Arquivamento ou Desindiciamento –Absolvição sumária inadmissível ante a ausência ou impossibilidade de denúncia – Extinção da punibilidade de fato submetido à investigação em inquérito policial – Falta de justa causa para instauração de ação penal – Lastro probatório insuficiente – Arquivamento e possibilidade de coisa julgada material – Condições da ação e arquivamento sob a égide da inteligência dos Artigos 395 e 397 do Código de Processo Penal reformado pela Lei 11.719/2008 – Pela impossibilidade de declaração em sentença judicial de absolvição sumária devido à incognoscibilidade de oferta de denúncia.
Trata-se de análise teórica e abstrata de pedido de arquivamento do inquérito policial por falta de provas para sustentação de superveniente ação penal pública, salientando-se hipótese de fato crime prescrito sob investigação.
O interesse do presente escrito é combater a tese de que tal situação deveria ser resolvida em análise judicial que julga extinta a punibilidade, desprestigiando-se a possibilidade de arquivamento do inquérito policial, por aplicação do princípio do Favor Rei, segundo o qual a seguinte proposta seria mais benéfica para o réu. Não concordamos com tal proposição e pretendemos, respeitosamente, data maxima venia, demonstrar tal fundamento com base nas alterações do Código de Processo Penal, advindas da Lei 11.719/2008.
A posição destacada que pretendemos combater era adotada pelo nobre Procurador da República Eugênio Pacelli de Oliveira, entretanto, com a entrada em vigor da legislação supramencionada, que alterou o Código de Processo Penal, percebeu o então doutrinador que seria impositivo uma nova posição, senão vejamos:
“… no regime anterior à Lei 11.719/2008, quando a hipótese fosse de prescrição pela pena em abstrato ou de quaisquer outras causas extintivas de punibilidade, o Ministério Público não deveria requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, mas, sim, o reconhecimento judicial expresso da extinção da punibilidade, para o que deveria, também, especificar detidamente em relação a quais fatos ela se estenderá, diante dos efeitos da coisa julgada material que deverá acobertar tais provimentos judiciais.
Nesse terreno, a nova Lei 11.719/2008, trouxe, no mínimo, alguns problemas com a revogação do art.43, CPP…
Ao prever a absolvição sumária para a hipótese de extinção da punibilidade, e, mais que isso, a necessidade de apresentação da defesa, com indicação de provas e tudo o mais (art.396, art.396-A, CPP), como fase antecedente à decisão de absolvição sumária, surge a dúvida acerca da atuação do Ministério Público, quando diante de situação clara de prescrição ou de outra causa extintiva de punibilidade…
Agora, pelo novo procedimento, a primeira impressão é de que o Ministério Público, mesmo convencido da extinção da punibilidade, estaria obrigado a apresentar a denúncia, e também o juiz, pelas mesmas razões, se veria obrigado a determinar a citação do acusado para apresentação de defesa, no prazo de 10 dias (art.396, CPP), para só então absolver sumariamente o réu (art.397, CPP).
Exatamente por isso somos de parecer que o problema deverá ter o seguinte encaminhamento:
a)quando o Ministério Público entender já prescrito o fato, ou, de qualquer modo, extinta a punibilidade, deverá ele requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, sob tal fundamentação.”[1] (grifamos)
Tal posição deve prevalecer, porquanto saliente o art.395, III, do Código de Processo Penal, que a peça inaugural da ação penal será rejeitada quando faltar justa causa para o regular exercício da ação penal. Da mesma forma, o art. 397, IV, do mesmo estatuto processual, preconiza que deverá ser sumariamente absolvido o acusado quando se verificar estar extinta a punibilidade do agente do crime.
Ora, propomos a seguinte reflexão: como se poderia denunciar uma pessoa sem que houvesse lastro probatório mínimo para sustentação de uma ação penal superveniente? Conforme afirmou o doutrinador supramencionado, criou-se um problema, quando, para se alcançar a extinção da punibilidade do indiciado, este deveria figurar como réu em processo judicial.
Vejamos o conceito de justa causa, segundo a visão do notável Aury Lopes Jr.
“Deve a acusação ser portadora de elementos – geralmente extraídos da investigação preliminar (inquérito policial) – probatórios que justifiquem a admissão da acusação e o custo que representa o processo penal em termos de estigmatização e penas processuais. Caso os elementos probatórios do inquérito sejam insuficientes para justificar a abertura do processo penal, deve o juiz rejeitar a acusação.”[2] (grifamos)
Finaliza a proposta o renomado autor, afirmando ser a justa causa o lastro probatório mínimo inegável a sustentação de uma ação penal, sem que tal ação signifique impor injustamente um imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu.
No caso sub exame, tal proposta deve ser observada. Também não deixa de tecer suas críticas acerca da aplicação do art. 396 do Código de Processo Penal no circuito de análise do problema ora proposto.
“Ademais, a absolvição sumária (art.397), em que pese recorrer àquilo que consideramos serem as condições da ação processual penal, pressupõe a existência do processo. Como absolver antes do início do processo? A absolvição somente é possível após o recebimento da acusação.”[3] (grifamos)
Portanto, o problema posto passa a ganhar contornos mais sérios, no sentido em que a imposição de denúncia para declarar a extinção da punibilidade do réu, devido à ocorrência de prescrição em fase inquisitorial, é manifestamente desproporcional, ainda que justificada na fundamentação da coisa julgada.
Isso porque, ainda que apresentada a peça acusatória, delimitadora dos fatos objetos da extinção da punibilidade, não é suficiente a superar que o procedimento adotado pode se tornar extremamente burocrático, com prejuízo a todos. Mais em relação a defesa, conforme sustenta Eugênio Pacelli, porque, não obstante o dever de oferecer denúncia, culminará com a citação do indiciado, agora réu em processo judicial, para apresentação de defesa escrita, exigindo-se a contratação de advogado. Logo, procedimento oneroso, desnecessário e despendioso.
Não encarando de frente o tema, mas apresentando as razões do arquivamento do inquérito policial nestes moldes aqui defendidos, Marcellus Polastri Lima traz sua contribuição, quando aduz que os motivos autorizadores do arquivamento estão previstos no art. 395 do Código de Processo Penal. Logo, conclui o renomado Promotor de Justiça fluminense:
“O antigo art. 43 referia-se à ocorrência da extinção da punibilidade, pela prescrição ou por qualquer outra causa para autorizar a rejeição da inicial, mas é evidente que, havendo extinção da punibilidade, não há interesse estatal em se iniciar a ação, faltando ainda justa causa(art.395,III do CPP), o que autoriza o arquivamento de plano.
Evidente que, ocorrida a extinção da punibilidade, a denúncia não poderá ser ofertada, pois já não mais será possível a punição do agente.”[4] (grifamos)
Citando ,ainda, o art. 397 e seus incisos, do Código de Processo Penal, o autor em destaque nos nossos comentários salienta que, presente uma das causas naqueles incisos elencados, o promotor deverá optar pelo arquivamento.
Por fim, passemos a analisar a questão dos efeitos jurídicos do arquivamento, ou seja, muitos doutrinadores salientam que tal hipótese de arquivamento é suficiente a fazer coisa julgada material – coisa soberanamente julgada – uma vez que impossível abertura de novas investigações, não obstante hipóteses previstas no art. 18 do Código de Processo Penal e na Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal.
Francisco Dirceu Barros, promotor de justiça em Pernambuco, também enfrentou o tema, aduzindo se tratar de desindiciamento, mas não de arquivamento. Faz tal proposta para indicar com precisão os efeitos de coisa julgada que o instituto tenderia a oferecer.
“Desindiciamento é o ato de trancamento do inquérito policial com a consequente vedação de o paciente ser indiciado novamente pelos fatos objeto do procedimento inquisitorial anterior.”[5]
Indica o nobre autor, dissertando sobre a matéria de arquivamento do inquérito policial, que as hipóteses de incidência do desindiciamento seriam: a existência de coisa julgada; quando pelo mesmo fato em investigação, já estiver sendo processado o indiciado; já estiver extinta a punibilidade ou for plenamente atípico o fato.
Fernando da Costa Tourinho Filho também destaca em sua obra Manual de Processo Penal que se o arquivamento ocorre por ausência de tipicidade do fato, a decisão, tem eficácia preclusiva e obstativa de ulterior instauração de investigações, a despeito das regras do art. 18 do CPP e da Súmula 524 do STF.
Ainda, Guilherme de Souza Nucci em seu Manual de Processo Penal também sustenta a impossibilidade de novas investigações ante o arquivamento do inquérito, devido à atipicidade dos fatos em investigação. Sobre o assunto, o Juiz paulista propõe extensão de tal medida, quando houver exclusão da ilicitude ou da culpabilidade.
Nestes termos, colacionamos a conclusão do ilustre Eugênio Pacelli de Oliveira:
“E não se estaria aqui criando qualquer novidade radical, no que respeita à natureza preclusiva de uma decisão judicial de arquivamento. Sabe-se, por exemplo, e já aqui o assentamos, que, nas hipóteses de atipicidade manifesta, o Ministério Público deixa de oferecer denúncia e requer o arquivamento do inquérito. E ninguém duvidava nem duvida de que a referida decisão (de arquivamento) tem eficácia preclusiva de coisa julgada material, precisamente em razão do fato de tratar-se de solução de mérito da causa penal…
E mesmo do ponto de vista do investigado – suposto autor – não se pode dizer que uma decisão judicial de absolvição seja socialmente mais revigorante que aquela do arquivamento. Absolvição pressupõe acusação; arquivamento não…
Extinção da punibilidade também não significa, rigorosamente, absolvição! Entre as duas alternativas defeituosas, ficamos com aquela menos gravosa…”[6] (grifamos)
Portanto, concluímos, concordado com as teses expostas neste trabalho, afirmando que submeter o indiciado ao processo judicial, ainda que para reconhecimento da extinção da punibilidade, é mais gravoso do que o pedido de arquivamento com igual fundamento. Ainda, o pedido de arquivamento nestes moldes tem, de forma suficiente, capacidade de produzir a tão almejada coisa julgada material, uma vez que suficiente a impedir o desarquivamento do inquérito com base em novas provas, preconizado no art. 18 do Código de Processo Penal.
Tal interpretação é vislumbrada, desde que houve a alteração dos mencionados artigos do estatuto processual penal recomendado. Logo, aduzir o Favor Rei para benefício do indiciado, fazendo com que o mesmo fosse submetido a um processo judicial, transformando-o em réu, significaria tremendo engano, pois o instituto funcionaria apenas para submetê-lo de modo inconveniente ao vexatório processual, impondo indevidamente ônus desnecessário e injusto a sua pessoa.
Ainda, nesta conclusão, exigir do membro do Ministério Público que ofereça denúncia, mesmo que para atingir decisão sumária de absolvição com fundamento em causa extintiva de punibilidade pré existente ao processo penal a ser instaurado, ofenderia o dispositivo constitucional do art. 129, I, da Constituição Federal de 1988, por meio do qual se estabelece a exclusividade de iniciar a ação penal pública pelo Parquet. Isto é, ofender-se-ia a opinio delicti do Promotor de Justiça, danificando-se a independência funcional deste membro do Ministério Público insculpida no princípio do Promotor Natural.
[1] Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10º edição, editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, pags. 61 e 62.
[2] Lopes Jr., Aury, Direito Processual Penal e sua conformidade Constitucional. Vol.I, 2º tiragem, 4º edição, editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, pag. 362.
[3] Lopes Jr., Aury, Direito Processual Penal e sua conformidade Constitucional. Vol.I, 2º tiragem, 4º edição, editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, pag. 364.
[4] Lima, Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. 3º edição, editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, pag. 118.
[5] Barros, Francisco Dirceu. Direito Processual Penal, vol.I, Rio de Janeiro, 1º edição, editora Elsevier, 2005, Rio de Janeiro, pag. 378.
[6] Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10º edição, editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, pg. 62.