Sociologia

As Aventuras de Marx e o Barão de Münchhausen – Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento, de Michael Löwy

INTRODUÇÃO – VISÕES DE MUNDO, IDEOLGIAS E UTOPIAS NO CONHECIMENTO CIENTÍFICO-SOCIAL

Quais são as condições para tornar possível a objetividade nas ciências sociais? As tentativas de lhes apresentar uma resposta coerente
ligam-se de uma maneira ou de outra a três grandes correntes de pensamento: o positivismo, o historicismo e o marxismo. Existem poucos conceitos há
história da ciência moderna tão enigmáticos e polissêmicos quanto o de “ideologia”; este tornou-se, no decorrer dos últimos dois séculos, objeto de uma
inacreditável acumulação de ambiguidades, paradoxos, arbitrariedades, contrassensos e equívocos.

A definição de ideologia (em oposição à utopia) como uma forma de  pensamento orientada para a reprodução da ordem estabelecida nos
parece a mais apropriada porque ela conserva a dimensão crítica que o termo tinha em sua origem (Marx). O que Mannheim chama de “a ideologia total”,
quer dizer, a perspectiva de conjunto, a estrutura categorial, o estilo de pensamento socialmente condicionado – que pode ser ideológico ou utópico -,
é o de visão social de mundo.

A mesma visão de mundo que pode ter um caráter utópico num dado momento histórico para tornar-se, em seguida, numa etapa ulterior, uma
ideologia (é o caso do positivismo e de certas formas do marxismo).

A questão que este livro examina é, portanto, a da relação entre visões sociais de mundo (ideológicas ou utópicas) e conhecimento. A
perspectiva deste ensaio é, pois, uma introdução à sociologia do conhecimento, isto é, ao estudo das relações entre classes ou categorias sociais e
conhecimento científico da sociedade.

O POSITIVISMO OU O PRINCÍPIO DO BARÃO DE MÜNCHHAUSEN

O positivismo – em sua figuração “ideal-típica” – está fundamentado na sociedade regida por leis naturais, podendo ser
epistemologicamente assimilada pela natureza e nas ciências firmadas de forma neutra, livre de julgamentos ou ideologias.

O axioma da neutralidade valorativa das ciências sociais conduz, logicamente, o positivismo a negar o condicionamento histórico-social do
conhecimento.

A UTOPIA POSITIVISTA: CONDORCET E SAINT-SIMON

O positivismo moderno nasceu como um legítimo descendente da filosofia do Iluminismo. Aplicando o novo método à moral, à política e à
economia pública, pode-se seguir nas ciências sociais um caminho quase tão seguro quanto o das ciências da natureza.

O combate à ciência social livre de “paixões” é, portanto, inseparável da luta revolucionária de toda a filosofia Iluminista contra os
preconceitos, isto é, contra a ideologia tradicionalista (principalmente clerical) do Antigo Regime.

S. Simon fala frequentemente do “corpo social” e define a ciência da sociedade como uma filosofia social constituída  pelos fatos
materiais que derivam da observação direta da sociedade.

A IDEOLOGIA POSITIVISTA: COMTE ATÉ NOSSOS DIAS

Não é por acaso que Auguso Comte – e não Condorcet ou S. Simon – seja considerado o fundador do positivismo. Comte irá romper com um
discurso cuja carga crítica e “negativa” lhe parece ultrapassada e perigosa.

Evidentemente a ordem a que aspira Comte não é de antes de 1789, que os doutrinários do absolutismo queriam restaurar: trata-se de uma
nova ordem industrial, contendo do progresso – isto é, o desenvolvimento da indústria e das ciências. “As leis naturais que,no sistema de sociabilidade
moderno, devem determinar a indispensável concentração das riquezas entre os chefes industriais”.

A semente do positivismo comtiano, sua pesquisa metodológica, estava destinada a tornar-se um dos pilares da ciência universitária (ou
institucional) moderna, até hoje.

A sociologia assim entendida não será nem individualista, nem comunista, nem socialista… Por princípio, ela ignorará estas teorias, às
quais ela não poderia reconhecer valor científico, já que elas tendem diretamente a não expressar os fatos, mas reforma-los”. Em outros termos: o
sociólogo deve “ignorar” os conflitos  ideológicos, “fazer calar as paixões e os preconceitos”.

MAX WEBER: A CIÊNCIA LIVRE DE JULGAMENTOS DE VALOR

Max Weber não deveria ser considerado como um autêntico positivista; suas concepções metodológicas são bastante distantes do positivismo
e, em certos aspectos, diretamente contraditórias em relação a ele. De acordo de Lucien Goldmann, a posição de Weber se situa “a meio caminho entre o
desconhecimento da determinação social do pensamento sociológico pelos discípulos de Durkheim e sua integral aceitação pelos marxistas”.

Em que medida se pode então falar de uma convergência entre Max Weber e a problemática positivista? Sua teoria da ciência social como
necessariamente fundamentada sobre um ponto de vista preliminar não está no polo oposto da exigência de Durkheim de afastar “as prenoções”? É na
segunda versão de sua Wissenschaftslehre, que analisa as condições de possibilidade de objetividade do conhecimento científico-social, que ele
vai se aproximar do positivismo.

O remédio que Weber parece propor para esta enfermidade é “o dever elementar do controle científico de si próprio”.

KARL POPPER E A OBJETIVIDADE INSTITUCIONAL

Karl Popper é um dos raros autores desde Weber que introduziram um ponto de vista novo da problemática positivista.

Enquanto procurar ao menos vincular o ponto de vista a certas configurações históricas e socioculturais, Popper permanece
significativamente silencioso a este respeito. O reconhecimento lúcido de que a objetividade científica não poderia ser o resultado de qualquer “boa
vontade” individual do homem da ciência, de sua pretensa capacidadede se liberar de seus próprios “preconceitos”.

Se a démarche da “objetividade institucional” é possível (com certas limitações) no domínio das ciências naturais, é precisamente porque
as visões de mundo, as ideologias e os pontos de vista não desempenham nelas um papel tão decisivo como nas ciências da sociedade. Ao teimar em negar
esta diferença essencial, Popper, como todos os positivistas, é incapaz de dar conta dos problemas específicos da objetividade científico-social.

Popper parece reconhecer que existe, já que afirma que todo o conhecimento dos fatos está necessariamente articulado por uma teoria e,
portanto, por mitos e preconceitos.

O HISTORICISMO OU A LUZ PRISMADA

É impossível abordar, mesmo de maneira pouco aprofundada, a questão da objetividade científico-social e de suas condições de
possibilidade de enfrentar a problemática historicista e seu ponto de convergência inexorável: o relativismo.

As ideias essenciais do historicismo podem ser resumidas nas proposições seguintes:

1)    Todo fenômeno cultural, social ou político é histórico e não pode ser compreendido senão através de e na historicidade.

2)    Existem diferenças fundamentais entre os fatos naturais e os fatos históricos e, consequentemente, entre as ciências que os estudam.

3)    Não somente o objeto da pesquisa está imerso no fluxo da história, mas também o sujeito, o próprio pesquisador, sua perspectiva, seu método, seu
ponto de vista.

O HISTORICISMO CONSERVADOR

O historicismo moderno apareceu, como se sabe, no fim do século XVIII-início do século XIX, sobretudo na Alemanha. Romântico, nostálgico
do passado pré-capitalista, da cultura gótica, das instituições medievais, do direito feudal tradicional, ele revela o sentido da história e se opõe à
abstração racionalista, a-histórica, do século XVIII na França, à ruptura revolucionária com o passado. Ele se manifesta sob formas múltiplas: o
romantismo literário e político, a escola historicista do direito, a historiografia moderna. Tem também o mérito de questionar a démarche (procedimento) analítica e quantificadora do pensamento racionalista/burguês, desenvolvendo um “estilo de pensamento” que visa apreender a totalidade e
o qualitativo.

Reconhecer o enraizamento histórico das instituições e defender a manutenção desta continuidade secular são concebidos como dois aspectos
solidários de uma única e mesma démarche, oposta à atitude inovadora e a-histórica (as vezes anti-histórica) do Iluminismo e da Revolução.

Não é o historiador que avalia, é a própria história que é carregada de valores; o historiador, descreve Ranke, “não é senão um órgão de
um espírito geral que fala através dele”: ele não julga, é a história que julga.

Se todo fenômeno social ou cultural é histórico (portanto limitado no tempo), o ponto de vista do historiador não seria ele próprio
historicamente relativo? Droysen escrevia: “Eu não aspiro atingir senão, nem mais nem menos, a verdade relativa a meu ponto de vista tal como minha
pátria, minhas convicções políticas e religiosas, meu estudo sistemático me permitem acesso.”

O HISTORICISMO RELATIVISTA

Perto do fim do século XIX, o historicismo alemão começa a mudar de caráter: o próprio ponto de vista conservador aparece como
historicamente superado.

O primeiro representante – e também na opinião do autor o mais importante e mais coerente – desta tendência é Wilhelm Dilthey. Dilthey
“se volta menos contra om positivismo que contra o materialismo histórico”.

Sua contribuição decisiva é a percepção profundamente lúcida da historicidade das ciências do espírito. “Cada visão de mundo é
historicamente condicionada, portanto, limitada, relativa… Cada uma exprime nos limites de nosso pensamento, uma dimensão do universo. Cada uma é,
consequentemente, verdadeira”. Falamos somente de quadros, dos quais cada um é verdadeiro, mas nenhum capaz de abranger toda a realidade, e se opondo
de forma incompatível no pensamento. É raro que um pensador confesse, com tanta sinceridade, sua dificuldade em encontrar uma solução para “o problema
fundamental” de sua obra.

Com a obra de Georg Simmel, o historicismo relativista não conseguiu escapar à tentação eclética. Contrariamente a Dilthey, Simmel
pertence (assim como Max Weber) a uma geração que não pôde deixar de fazer um ajuste de contas metodológico com o marxismo.

Como evitar o relativismo total e seu corolário epistemológico: o ceticismo?

A solução esboçada por Simmel é do tipo “sintética”, isto é, eclética: ele se propõe a “dissolver as cristalizações dogmáticas” no
movimento fluido do conhecimento, cuja unidade resulta da “complementariedade e dependência recíproca” dos diferentes princípios finais; graças a esta démarche, “métodos subjetivos podem se aproximar – em um processo infinito de relação recíproca – do ideal da verdade objetiva”.

Sendo possíveis muitos tipos de “combinações” entre visões de mundo ou de métodos, como saber qual é a “verdadeira”, “objetiva”? O
ecletismo não permite em nada escapar aos dilemas suscitados pelo historicismo relativista; ele não faz senão recoloca-los novamente sob outra forma.

Uma variante da solução eclética no quadro do historicismo é a obra de Ernest Troeltsch. Troeltsch mostra como avanço da consciência
histórica no século XIX “uma historicização fundamental de nosso pensamento sobre o homem, sua cultura e seus valores”, tendo como resultado “uma
dificuldade crescente de encontrar pontos de apoio neste oceano em movimento”.

Paradoxalmente, é por esta solução metafísica que Troeltsch está mais próximo do historicismo radical que Dilthey: contrariamente a
Simmel, ele parece implicitamente reconhecer a impossibilidade de uma síntese eclética puramente científica.

A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE KARL MANNHEIM

Com a obra de Karl Mannheim, o historicismo relativista se desenvolve e se metamorfoseia mais uma vez: sua nova imagem é de uma
sociologia histórica do conhecimento (tingida de marxismo), à procura de um fundamento social para a solução eclética tradicional. Seu ponto de partida
é, paradoxalmente, um idealismo metafísico no polo oposto do historicismo.

Quando Troeltsch escreve que não existe nenhum livro sério a dialética marxista de um ponto de vista filosófico, Mannheim protesta,
escrevendo na margem: “Lukács”.

No ensaio de 1924, Historismus – um de seus escritos mais ricos, que contém em germe o conjunto das ideias que ele iria
desenvolver nos dez anos seguintes –, sua ideia principal é a “dependência situacional” de todo conhecimento histórico: não existe nenhuma afirmação
sobre a história na qual não penetre a posição filosófico-histórica do sujeito observador.

Para Mannheim, a formação e evolução do conjunto dos grupos sociais estão fundamentadas nas relações de produção de dominação. Mesmo um
crítico marxista tão hostil como Lukács em A destruição da razão reconhece a sua maneira, afirmando de Mannheim foi “obrigado” a capitular
diante do “materialismo histórico”.

Todavia, após ter seguido de perto o marxismo da definição da sociologia do conhecimento, Mannheim se separou dele em um certo momento
para empreender uma démarche relativista-eclética inspirada na tradição historicista.

Uma das questões centrais da ideologia foi sempre saber qual a classe social cujo ponto de vista permite o máximo de conhecimento
possível em uma época determinada. Certos autores marxistas criticaram Mannheim por ter querido simplesmente fazer da verdade o apanágio dos
universitários e diplomados. É inegável que a intelligentsia é uma camada relativamente autônoma com relação às classes sociais, e que seu
comportamento não pode ser mecanicamente explicado em função de sua origem social. Mannheim parece reconhecer que a intelligentsia está
necessariamente dividida entre polos da luta de classe e obrigada a se aliar a um deles.

Alguns anos mais tarde, após o triunfo nazista na Alemanha e sua partida forçada para a Inglaterra (1933), Mannheim escreverá uma
introdução para a edição inglesa de Ideologia e utopia (1936), que desenvolve o relativismo, resultante da sociologia do conhecimento, deve abrir o
caminho a uma autoconsciência crítica científica, fundamento de uma nova objetividade. Em nossa opinião, esta “nova” solução não é nada mais do que uma
versão ligeiramente mais sofisticada das velhas receitas positivistas; para superar o “princípio da carruagem” de Weber, Mannheim não encontra outra
solução se não voltar ao “princípio de Barão de Münchhausen”: o pesquisador científico se livra, arrancando pelos seus próprios cabelos (“autoanálise
crítica”), do pântano onde seu cavalo afundou (“as motivações inconscientes-coletivas”).

As concessões tardias de Mannheim ao positivismo não impediram uma rejeição unânime de Ideologia e utopia ocuparam da obra. Sua
principal crítica, incessantemente repetida, é que a sociologia historicista/relativista do conhecimento não pode senão a si negar a si própria.

Em nossa opinião, o momento relativista é precisamente um dos aspectos mais fecundos da tradição historicista da qual Mannheim é o
principal representante na sociologia moderna. Toda a lúcida do problema da objetividade científico-social deve dialeticamente em seguida, na
perspectiva de uma sociologia crítica do conhecimento.

O MARXISMO OU O DESAFIO DO “PRINCÍPIO DA CARRUAGEM”

Certos teóricos marxistas (especialmente sob influência do positivismo) procuraram contornar o problema apresentando o marxismo com a
ciência da sociedade (ou da história), objetiva e sem vínculos sociais, isto é, excluindo-o do processo geral da determinação social da consciência e
do conhecimento – o que os fez na realidade cair na armadilha do “princípio da carruagem” tal como enunciado por Max Weber: se o materialismo histórico
é um princípio de explicação universal, como poderia deter-se como uma vulgar carruagem, diante do próprio pensamento marxista?

Por que a visão de mundo proletária será mais favorável ao conhecimento social que a visão de mundo das outras classes?

INTELIGÊNCIA E CIÊNCIA SEGUNDO MARX

Como Marx concebia a contradição – ou articulação – entre ciência e ideologia no conhecimento social? Procurar-se-á em vão em suas obras
uma sistematização teórica do problema; mas a partir de um conjunto de fragmentos esparsos, pode-se procurar reconstruir as principais linhas em
questão a economia política, mas nos parece que suas conclusões metodológicas essenciais são aplicáveis ao conjunto das ciências sociais. A
problemática da autonomia relativa da ciência é, nos escritos de Marx, um complemento essencial (em geral implícito) à sua crítica das limitações
ideológicas da economia política.

De acordo com Althusser, “é realmente próprio de toda a concepção ideológica, sobretudo se ela se submete a uma concepção científica
desviando-a do sentido, ser governada por ‘interesses’ exteriores à necessidade única do conhecimento”. Não e senão por um análise sócio-histórica, em
termos de classes sociais que pode compreender a evolução de uma ciência social; é o social que esclarece e explica o psicológico.

Este jogo de claro-escuro epistemológico, esta dialética paradoxal entre utopia “reacinária”, ideológica “progressista” e ciência social
– presentes em Marx como sugestão ou corolário implícito – indicam a necessidade de superar toda a visão linear e evolucionista do desenvolvimento da
ciência social e de sua relação com o campo das lutas de classes.

A partir de 1830, como vimos, abre-se  um novo período. Em seu livro Miséria da filosofia, Marx acrescenta: “ Mas à medida que a história
avança e com ela a luta do proletariado se delineia mais claramente, ele (os socialistas e comunistas) não tem mais necessidade de procurar ciência em
seu espírito, apenas devem se dar conta do que se passa diante dos seus olhos e expressá-lo… A partir deste momento, a ciência produzida pelo
movimento histórico, e se associando a ele com plena consciência da causa, deixou de ser doutrinária: ela se tornou revolucionária”.

A démarche de Marx tem grande vantagem de evitar os dois recifes onde o marxismo posterior encalhará (bastante frequentemente),
com uma vontade e uma obstinação sempre renovadas: o reducionismo sociológico (ou ideológico ou econômico) que não percebeu os confrontos teóricos e
científicos se não em termos de classe, e o positivismo vergonhoso, que pretende dissociar inteiramente o desenvolvimento da ciência social (e o
marxismo em particular) de luta de classe e conflitos ideológicos.

MARXISMO E POSITIVISMO NO PENSAMENTO DA SEGUNDA INTERNACIONAL

O poder da ideologia positivista era tal, no fim do século XIX e início do século XX, que acabou por penetrar também, e muito
profundamente, na doutrina do movimento operário socialista à época da Segunda Internacional. Não somente nas correntes chamadas “revisionistas” mas no
seio do próprio “marxismo ortodoxo”. É neste momento que aparecem concepções que visavam fazer do marxismo uma teoria “puramente científica”, que
escaparia às determinações sociais e às ideologias – concepções contra as quais Marx Weber lançaria o apelo da esquerda revolucionária (e em particular
Rosa Luxemburgo) escapariam da influência positivista.

O principal erro do autor de O Capital seria o fato de que ele “subordina as exigências científicas a uma tendência” e torna-se assim
“prisioneiro de uma doutrina” (a do objetivo final socialista) que o impede de alcançar uma cientificidade objetiva.

Enrico Ferri disse: “O socialismo científico, especialmente na Alemanha, sob a influência direta do marxismo, abandonou completamente
estes métodos do romantismo revolucionário”.

O positivismo não era somente o apanágio de correntes revisionistas ou ecléticas da Segunda Internacional; ele modelou, em grande medida
do próprio “marxismo ortodoxo” e especialmente daquele que era o seu principal representante: Karl Kautsky. Kautsky tendia a assimilar a natureza e a
sociedade, pretendendo que as leis da sociedade podiam ser definidas como leis naturais “porque na sua essência elas não se distinguem”.

Ele insistia sobre o princípio de que o socialismo científico não comporta nenhum “ideal”, sendo simplesmente “a busca científica das
leis da evolução e do movimento do organismo social”. Ele escreveu: “Em uma sociedade atravessada pelos antagonismos de classe, um conhecimento
científico novo… implica em geral prejuízo para os interesses de certas classes. Descobrir e difundir conhecimentos científicos que são
contraditórios com os interesses das classes dominantes significa lhes declaram a guerra.”

Esta orientação semipositivista não era exclusiva a Kautsky: ela se encontra na maior parte dos representantes do “centro ortodoxo”
(oposto tanto à direita revisionistas quanto à esquerda revolucionária) da Segunda Internacional.

O cientificismo impregna também a obra de G. V. Plekhanov, o pai do marxismo russo. Partidário do “método objetivo”, ele queria eliminar
do socialismo científico todo o elemento “subjetivo”, todo “dever-ser”, toda “utopia”. Por exemplo, de acordo com Lenin, “em uma sociedade fundada na
luta de classes, não poderia haver ciência ‘imparcial’. Toda ciência oficial e liberal defende, de uma forma ou de outra, a escravidão assalariada,
enquanto o marxismo declara uma guerra implacável a esta escravidão”. Lenin enfatiza que o marxismo “associa o espírito revolucionário a um caráter
altamente científico”. A posição de Lenin tem a vantagem de restabelecer a unidade dialética entre ciência e revolução no marxismo.

Uma concepção análoga desenvolvida, se desdobra através da obra de Rosa Luxemburgo. Rosa Luxemburgo não concebia o engajamento na luta de
classes senão das ciências que se ocupam das “quentões sociais”: distinguindo assim ciências da sociedade e ciências da natureza, ela escapa tanto à
hipoteca positivista quanto à armadilha de um “ideologização” das ciências naturais. Uma ciência social não-partidária é uma ilusão “ no momento”: é
apenas no futuro, isto é, em uma sociedade sem classes, que poderá existir uma ciência “universalmente humana”.

A superioridade de Rosa Luxemburgo sobre Kautsky, Hilferding e outros marxistas-positivistas é que ela não procura excluir o marxismo de
campo da aplicação do materialismo histórico (“princípio da carruagem”); de forma explícita e resoluta, ela afirma seu caráter de classes e seus
limites históricos: em uma palavra, ela não hesita em aplicar o marxismo a si mesmo.

O MARXISMO HISTORICISTA (LUKÁCS, KORSCH, GRAMSCI, GOLDMANN)

Designamos pelo termo marxista historicista uma corrente metodológica no seio do pensamento marxista que se distingue pela importância
central atribuída à historicidade (dialeticamente concebida) dos fatos sociais e pela disposição em aplicar o materialismo histórico a si mesma.

O primeiro – e talvez o mais importante – representante desta corrente foi Georg Lukács. Para Lukács em seu História e consciência de classe (1923), todo conhecimento da sociedade está intimamente ligado à consciência de classe de uma camada social
determinada: os limites do conhecimento decorrem da situação de classe.

A consciência de classe burguesa “deve necessariamente obscurecer-se desde o momento em que surgiram problemas cuja solução remetia para
além do capitalismo” (como as crises, por exemplo). “Porque o método marxista, a dialética materialista enquanto conhecimento da realidade, não é
possível senão a partir do ponto de vista de classe, do ponto de vista da luta do proletariado”.

Contudo, Lukács não se limita a esta afirmação de superioridade cognitiva do ponto de vista proletária; ele procura – e essa é, sem
dúvida, uma das contribuições mais importantes e essenciais do livro – justifica-los por argumentos históricos e sociais concretos.

Encontramos aqui o aspecto crucial que distingue radicalmente o proletariado da burguesia como classe revolucionária. A vitória das
forças burguesas contra o mundo feudal não exigia um conhecimento objetivo da realidade histórica e social: “o sentido de suas ações lhes pertencia
oculto e era confiado à ‘astúcia da razão’ do processo de evolução”. O proletariado, pelo contrário, foi colocado pela história diante da tarefa de uma
transformação consciente da sociedade.

O materialismo histórico não é somente um instrumento de conhecimento; ele também é, ao mesmo tempo, um instrumento de ação. A démarche dialética de Lukács em História e consciência de classe apresenta por isso a vantagem inegável de ser coerente em relação ao
método marxista e de frustrar as armadilhas tanto do “princípio da carruagem” como do relativismo total.

No mesmo momento em que aparece História e consciência de classe, Karl Korsch publica sua obra Marxismo e filosofia (1923), que se situa
em uma perspectiva metodológica muito próxima de Lukács. Criticando o cientificismo marxista-positivista de um Hilferding e de outros pensadores da
Segunda Internacional, Korsch mostra que o marxismo é uma ciência nova que exprime, ao nível teórico, o movimento revolucionário do proletariado.

Entretanto, falta a Korsch como a Lukács análises ou instrumentos conceituais capazes de dar conta, de forma mais precisa, das
modalidades da autonomia da ciência marxista com relação à consciência e à prática proletárias.

A terceira grande contribuição historicista-marxista ao debate sobrea relação ideologia-ciência é a de Gramsci, em seus Quaderni del Carcere. Gramsci distingue entre dois tipos de ideologia:

1)    As elocuções metafísicas inventadas por certos indivíduos, arbitrárias e ilusórias.

2)    As ideologias historicamente orgânicas que são necessárias a uma certa estrutura, isto é, aquelas que constituem “uma concepção de mundo que se
manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida individual e coletiva.”

“A ciência não se apresenta jamais como uma concepção objetiva nua: ela aparece sempre revestida de uma ideologia”. Daí sua rejeição total ao
positivismo e, em particular, da sociologia positivista.

Gramsci insiste no fato de que Marx não constitui uma unidade em uma série de grandes homens da ciência: ele é o fundador de uma nova
visão de mundo e inaugura intelectualmente uma época histórica que provavelmente durará séculos. Ao mesmo tempo, ele reconhece, como outros
marxistas-historicistas, o condicionamento histórico e social do próprio marxismo (que ele designa, como se sabe, pelo termo “filosofia da práxis”). A
filosofia da práxis não é o instrumento de grupos dominantes para assegurar a hegemonia sobre as classes subalternas. Em outras palavras: é necessário
distinguir logicamente o conceito de O Capital em Marx e o capital real, mas os dois são historicamente ligados, são uma unidade inseparável: o
conceito não poderia emergir sem um certo grau de desenvolvimento do capitalismo.

No pós-guerra, é a obra de Lucien Goldmann que representa a tentativa mais importante de formular uma solução marxista-historicista ao
problema da objetividade científico-social e de constituir, a partir de Lukács, uma sociologia diferencial do conhecimento.

De acordo com Goldmann, a tese central a constitutiva da sociologia do conhecimento é que a estrutura categorial da consciência do
pesquisador é um fato social que se relaciona com as aspirações e interesses dos diferentes grupos sociais.

Esta identidade parcial do sujeito e do objeto é que explica, de acordo com Goldmann, o papel das classes sociais, seus interesses e
valores, suas visões de mundo e ideologias, nas ciências humanas.

Os valores das classes sociais agem sobre as estrutura categorial dos pensadores e condicionam a sua percepção dos fatos. Não é senão a
partir de um certo ponto de classe, no quadro de uma visão social de um mundo determinada, que este ou aquele fato é interpretado como “fundamento” de
um valor.

Na opinião do autor, um dos maiores méritos de Goldmann na história do pensamento marxista e uma das suas contribuições mais originais é
esta ideia ousada e “heterodoxa” de uma aposta que implica uma análise das possibilidades objetivas existentes na realidade social, mas que é, em
última análise, irredutível a uma demonstração puramente factual. No curso dos anos 60, Goldmann colocará em dúvida, muitas vezes, tanto a aposta sobre
o papel revolucionário do proletariado como laço entre o marxismo e a consciência de classe proletária.

Concluindo, parece-nos que é a corrente historicista do marxismo que produziu as ideias mais férteis e mais profundas para uma solução
dialética, escapando assim tanto às armadilhas do “princípio da carruagem”. A principal fraqueza, a tentação reducionista, entre o condicionamento
social do pensamento e a autonomia da prática científica.

O MARXISMO RACIONALISTA DA ESCOLA DE FRANKFURT

Para examinar a posição da Escola de Frankfurt sobre a relação entre a Teoria Crítica e o ponto de vista de classe; abordaremos,
sobretudo, os escritos de Horkheimer e Marcuse no curso dos anos 30 e os de Adorno no pós-guerra.

A Teoria Crítica não pretende ser “axiologicamente neutra”; ela nega uma tal possibilidade no domínio do conhecimento social e proclama
aberta e orgulhasamente seu engajamento em defesa de certos valores, seu caráter partidário, sua adesão a certas pressuposições e valores, e pensa
escapar assim aos dilemas do relativismo.

Horkheimer foi desde o início hostil às teses de Mannheim. Em 1930, ele publicou um comentário sobre Ideologia e utopia que rejeita
categoricamente o conjunto do livro, insistindo, entre outros argumentos, no fato de que o relativismo de Mannheim “confundia verdadeiro de falso com
autêntico e inautêntico”. Horkheimer parece estranhamente cego ao fato de que Mannheim tem uma solução para superar o relativismo: a síntese das
diferentes visões de mundo parciais.

O debate de Marcuse com a sociologia do conhecimento é muito mais esclarecedor. Em um ensaio em 1929, ele reconhece como um aspecto
positivo o fato de Mannheim – em oposição às concepções “revisionistas” e neokantianas do marxismo como “sociologicamente neutro”.

A Teoria Crítica reconhece abertamente seu engajamento em relação a certas posições morais e políticas, recusando o mito confortável de
um conhecimento “neutro” da sociedade. Mas após rejeitar (ou ignorar) a solução de Mannheim da “síntese”, como ela evita a armadilha do relativismo
total? Como conciliar seu caráter partidário confesso com uma pretensão a uma verdade objetiva?

Tanto Horkheimer como Marcuse são sensivelmente influenciados pela problemática lukacsiana; sem poder nem aceita-la, nem negá-la
inteiramente, eles parecem lutar interiormente com ela durante os anos 30. A evolução de Marcuse durante os anos 20 e 30 parece conduzir a uma posição
semilukacsiana. Marcuse não funda a superioridade objetiva do proletariado como classe (como Lukács), mas sobre o maior valor ético (segundo critérios
trans-históricos) do objetivo pelo qual luta a classe: sociedade socialista.

Esta formulação poderosa e ousada foi, sem dúvida, influenciada pelo conjuntura histórica: a crise de 1929 e o avanço ameaçador do
fascismo na Alemanha. Mas ela transcende este momento preciso e exprime certas convicções fundamentais e permanentes de Herbert Marcuse:

1)    Uma negação radical e irreconciliável da ordem estabelecida e a aspiração à sua transformação revolucionária total.

2)    O conceito de essência humana como fundamento ético e filosófico da teoria e da práxis revolucionárias.

3)    O papel histórico do proletariado enquanto protagonista da revolução, como tese anexa e subordinada. Em outras palavras: a base “ontológica” ou
“epistemológica” da Teoria Crítica não é o proletariado (como Lukács) mas a essência humana, negada e oprimida pelo capitalismo.

Por que a relação do teórico crítico com o proletariado em si mesma não constitui, nesta sociedade, a garantia de uma tomada de
consciência correta.

O único meio para superar esta contradição é, de acordo com Horkheimer,  – e esta é certamente uma das ideias mais fecundas e
interessantes do ensaio – o diálogo entre “os setores mais avançados da classe” e “os indivíduos que enunciam a verdade a seu respeito”.

Martin Jay escreveu na sua já clássica história do Instituto de Pesquiso de Frankfurt: “a insistência da Escola de Frankfurt sobre a
razão era uma das características mais essenciais de seu trabalho… como Horkheimer o repitirá várias vezes durante sua trajetória, a racionalidade é
a raiz de toda teoria social progressista… De todos os membros do Instituto, Marcuse era talvez o mais atraído pela noção clássica de razão… (para
a Teoria Crítica) é a verdade tudo o que favorece a mudança social na direção de uma sociedade racional.

Horkheimer e Marcuse, eram partidários (e engajados) não somente de valores abstratos, mas também da solução concreta proposta pelo
marxismo e pelo movimento proletário revolucionário

IDEOLOGIA ESTALINISTA E CIÊNCIA

Não se pode estudar a relação ideologia/ciência no marxismo sem fazer referência ao “fenômeno estalinista”, e em particular a suas
manifestações durante os anos 1948-1953. Evidentemente, o estalinismo é um fato social e político que ultrapassa amplamente a figura de Joseph
Vissarianovitch Stalin e seu “culto da personalidade”: trata-se da formação da URSS de uma camada social burocrática, proveniente de proletariado e/ou
do movimento operário russo, que se formou como uma categoria separada com interesse e práticas sociais distintas.

A doutrina estalinista é a expressão do ponto de vista desta camada burocrática. Como esta não constitui classe social, ela não é capaz
de criar uma nova visão social de mundo: ela se contenta com a deformação/mascaramento do marxismo e sua transformação em ideologia conservadora de um
poder, de um sistema social e político estabelecido, da dominação de um stand social privilegiado.

O estalinismo se manifesta também, evidentemente, como reflexo ideológico, no movimento comunista organizado em torno da URSS, o que lhe
dá a característica de um fenômeno a nível mundial. Ele apareceu como fenômeno novo, sem precedentes no marxismo: uma tentativa de ideologização das próprias ciências da natureza.

A expressão mais acabada desta démarche estalinista foi, evidentemente, o caso Lyssenko. Acabou que a partir de 1964, a genética
mendeliana foi “reabilitada” na URSS e Lyssenko demitido de seu posto de direção do Instituto de Genética. A ciência soviética devia, portanto, se
submeter não somente a uma doutrina filosófica, mas também a uma ideologia política e mesmo à “linha” conjuntural estabelecida pelo Comitê Central do
Partido.

Foi uma reação contra o delírio ideológico dos anos 50, que Louis Althusser iria elaborar nos anos 60 sua concepção da ciência e do
marxismo como ciência. Em resumo:

1)    A ciência social como prática independente com relação às lutas sociais, leberada de toda a ligação de classe (tese que ele defende)

2)    A ciência social como expressão imediata e exclusiva de uma classe: no caso do marxismo, o proletariado (tese justamente atribuída aos
“esquerdistas teóricos”).

É na medida em que esta identificação foi abalada – provavelmente pelos acontecimentos de maio de 1968 – que Althusser superou, ao menos parcialmente,
suas concepções semipositivistas (e neoestalinistas) de 1965. Por exemplo, em 1970, em um texto sobre o Jovem Marx (que ele publicaria mais tarde no
volume Elementos de autocrítica), ele reconheceria: “É necessário, portanto, abandonar a posição teórica das classes dominantes e se colocar do ponto
de vista a partir do qual estes mecanismos podem se tornar visíveis, isto é, do ponto de vista do proletariado”.

CONCLUSÃO – AS PAISAGENS DA VERDADE E A ALEGORIA DO MIRANTE (PARA UMA SOCIOLOGIA CRÍTICA DO CONHECIMENTO)

O MODELO CIENTÍFICO-NATURAL DE OBJETIVIDADE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

A formação do modelo científico-natural de objetividade, a constituição de uma ciência da natureza livre de julgamentos de valor e de
pressupostos ideológicos, foi o resultado de vários séculos de desenvolvimento do capitalismo. No momento em que o capitalismo torna-se o modo de
produção dominante nas principais metrópoles europeias (no fim do século XVIII, início do século XIX), a ciência da natureza pode-se emancipar
definitivamente de toda a dependência para com as ideologias religiosas ou éticas do passado.

Evidentemente, esta distinção não deve ser concebida de forma absoluta; não existe uma divisão estanque entre as ciências humanas e as
ciências da natureza: mesmo se os seus domínios respectivos estão claramente delimitados, há necessariamente entre as duas uma no man’s land, um
espaço cognitivo intermediário, uma zona de transição onde as esferas de tocam, se interpretam, se cobrem e recortam parcialmente.

1)    O caráter histórico dos fenômenos sociais e culturais, produzidos, reproduzidos e transformados pela ação dos homens.

2)    O observador é parte da realidade que estuda.

3)    Os problemas sociais são o palco de objetivos antagônicos das diferentes classes e grupos sociais.

4)    Os cientistas – como os intelectuais em geral – tendem a se vincular a uma das visões sociais de mundo.

A realidade social, como toda a realidade, é infinita. Toda ciência implica opção.

Esta direção é a de uma sociologia crítica do conhecimento, que possa explicar as relações entre as classes ou categorias sociais e as ciências da
sociedade.

O MOMENTO RELATIVISTA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

O impasse ao qual conduz o mito positivista de uma ciência da sociedade livre de julgamentos de valor e ideologicamente neutra mostra a
necessidade de procurar outra noção para a construção de um modelo de objetividade científico-social.

Sua formulação mais habitual é a seguinte: à cada época é a classe revolucionária que representa o máximo de consciência possível; este
privilégio, que era no passado da burguesia revolucionária (filosofia do Iluminismo, economia política clássica, etc.), pertence agora à classe de
nossa época: o proletariado.

Ernest Bloch afirma: “Contrariamente a todas as classes que o precedem, o proletariado revolucionário não tem nenhum interesse em
camuflar seus interesses de classe  – isto é, em produzir ideologias”. O ponto de vista do proletariado não é monopólio exclusivo de um único grupo ou
corrente, mas representa, em cada momento histórico, o horizonte comum a uma conjunto de forças políticas e intelectuais, sociais e culturais que
reivindicam a visão proletária – isto é, de sua utopia revolucionária.

PAISAGENS DE VERDADE E AUTONOMIA RELATIVA DA CIÊNCIA

Comparamos várias vezes o cientista social ao pintor de uma paisagem. Ora, esta pintura depende em primeiro lugar do que o artista pode
ver, isto é, do observatório de onde ele se acha situado.

Em nossa hipótese, o observatório mais alto é o ponto de vista do proletariado (pelas razões expostas no capítulo analisado); os mirantes
situados em níveis inferiores correspondem aos pontos de vista de outras classes ou frações de classe.

Vejamos os caso de Ricardo e Sismondi. Existe, enfim, uma parte da paisagem que é visível de todas as alturas: é a “zona de consenso”.  A
paisagem como painel não depende somente do observatório mas também do próprio pintor, de sua forma de olhar e de sua arte de pintar.

O próprio Marx fazia referência a este fenômeno, quando se referia à separação, à distância social e cultural –  “um abismo os separa” –
entre a classe e seus representantes literários, políticos ou científicos.

Sua “arte de pintar”: a ciência (como a pintura, ou toda a atividade cultural) tem sua autonomia, no sentido etimológico grego da palavra
(autonomos: sua própria lei), isto é, seus princípios próprios de atividade.

1)    A intenção-de-verdade

2)    A liberdade de discussão e de crítica

A arte de pintar remete também a uma tradição cultural, um conjunto de obras, um saber acumulado que serve de ponto de partida necessário
para toda a produção. O próprio inovador se situa em relação a esta tradição, que procura criticar e superar, mas que lhe serve necessariamente de
ponto de referência inicial.

A isso se acrescenta um último determinante da autonomia relativa: as qualidades individuais do “pintor”, sua criatividade, imaginação,
rigor, inteligência ou sensibilidade.

O PONTO DE VISTA DOS VENCIDOS NA HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA: REFLEXÕES METODOLÓGICAS A PARTIR DE WALTER BENJAMIN

Walter Benjamin não é um pensador como os outros. É possível defini-lo como marxista, visto que reivindica o materialismo histórico, mas
sua interpretação do pensamento de Marx – nutrida por leituras de György Lucáks e Karl Korsch –  é original e heterodoxa.

Uma das contribuições mais importantes de Walter Benjamin foram suas reflexões sobre a História, suas célebres Teses Sobre o Conceito de História (1940).

Este documento é uma impressionante crítica revolucionária da doutrina do progresso inevitável e das concepções conformistas da história,
as que se identificam com o campo dos vencedores. “Os vencedores de hoje caminham sobre os corpos dos vencidos de hoje (Tese VII)”.

Contra esta visão da história do ponto de vista dos vencedores – dos senhores de escravos, imperadores, aristocratas, conquistadores,
latifundiários, banqueiros, ditadores e industriais – Benjamin propõe uma concepção oposta: a tradição dos oprimidos, o ponto de vista dos vencidos:
escravos, servos, camponeses, o proletariado, as minorias étnicas ou religiosas, as mulheres.

Traduzindo em termo da História moderna da América Latina: a memória de Cuhahutemoc, Tupac Amaru, José Martí, Emiliano Zapata, Augusto
Sandino, Farabundo Martí…

Segundo Benjamin, na Tese VII, a terefa do historiador crítico, do adepto ao materialismo histórico é “escovar a História a contrapelo”.
Percebe-se aqui a influência de Nietzsche (Da utilidade e da inconveniência dos estudos históricos para a vida, 1873).

Um exemplo latino-americano recente permite ilustrar o significado da exigência metodológica de “escovar a História a contrapelo”: as
celebrações do 5º Centenário do Descobrimento da América (1492-1992).

Durante séculos, a História “oficial” do descobrimento da conquista e da evangelização foi não só hegemônica, mas praticamente a única a
ocupar a cena política e cultural. Meio século mais tarde, As veias abertas da América Latina (1981), o célebre livro do uruguaio Eduardo
Galeano, traça, numa poderosa síntese, a ata de acusação da colonização ibérica e da exploração imperial do ponto de vista de suas vítimas: os
indígenas, os escravos negros, os mestiços.

No curso do debate sobre o 5º Centenário, Galeano interveio, em termos quase benjaminianos – não sei se ele lera as Teses de 1940 – ao
chamar a “celebração dos vencidos e não dos vencedores”.

Em suas conclusões finais, os delegados do Encontro afirmaram: “Não, nós não comemoraremos, e sim estimularemos as lutas para acabar com
os 500 anos de opressão e de discriminação.”

Política, cultura e história estão intimamente associadas nos enfrentamentos em torno do 5º Centenário. Contudo, isso não teria
surpreendido Walter Benjamin…

Gisele Witte

Acadêmica de Direito da UFSC

Estagiária no Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar e referenciar este artigo:
WITTE, Gisele. As Aventuras de Marx e o Barão de Münchhausen – Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento, de Michael Löwy. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/sociologia/as-aventuras-de-marx-e-o-barao-de-muenchhausen-marxismo-e-positivismo-na-sociologia-do-conhecimento-de-michael-loewy/ Acesso em: 21 nov. 2024