

 

Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, mediante o qual se solicita seja reconhecido o delito consumado de furto. Está em debate a divergência encarada por este trabalho.

 

Destacou em seu voto o Ministro Gilson Dipp que o delito de furto se consuma com a simples posse, ainda que breve, da coisa alheia móvel subtraída clandestinamente, sendo desnecessário que o bem saia da esfera de vigilância da vítima. Logo, bastaria a cessação da clandestinidade ou da violência para que o poder de fato do agente adquira o caráter de posse ou detenção – mesmo que a vítima venha a retomar o bem, via perseguição própria ou de terceiro, esclarece o nobre Ministro.

 

Sobre a esfera de vigilância da vítima, traz exceção ao seu posicionamento, o grande mestre Hungria:

 

“Casos há, todavia, em que o furto tem de ser reconhecido como consumado ainda quando o ladrão e a res furtiva

permaneçam no âmbito de atividade patrimonial do lesado. É o caso, por exemplo, da criada que sub-repticiamente empolga uma joia da patroa e a esconde no seio ou mesmo nalgum escaninho da casa, para, oportunamente, sem despertar suspeitas, transportá-la a lugar seguro. Consumou-se o furto, e por quê? Porque desapareceu a possibilidade material, por parte da lesada, de exercer o seu poder de disposição da coisa, cujo paradeiro ignora.”[7]

Percebemos que a tese da esfera de vigilância da vítima é um pouco insegura. Na regra adotada pela divergência, o furto no exemplo dado configuraria uma tentativa, entretanto o autor esclareceu que haveria dano efetivo ao patrimônio, motivo por que, aqui, haver-se-ia de considerar a consumação.

 

Criar hipóteses para definir a consumação ou tentativa, quer por uma teoria, quer por outra, em diferentes casos, que na verdade são bastante semelhantes, cria insegurança jurídica odiosa em matéria penal incriminadora. Os casos são semelhantes, porque, se a personagem representada pela patroa, antes do momento oportuno do transporte da res, dá falta do objeto subtraído e tenta dar cabo da empregada, chamada ali de criada, cairíamos na mesma situação em debate, haveria, então, tentativa ou furto consumado? A nosso ver, sem divergirmos, há consumação em ambos os casos; enquanto que, ao ver de Hungria, em um caso há consumação e noutro há tentativa.

 

Ainda trazemos o interessante ponto de vista de outro notável doutrinador tradicional do direito penal pátrio, E. Magalhães Noronha:

 

“Consuma-se o crime quando a coisa sai da posse da vítima para entrar na do agente. É a sujeição dela ao poder do delinqüente, pela subtração ao poder do possuidor; a posse do agente substitui, então, a de quem possuía a coisa. Dá-se o que alguns chamam inversão da posse.

 

Como a remoção, o apossamento não está jungido à condição material de lugar. Verifica-se quando a coisa é subtraída à esfera de atividade da vítima, isto é, quando ela é colocada em situação tal que aquela não mais pode exercer os atos que sua posse lhe confere.”[8](grifamos)

 

De acordo com a leitura do trecho acima destacado, podemos inferir que o grandioso doutrinador tenderia a se declinar pela nossa posição aqui defendida, bem como a posição dos tribunais superiores já comentada. No entanto, sobre a perseguição do agente, logo após a inversão da posse da coisa, o autor declara haver tentativa de furto, mas não a consumação do delito. Trazemos tal posição a baila, uma vez que consideramos tremendo contra senso afirmar inicialmente que a cessação de atividades da vítima sobre a esfera de disponibilidade do bem configura a consumação, ao passo que, como veremos na posição do nobre autor, a perseguição imediatamente após a subtração, quer pela vítima, quer por terceiro, configuraria o crime tentado, porquanto o sujeito ativo não tenha logrado êxito em seu intento criminoso. Já comentamos ser prescindível o êxito do agente para consumação do crime, inclusive sustentamos tal tese segundo os ensinamentos de Hungria, senão vejamos o posicionamento enfrentado por Noronha sobre a tese em debate:

 

“É inútil, a nosso ver, pretender traçar aprioristicamente limites aos momentos de remoção da coisa e de seu apossamento, pois estes apresentam configurações diferentes nos casos práticos.

Muitas vezes o iter criminis, no furto, é tão exíguo, tão diminuto, que os dois momentos quase se confundem.

Mas não é ele delito formal ou de simples atividade, como alguns sustentam. É crime material, constituído de ação (subtrair) e evento (apossamento da coisa pelo agente), do que resulta dano efetivo para o sujeito passivo.

Há tentativa de furto sempre que a atividade do agente estaque ou cesse, antes que sua posse haja substituído a da vítima, por circunstâncias alheias à sua vontade. Deve o ato de vontade ser inequivocamente dirigido à consumação do furto. Praticado que seja ele, se o sujeito ativo não conseguir apossar-se da coisa, terá ficado na tentativa. Poder-se-á dizer consumado o furto do agente que, já pressentido pelo dono, subtrai, e, perseguido, põe-se a correr, sendo preso por ele mais adiante? Não se consumou o crime, porque faltou o evento jurídico buscado pelo ladrão: ele não teve a posse da coisa, que, por certo, não é aquela mera detenção momentânea ou instantânea, sob a reação do dono que a persegue. Não há negar que o objeto material não saiu da esfera de vigilância do ofendido, sem o que não haverá consumação.“[9] (grifo nosso)

 

A explicação inicial do saudoso mestre Noronha foi adequada com o nosso posicionamento, entretanto sua conclusão é diversa da nossa quanto à questão do exemplo em debate. O ilustre doutrinador condicionou a consumação à obtenção de êxito pelo sujeito ativo, embora tenha afirmado inicialmente que o delito se consuma com subtração ao poder do antigo possuidor, a chamada inversão da posse.

 

Em fim, foi o que nos cumpriu descrever acerca do momento consumativo do crime de furto. Passemos, agora, a verificar tal conceito quando relacionado ao delito de roubo.

 

Roubo

Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

§ 1º – Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro.

 

 O tipo penal incriminador em destaque configura o roubo. Para efeitos práticos e teóricos, não há diferença entre o momento consumativo do delito de furto e o delito de roubo próprio, pelo menos no que tange àquela questão do ladrão apanhado logo em seguida à prática delitiva, tendo sido restituída a coisa à vítima. Noutras palavras, a doutrina encara da mesma forma o momento consumativo dos delitos de roubo e de furto, cada qual com seu posicionamento.  

 

Entretanto, há que se destacar alguns pontos fundamentais, porque o tipo penal incriminador do delito de roubo reúne maiores detalhes acerca das elementares, uma vez que o delito difere do anterior, quando exige que a subtração se dê mediante violência ou grave ameaça, ou pela redução do meio de resistência da vítima. Ademais, o §1º, do art.157, do Código Penal, elenca a modalidade de roubo impróprio que ocorre, quando a violência é empregada logo em seguida à subtração, a fim de que o agente garanta o proveito do seu intento criminoso.

 

O roubo é crime complexo, porquanto ali se reúne mais de uma conduta típica, a saber, o delito de furto e o delito de ameaça ou lesão corporal. Quando praticada a ameaça ou a violência com o intuito final da subtração patrimonial, há o crime em comento. Significa dizer que, se praticada isoladamente cada uma das condutas referentes aos crimes que o compõem, haveria outro delito, quer de ameaça, quer de lesão corporal, desde que desvinculada a conduta do propósito patrimonial contemplado no crime de roubo.

 

Acerca da explanação da tentativa ou do delito consumado, ainda vale a explicação introdutória constante do início desta dissertação. O roubo é crime material, portanto somente resta consumado se reunidos os seus elementos constitutivos, lesionado o bem jurídico protegido pela norma em destaque, qual seja, o efetivo dano patrimonial da vítima. Sendo assim, a tentativa é viável, embora haja alguma divergência sobre a sua incidência quanto à modalidade do crime na forma imprópria.

 

Sobre a consumação e a tentativa nas diferentes formas de apresentação do delito, consagramos a posição de Nelson Hungria:

 

“Há que se distinguir, para o reconhecimento do roubo consumado ou simplesmente tentado, entre o caso em que a violência precede ou acompanha a subtração da coisa (art.157, caput) e o caso em que sucede a esta (art.157, §1º). No primeiro caso, o momento consumativo é o da subtração patrimonial, aplicando-se os mesmos critérios expostos em relação ao furto, de que o roubo somente difere, como já se disse, pelo emprego da violência à pessoa. Se após o emprego da violência pessoal não puder o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, executar a subtração, mesmo o ato inicial da apprehensio rei, o que se tem a reconhecer é a simples tentativa. Já no caso de violência subsequente à subtração, o momento consumativo é o do emprego da violência; e não há falar-se em tentativa: ou a violência é empregada, e tem-se a consumação, ou não é empregada, e o que se apresenta é o crime de furto.”[10] (grifamos)

 

Aqui, temos um problema antigo ainda não pacificado pela doutrina, uma vez que a mesma ainda se encontra em constante divergência. Trata-se da tentativa do crime complexo.

 

Acontece que na vertente de envergadura do finalismo, hoje vigente no ordenamento jurídico pátrio, deve-se levar em consideração a intenção final do agente. Certamente, no delito de roubo, a intenção do agente é a subtração patrimonial, embora o meio usado seja a violência contra a pessoa. Sendo assim, empregada a violência, sem que haja êxito na subtração patrimonial, certo que a vontade do sujeito ativo é esta, tem-se o crime de roubo tentado, mas não um crime de lesão corporal consumado. A proposta de Hungria sobre o roubo tentado parece caminhar de encontro a tal entendimento, pelo menos, quando se tratar da forma imprópria.

 

Notemos como encara o assunto E. Magalhães Noronha:

 

“Consuma-se o roubo impróprio com o uso da violência ou ameaça e cessadas que elas sejam…

Com isso tem-se dito que o roubo impróprio só existe quando a violência é usada, ocorrendo o dolo específico do agente, que consiste em assegurar a detenção da coisa ou garantir a impunidade.”[11]

 

Imaginemos que o agente tenha logrado subtrair um bem, no entanto, quando irá ser interpelado pelo dono da coisa, ato contínuo, o meliante emprega violência para conquistar seu intento criminoso. Acontece que a vítima fora mais forte, porquanto tenha dado cabo do ladrão, tendo-o prendido e tendo recuperado a res. Aqui, houve a subtração e tentativa de emprego de violência para assegurar a sua posse. Contudo, por circunstâncias alheias a vontade do agente, a posse não foi conquistada. Não há falar-se no crime de furto consumado em concorrência com o delito contra a pessoa.

 

Rogério Greco esclarece a situação com maestria, defendendo a tese da possibilidade de o roubo impróprio admitir a forma tentada, embora salienta que o roubo somente se consuma com a retirada violenta do bem da esfera de disponibilidade da vítima, passando o agente a exercer sobre ele a posse tranquila, mesmo que por curto espaço de tempo.

 

“não conseguimos compreender a mudança de tratamento para efeitos de reconhecimento de momentos diferentes de consumação nas espécies de roubo – próprio e impróprio. Para nós, que entendemos que a consumação somente ocorre com a retirada do bem da esfera de disponibilidade da vítima e o ingresso na posse tranquila do agente, não há qualquer diferença no fato de ser a violência anterior ou posterior à subtração da coisa.”[12]

 

 Conclui o renomado autor, citando Weber Martins Batista, afirmando que a grave ameaça ou a violência praticada ao longo desse caminho, visando, sem êxito, a manter a detenção da coisa, ou a garantir a fuga com a coisa, caracteriza o roubo impróprio tentado. Cuida-se da situação inicialmente ilustrada por nós que acreditamos empolgar no sentido de melhor convencer, com todas as venias dos que divergem, acompanhando este último autor.  

 

Guilherme de Souza Nucci disserta de acordo com a nossa posição.

 

“O ofendido, por exemplo, vendo que sua bicicleta está sendo levada por um ladrão, vai atrás deste que, para assegurar sua impunidade ou garantir a detenção da coisa, busca agredir a pessoa que o persegue, momento em que é detido por terceiros. Existe aí uma tentativa de roubo impróprio. Esta parece-nos ser a melhor posição. No §1º, do art.157, não se utilizou a expressão “subtraída a coisa” como o mesmo sentido amplo e firme da consumação do crime de furto, vale dizer, exigindo-se a posse mansa e tranquila da coisa subtraída.”[13]

 

De qualquer forma, temos a posição de que o delito de roubo próprio se confirma na consumação quando a coisa é retirada da vítima mediante violência ou grave ameaça; ou, em se tratando de roubo impróprio, acreditamos que este se consuma quando há o emprego da violência, já subtraída a coisa. Não pensamos ser necessária a posse tranquila da coisa pelo ladrão para confirmar a consumação, basta, pois, a efetiva lesão patrimonial do ofendido, ou seja, a cessação de disponibilidade sobre o bem.

 

Quanto à posse tranquila, ter a coisa colocada fora da esfera de vigilância da vítima, acreditamos que tais elementos não são constitutivos do tipo, motivo por que, da mesma forma como fora dissertado acerca do furto, são prescindíveis à consumação do crime de roubo estes elementos circunstanciais.

 

Heleno Cláudio Fragoso aduz o seguinte:

 

“O momento consumativo do roubo impróprio é aquele em que o agente exerce a violência ou grave ameaça à pessoa. Se a subtração é apenas tentada e o agente, na fuga, emprega violência, haverá concurso material de tentativa de furto e do crime que foi praticado contra a pessoa (lesões corporais, homicídio, etc.). Para que haja roubo impróprio é preciso que a coisa já tenha sido subtraída, ou seja, que o furto tenha sido consumado (RT 425/359). Esta solução, no entanto, não é pacífica (Antolisei, I, 275).”[14] (grifamos)

 

Sobre a consumação do crime de furto, no ínterim desta micro análise, precisamos abrir séria divergência e apontar contradição. Ora, Heleno Cláudio Fragoso defende a posse tranquila da coisa, retirada a mesma da esfera de vigilância da vítima, pelo sujeito ativo para ver consumado o delito patrimonial de furto, bem como concorda que o momento consumativo tanto do furto quanto do roubo há da mesma forma.

 

Pois bem, questionamos: por que é necessário o furto consumado para se vislumbrar o roubo impróprio. A nosso ver há somente a subtração patrimonial por curto espaço de tempo, sendo necessário ao agente imprimir violência para garantir sua fuga com a coisa, assim consumando o delito de roubo impróprio. Trata-se de crime complexo por excelência. Isso porque, se o agente subtrai e, após período considerável de tempo, a violência é empregada, inferimos haver furto consumado em concurso com o crime de lesão corporal. Sendo assim, pensamos que se deve levar em consideração o termo circunstancial temporal ‘logo depois’, contido no §1º, do art.157, do Código Penal.

 

Complementa o nobre doutrinador, entendendo ser possível a tentativa do roubo impróprio, desta forma:

 

“A tentativa de roubo impróprio é possível e se verifica sempre que o agente, tendo completado a subtração, é preso após tentar o emprego da violência ou da ameaça para assegurar a posse da coisa ou a impunidade. Há também tentativa se o agente é surpreendido após ter completado a subtração e emprega violência, mas se vê forçado a abandonar a coisa fugindo.”[15]

 

Sem exceção, a doutrina se acerta quanto à dissertação do momento consumativo do furto e do roubo acerca da sua ocorrência, pelo menos no que tange ao roubo próprio. Salientam os nobres doutrinadores que o momento consumativo tanto no furto quanto no roubo ocorre da mesma maneira.

 

O emprego da violência acentua a gravidade do delito patrimonial em destaque, portanto pretendemos reforçar o momento consumativo sob este ângulo. Para tanto, gostaríamos de consagrar a decisão do Ministro aposentado Moreira Alves do Supremo Tribunal Federal, na decisão no RE 102.490-9 – SP, do qual foi relator.

 

Roubo. Momento de sua consumação. O roubo se consuma no instante em que o ladrão se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave ameaça ou violência. – Para que o ladrão se torne possuidor, não é preciso, em nosso direito, que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, mas, ao contrário, basta que cesse a clandestinidade ou a violência, para que o poder de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse, ainda que seja possível ao antigo possuidor retomá-la pela violência, por si ou por terceiro, em virtude de perseguição imediata. Aliás, a fuga com a coisa em seu poder traduz inequivocamente a existência de posse. E a perseguição – não fosse a legitimidade do desforço imediato – seria ato de turbação (ameaça) à posse do ladrão. Recurso extraordinário conhecido e provido. (grifamos)

 

A leitura do voto do nobre Ministro é realmente digna de aplausos, o que transforma este Recurso Extraordinário em verdadeiro leading case sobre a matéria. Traz em seu voto verdadeira exposição do direito comparado consagrando diversos sistemas acerca das teorias sobre o momento consumativo dos delitos patrimoniais em comento.

 

Começa sua argumentação trazendo a doutrina alemã:

 

“Nos países cujos Códigos Penais usam, para caracterizar o furto e o roubo, de expressões como ‘subtrair’ ou ‘tomar’ – assim, na Alemanha e na Espanha -, predomina, na doutrina e na jurisprudência, a utilização da teoria da apprehensio (ou amotio), em que é necessário apenas que a coisa passe, por algum espaço de tempo, para o poder do ladrão, ainda que não seja transportada para outro lugar, nem usada por ele. Na Alemanha – em que a ação que caracteriza o furto e o roubo é a Wegnahme – subtração ou tomada –, é francamente dominante a teoria da apprehensio sustentada, entre outros, por MEZGER, WELZEL… todos eles salientam que, para consumar-se o furto (e também o roubo) basta que o agente faça cessar o poder de fato da vítima sobre a coisa, passando a tê-lo. E se o ladrão já se encontra em fuga, ainda que perseguido logo após o roubo, ele obviamente já consumou o crime, pois é indiscutível que fez cessar o poder de fato da vítima sobre a coisa (que, por isso mesmo, tenta, por si ou por terceiro, retomá-lo) tendo-o para si.”[16]

 

Tomando como gancho tal perspectiva adotada pelo ilustre Ministro Moreira Alves, gostaríamos de apresentar algumas vertentes adotadas na obra de Von Liszt, Tratado de Direito Penal Alemão, obra influenciadora de toda a doutrina tradicional brasileira, do Direito Penal Causalista, citado rigorosamente em vários julgados de nossa Suprema Corte. Cuida-se de um trabalho traduzido pelo Ministro Higino Duarte Pereira, nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal em 1892.

 

Como já afirmado acima, o elemento objetivo nuclear do tipo incriminador alemão é a tirada, como bem explica o Tratadista:

 

“A ação consiste na tirada, isto é, na interrupção da custódia alheia e no começo da própria…

A coisa deve ser tirada na intenção de apropriação ilegal.

Apropriar-se é estabelecer, para com a coisa, uma relação a que falta somente o reconhecimento jurídico para que tome o caráter de propriedade. É, portanto, criar uma relação em que a coisa é acomodada aos fins do agente, como se fora  propriedade sua (uso do objeto da propriedade). A apropriação supõe, pois, o pleno domínio sobre a coisa equivalente à propriedade. Não basta dispor da coisa segundo uma direção singular e determinada, em tanto quanto nisso não se manifesta a intenção de pleno domínio.”[17]

 

Sobre a explicação de apreensão, destacamos que a mesma não é necessária para a consumação do delito de furto como explicou o autor. Este apenas destacou que a ‘tirada’ deve ser levada ao efeito de intenção da apreensão. No caso, sustenta-se que a ‘tirada’ deve equivaler ao nosso ‘subtrair’.

 

E, continua Liszt:

 

“A lei exige a intenção de apropriação ilegal no sentido de motivo que vai além do dolo. E, na verdade, o agente deve ter a intenção de apropriar-se da coisa primeiramente, pelo menos, para si, e não imediatamente para terceiro. A esta intenção deve aliar-se a consciência da ilegalidade.”[18]

Esclarecido no ponto, qual é o elemento subjetivo, bem como qual é a elementar objetiva encerrada no verbo, núcleo do tipo penal incriminador, sustenta como forma de consumação do crime de furto aquilo estabelecido na teoria da apreensão, uma vez que não basta, de um lado, que o agente lance mão da coisa (teoria da concretatio) e não é, de outro lado, necessário que a remova do lugar em que atualmente é guardada ou mesmo que a ponha em segurança (teoria da ablatio).

 

“O furto consuma-se com a tirada consumada, e portanto logo que o agente põe a coisa sob a sua própria custódia.”[19]

 

Na nota do tradutor, Higino Duarte explica o seguinte:

 

“o furto consuma-se, desde que se dá a tirada, isto é, desde que a coisa passa da ‘custódia’ do possuidor para o delinqüente. A intenção deve compreender os dois momentos da tirada e da apropriação, mas o furto consuma-se logo que a primeira intenção se realiza, independente da realização da segunda. É isso que se chama de ‘teoria da apreensão’. A consumação não depende, pois, de que a ‘custódia’ ou o domínio de fato que pela subtração se estabelece sobre a coisa já se ache seguro. Também não é necessário que a coisa tenha sido levada do lugar onde se deu a subtração.”[20]

 

E, de forma bastante singela, complementa afirmando aplicar-se ao roubo toda a explicação dispensada no furto, quanto ao momento consumativo:

 

“ O roubo (como o furto) consuma-se com a tirada consumada da coisa, sem ser necessária a apropriação efetiva; a tentativa punível começa com o emprego da violência ou das ameaças.”[21]

 

Retornando à análise desempenhada pelo Ministro Moreira Alves no RE 102.490-9, passamos a contemplar o conceito do que vem a ser a posse no ângulo penal e civil. Salienta, em seu voto, que os conceitos não são diferentes, principalmente, no Direito Penal, uma vez que “a lei penal não tem elementos de que se possa extrair, indubitavelmente, um conceito penalístico de posse diverso do que lhe dá o direito civil – e essa ausência de elementos ocorre, indiscutivelmente, no furto e no roubo -, não tem sentido que, em se tratando de direito penal cuja segurança dos conceitos é garantia indispensável à liberdade, se deixe ao critério subjetivo da doutrina ou dos juízes a fixação do que vem a ser posse para o direito penal, ao invés de observar a sua disciplina legal no campo do direito – que é o civil – onde se elaborou esse conceito.”[22]

 

Novamente, aproveitamo-nos do gancho para introduzir o conceito de posse do grandioso Clóvis Bevilaqua, em sua obra Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado.

“As inúmeras teorias da posse são distribuídas em subjetivas e objetivas cuja apreciação se pode ver em JHering…

 

Para o primeiro, posse é o poder que tem uma pessoa de dispor, psiquicamente, de uma coisa, acompanhado na intenção de tê-la para si. Resulta da combinação dos dois elementos: o poder pisíquico (corpus) e a intenção de ter a coisa para si (animus). Sem o elemento vocacional, a posse é a simples detenção, posse natural e não posse jurídica. Sem o elemento material, a intenção é simplesmente, um fenômeno psíquico sem repercussão na vida jurídica.

JHering, sem negar a influência da vontade na conceituação da posse, acha que não tem ai ação mais preponderante do que em qualquer relação jurídica, e compreende a posse como:’a relação de fato estabelecida, entre a pessoa e a coisa, pelo fim de sua utilização econômica’. A posse é a exteriorização da propriedade. É o modo pelo qual a coisa, normalmente, preenche seu destino de satisfazer as necessidades humanas. É o modo pelo qual a propriedade é utilizada.

É o interesse da propriedade que justifica a proteção da posse. Sem essa proteção, pronta e segura, a defesa do domínio seria incompleta.”[23]

 

 Concluía o renomado autor, avisando ter adotado o Código Civil a posição de JHering, segundo a qual ficava contemplada a figura objetiva da posse como fundamento justificador da propriedade.

Observemos o que disciplinou o Código Civil de 2002:

 

LIVRO III   Do Direito das Coisas

TÍTULO I   Da posse

CAPÍTULO I Da Posse e sua Classificação

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

 

Configura correspondência com o art.485 do Código Civil de 1916, o qual inaugurou o conceito de posse, uma vez que não havia na lei elementos precisos para tal conceito, que era dado somente pela doutrina.

 

Caio Mario da Silva Pereira consagra a posição de Clóvis, indicando ter o atual Código Civil contemplado a teoria objetiva de JHering, abandonada a posição subjetiva de Savigny:

 

“A posse, em nosso direito positivo, não exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa. É relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização  da conduta de quem procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio.”[24]

 

Voltamos mais uma vez ao Recurso Extraordinário sub exame, onde se destacou a necessidade de buscar no estatuto civil os conceitos de posse. Ressaltou-se ali que há posse, no direito brasileiro, quando ocorre de fato, o exercício dos poderes inerentes à propriedade; ela se adquire inclusive por apreensão e se perde, também, pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido, ou reintegrado em tempo competente, sendo certo ainda que não induzem posse os atos violentos ou clandestinos, senão depois de cessar a violência, ou a clandestinidade (art.1208 – CC/2002), e que o possuidor esbulhado poderá restituir-se por sua própria força, (art.1210 – CC/2002) contanto que o faça logo.

 

Sendo assim, o Ministro Moreira Alves, concluiu:

 

“Por aí se vê, sem maior esforço, que, para haver aquisição da posse por apreensão e a consequente perda da posse contra a vontade do antigo possuidor, é preciso que se tenha poder de fato sobre a coisa, imediatamente depois de cessada a clandestinidade ou a violência, tanto assim que o possuidor esbulhado (e, portanto, o que perdeu a posse pela apreensão de outrem) poderá restituir-se (o que implica dizer: recuperar a posse) por sua própria força, se agir imediatamente, ou após breve intervalo de tempo.”[25]

 

 Com tais considerações o Ministro, inclusive ilustrando passagens de Hungria e outros autores nacionais, após ter intentado diversas doutrinas e teorias internacionais, votou pelo provimento do apelo extremo do Ministério Público paulista, no sentido de reconhecer o roubo consumado, quando o meliante necessita ser alcançado, logo em seguida a subtração com emprego de ameaça ou violência. É também neste sentido que votamos, clamando por maior segurança jurídica nas relações penais.



[1] Comentários ao Código Penal, Nelson Hungria, editora Forense, vol. VII, pgs. 22 e 23, 1º edição, 1955.

[2] Curso de Direito Penal, parte especial, vol. III, Rogério Greco, Niterói, RJ, Impetus, 2006.

[3] Comentários ao Código Penal, Nelson Hungria, editora Forense, vol. VII, pg. 24, 1º edição, 1955.

[4] Lições de Direito Penal, parte especial: volume I, Heleno Cláudio Fragoso, 8º edição revisada e atualizada por Fernando Fragoso – Rio de Janeiro: Forense, 1986.

[5] Manual de Direito Penal : parte geral: parte especial, Guilherme de Souza Nucci, 3º edição – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

[6] Direito Penal, vol. 2, p. 305, Damásio E. de Jesus, Ed. Saraiva.

[7] Comentários ao Código Penal, Nelson Hungria, editora Forense, vol. VII, pg. 25, 1º edição, 1955.

[8] Direito Penal, vol. 2, E. Magalhães Noronha. – São Paulo: Saraiva, 1087-1988, pgs. 221 e 222,

[9] Direito Penal, vol. 2, E. Magalhães Noronha. – São Paulo: Saraiva, 1987-1988, pgs. 221 e 222,

[10] Comentários ao Código Penal, Nelson Hungria, editora Forense, vol. VII, pg. 57 e 58, 1º edição, 1955.

[11] Direito Penal, vol. 2, E. Magalhães Noronha. – São Paulo: Saraiva, 1987-1988, pgs. 221 e 222,

[12] Curso de Direito Penal, parte especial, vol. III, pg. 78,  Rogério Greco, Niterói, RJ, Impetus, 2006.

 

[13] Manual de Direito Penal : parte geral: parte especial, Guilherme de Souza Nucci, pg. 709, 3º edição – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

[14] Lições de Direito Penal, parte especial: volume I, Heleno Cláudio Fragoso, 8º edição revisada e atualizada por Fernando Fragoso – Rio de Janeiro: Forense, 1986.

[15] Lições de Direito Penal, parte especial: volume I, Heleno Cláudio Fragoso, 8º edição revisada e atualizada por Fernando Fragoso – Rio de Janeiro: Forense, 1986.

[16] Recurso Extraordinário 102.490-9 – SP, voto: Min. Relator Moreira Alves, pg.163, Supremo Tribunal Federal.

[17] Liszt, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, traduzido por Higino Duarte Pereira – Campinas: Russell Editores, 2003..

[18] Liszt, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, traduzido por Higino Duarte Pereira – Campinas: Russell Editores, 2003..

[19] Liszt, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, traduzido por Higino Duarte Pereira – Campinas: Russell Editores, 2003..

[20] Liszt, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, traduzido por Higino Duarte Pereira – Campinas: Russell Editores, 2003..

[21] Liszt, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, traduzido por Higino Duarte Pereira – Campinas: Russell Editores, 2003..

[22] Recurso Extraordinário 102.490-9 – SP, voto: Min. Relator Moreira Alves, pg.163, Supremo Tribunal Federal.

 

[23] Bevilaqua, Clóvis, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, vol. III, pag. 8 e 9.

[24] Pereira, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil, vol. IV. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2009, pg. 17.

[25] Recurso Extraordinário 102.490-9 – SP, voto: Min. Relator Moreira Alves, pg.172, Supremo Tribunal Federal.

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Pedro Luiz Mello Lobato dos. Análise do Momento Consumativo dos Crimes de Furto e de Roubo. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/analise-do-momento-consumativo-dos-crimes-de-furto-e-de-roubo/ Acesso em: 18 mai. 2024