Ética e Direito – Chaim Perelman*
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma síntese do livro “Ética e Direito” do filósofo belga Chaim Perelman. O livro é divido em dois capítulos. No primeiro Perelman tenta achar um conceito único de justiça, o denominado conceito formal. Sendo assim, descreve seis concepções de justiça na sua forma concreta, explicando e exemplificando cada uma delas. Depois o autor trabalha sobre o conceito único de justiça que englobaria todas as seis concepções concretas de justiça e trabalha com o conceito das chamadas “categorias essenciais.”
A TEORIA FORMAL DE CHAÏM PERELMAN
As seis concepções da justiça concreta
Na sua obra “Ética e Direito”, principalmente na primeira parte Perelman debruçou-se sobre a análise do conceito de “justiça”, nos ofertando, ainda, outras considerações de ordem moral. O autor não pretende formular uma teoria da justiça que seja a mais apropriada e consentânea com a idéia de racionalidade, comparativamente às teorias de outros autores. Pretende, na verdade, a partir de um ponto de vista lógico, examinar os diferentes sentidos da noção de justiça, para deles extrair um substrato comum – a igualdade – que o conduzirá ao conceito de justiça formal ou abstrata. Entretanto, para Perelman, “justiça”, em sua acepção meramente formal, era sinônimo de “igualdade”.
As seis concepções mais correntes da justiça concreta que se afirmaram na civilização ocidental, desde a Antiguidade até nossos dias, segundo Perelman, são:
a)a cada qual a mesma coisa.
Todos devem ser tratados de igual modo, independentemente de qualquer particularidade distintiva (única concepção puramente igualitária)
“No imaginário popular, o ser perfeitamente justo é a morte que vem atingir todos os homens, sem levar em consideração nenhum de seus privilégios”. (p. 9)
b)a cada qual segundo seus méritos.
Exige um tratamento proporcional à presença e ao grau de determinada qualidade (mérito) em cada um.
“Se, na aplicação da justiça, não nos contentamos em recompensar, mas queremos também poder punir, há que ampliar a noção de mérito, de modo que abranja também o demérito” (p. 22)
c)a cada qual segundo suas obras.
Requer um tratamento proporcional ao resultado das ações. “Emprega-se habitualmente essa fórmula de justiça quando se trata de retribuir operários ou de classificar candidatos por ocasião de um exame ou de um concurso”. (p. 23)
d)a cada qual segundo suas necessidades.
Tenta diminuir o sofrimento daqueles impossibilitados de satisfazer suas necessidades essenciais.
e) a cada qual segundo sua posição.
“A aplicação dessa fórmula supõe que os seres, com os quais se desejaria ser justo, estão repartidos habitualmente, mas não necessariamente, em classes hierarquizadas”. (p. 27)
f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.
O juiz deve aplicar uma regra pré-estabelecida
Segundo a primeira concepção da justiça concreta, ser justo é tratar todos da mesma forma, sem considerar nenhuma das particularidades que distinguem os indivíduos. Perelman critica tal concepção, e, de forma irônica, salienta que, sob tal prisma, o único ser perfeitamente justo seria a morte, inexorável e universal. Realmente, é absolutamente injusto, ainda que seja sedutor e “populista”, tal critério; tendo em conta que, a depender do caso concreto, mister se faz conferir certos privilégios, para sopesar algumas desvantagens, de acordo com os usos e costumes.
A segunda concepção da justiça concreta não exige a igualdade de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, ao mérito do indivíduo. A questão é saber o que deve ser levado em conta como mérito ou demérito de uma pessoa, quais os critérios que devem presidir tal determinação, se deve ser considerado o resultado da ação, a intenção do agente ou o sacrifício utilizado. Perelman observa que, partindo-se dessa concepção, pode-se chegar a resultados absolutamente distintos, bastando que não se conceda o mesmo grau de mérito aos mesmos atos dos indivíduos. O que vale é o esforço, a causa da ação, e não o seu simples resultado.
A terceira concepção da justiça concreta, cujo único critério do tratamento justo é o resultado da ação dos indivíduos, é de aplicação infinitamente mais fácil do que a anterior, pois, ao invés de constituir um ideal quase irrealizável, permite só levar em consideração elementos sujeitos ao cálculo, ao peso ou à medida. Daí por que sua aplicação preside tanto o pagamento dos salários dos empregados quanto a definição do resultado de concursos e exames para provimento de cargos públicos.
A quarta concepção da justiça concreta, em vez de levar em consideração méritos dos indivíduos ou de sua produção, tenta reduzir os sofrimentos de que resultam da impossibilidade em que o homem se encontra de satisfazer suas necessidades essenciais. Assim, aqueles que se encontram em situação precária, carecendo de condições consideradas como um mínimo vital, devem ter um tratamento diferenciado.
Perelman afirma que a legislação dos países ocidentais que criou, no século XX, os direitos sociais, como o salário-mínimo e o seguro-desemprego, inspirou-se nessa fórmula de justiça.
A quinta concepção da justiça concreta baseia-se na superioridade de indivíduos em decorrência da hereditariedade (ou do nascimento), sendo muito usada na hierarquização social das sociedades aristocráticas e escravocratas, onde as diferenças de tratamento levam em consideração critérios como a raça, a religião e a fortuna.
A sexta (e última) concepção da justiça concreta é a paráfrase do princípio de “dar a cada um o que lhe é devido” (“cuique suum”, dos romanos) e se propõe a aplicar aos fatos um sistema preestabelecido de regras de direito – razão pela qual levará a resultados diferentes conforme o ordenamento jurídico a ser aplicado.
Em todas essas concepções de justiça há um elemento comum, o da igualdade de tratamento para seres iguais. “Portanto, pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”. (p. 19)
Segundo Perelman:
“A análise sumária das concepções mais correntes da noção de justiça mostrou-nos a existência de pelo menos seis fórmulas da justiça – admitindo a maioria delas ainda numerosas variantes –, fórmulas que são normalmente inconciliáveis. Embora seja verdade que, graças à interpretação mais ou menos forçada, a afirmações mais ou menos arbitrários, se pode querer relacionar essas diferentes fórmulas umas com as outras, elas não deixam de apresentar aspectos da justiça muito distintos e o mais das vezes opostos”.
Porém, quando nos deparamos com seres que sob determinado aspecto pertencem à mesma categoria, mas, sob outro aspecto pertencem a categorias diferentes, teremos que optar em qual categoria enquadrá-los, para tratá-los de forma justa. Entretanto, qualquer que seja a escolha, o tratamento será injusto sob a ótica da categoria desconsiderada. Estaremos, pois, ante uma antinomia.
“Quando aparecem as antinomias da justiça e quando a aplicação da justiça nos força a transgredir a justiça formal, recorremos à equidade. […] Consiste ela numa tendência a não tratar de forma por demais desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial. A equidade tende a diminuir a desigualdade quando o estabelecimento de uma igualdade perfeita, de uma justiça formal, é tornado impossível pelo fato de se levar em conta, simultaneamente, duas ou várias características essenciais que vêm entrar em choque em certos casos de aplicação”.
A justiça em Chaim Perelman
De acordo com Perelman, dentre os pontos convergentes e os divergentes das diversas concepções de justiça, é necessário se talhar uma fórmula de justiça que provenha de um acordo unânime.
Ser justo, segundo o autor, é tratar a todos de forma igual, contudo tendo em mente a idéia de “limite”, em contraposição às possibilidades de realização de tais critérios de distribuição do que seja justo.
Perelman apresenta a noção de justiça formal (vinculada à igualdade) como o substrato comum às seis concepções da justiça concreta examinadas anteriormente. Esse substrato comum – a igualdade – fundamenta-se em valores escolhidos de forma aleatória – igualdade segundo, por exemplo, a riqueza e a beleza. Em decorrência, Perelman acaba por estabelecer, como regra de justiça, a igualdade formal, porquanto “ser justo é tratar da mesma forma os seres que são iguais em certo ponto de vista, que possuem uma mesma característica, a única que se deve levar em conta na administração da justiça. Qualifiquemos essa característica de essencial”. É a noção de “categorias essenciais”, pela qual a justiça implica o tratamento igual dos seres que são iguais em dadas circunstâncias. Só é realizável a justiça desde que haja identidade comum entre os indivíduos à que a mesma é aplicada. A justiça formal ou abstrata, para Perelman, é, pois, “um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”, sendo que esse princípio subjaz latente em cada uma das seis noções da justiça concreta. Tal definição é formal, justamente porque não se esquadrinha às categorias que são reputadas essenciais para a aplicação da justiça; se permitindo, assim, se surjam e sejam discutidas as divergências no exato instante de estabelecimento de tais categorias, no plano, logo, da justiça concreta.
A partir daí, Perelman retorna à análise dos seis critérios concretos de administração da justiça, e a cada um deles, através de argumentos convincentes, o mesmo aplica a fórmula de justiça formal.
A partir desse conceito de justiça formal ou abstrata, observa-se que as concepções concretas de justiça se distinguem à medida que cada uma delas erige um valor diverso para definir a pertinência dos indivíduos às categorias essenciais dentro das quais aplicar-se-á um tratamento igual.
Quanto ao primeiro critério, o de “dar a cada qual a mesma coisa”, se percebe que, diferentemente do que se imagine, o mesmo não traduz um “humanitarismo igualitário”; posto que, sendo possível se restringir a aplicação deste princípio a uma categoria essencial, tal categoria, se for mais qualificada que as demais, a exemplo dos empresários e dos parlamentares, e. g., poderá se valer de tal discurso para se considerar superior às demais classes.
Quanto ao segundo critério, “a cada qual segundo seus méritos”, Perelman observa ser premente que se possua o mérito ou o demérito, contudo num mesmo grau ou intensidade, o que possibilita, assim, recompensar ou punir, dentro de sistemas equivalentes, e de uma adequada representação dos fatos subsumidos à apreciação do aplicador da norma.
De relação ao terceiro critério, “a cada qual segundo suas obras”, o belga admite que as obras ou conhecimentos terão de ser considerados equivalentes aos olhos do aplicador da justiça, se considerando, pura e simplesmente, o resultado do trabalho ou a qualidade intrínseca da obra, sem se ater ao esforço ou tempo despendido pelo agente. A partir desta noção, Perelman justifica a necessidade da existência do dinheiro, para comparar o valor de obras; e de um programa (um esquema de regras procedimentais), para se comparar candidatos num concurso público, por exemplo.
Quanto ao quarto critério, “a cada qual segundo suas necessidades”, o autor propõe que se busque a determinação das necessidades essenciais dos seres humanos, consideradas estas, a partir de uma pesquisa psicológica de prioridades, dentro de uma grade hierárquica, chamada de “mínimo vital”, que levará em conta as exigências do organismo em geral, contudo não as necessidades mais refinadas e particulares. Desta concepção, Perelman sugere o que ele próprio alcunha de noção de “justiça social”, que é distinta da “caridade”, que apenas leva em conta os seres enquanto indivíduos, com caracteres particulares.
No que tange ao quinto critério, “a cada qual segundo sua posição”, Perelman explicita que se deve ter em conta a repartição habitual, mas nem sempre necessária, dos seres em classes hierarquizadas. Nesse toar, há de se tratar as classes hierarquicamente superiores de forma distinta das mais inferiores, lhes conferindo tantos direitos, quantos deveres; contudo, de forma igual, entre cada membro de uma mesma classe, pena de se criar o que ele denomina de uma “república de amigos”.
Quanto ao sexto e último critério, “a cada qual segundo o que a lei lhe atribui”, tal difere de todos os outros anteriormente mencionados, posto que, por esta concepção, o aplicador da justiça não possui livre escolha para ditar esta ou aquela fórmula de justiça concreta. Ao aplicador é imposto o critério estabelecido pela regra, que, no particular, é a jurídica, e não a moral. Por tal critério, não importa a escolha moral, advinda da livre adesão da consciência do magistrado. O que vale é a ordem jurídica estabelecida, que determina as categorias, cuja aplicação competirá ao julgador.
Como observa Perelman:
“Nossa definição de justiça é formal porque não determina as categorias que são essenciais para a aplicação da justiça. Ela permite que surjam as divergências no momento de passar de uma fórmula comum de justiça concreta para fórmulas diferentes de justiça concreta. O desacordo nasce no momento em que se trata de determinar as características essenciais para a aplicação de justiça.”
Em suma, a justiça possível em Perelman é a justiça formal ou abstrata segundo o parâmetro da igualdade, fundado sobre uma pauta valorativa. Logo, a justiça deve contentar-se com um desenvolvimento formalmente correto de um ou mais valores. E assim Perelman é levado a distinguir três elementos na justiça de determinado sistema normativo: o valor que a fundamenta, a regra que a enuncia e o ato que a realiza.
Afirma Perelman:
“Os dois últimos elementos, os menos importantes, aliás, são os únicos que podemos submeter a exigências racionais: podemos exigir do ato que seja regular e que trate da mesma forma os seres que fazem parte da mesma categoria essencial; podemos pedir que a regra seja justificada e que decorra logicamente do sistema normativo adotado. Quanto ao valor que fundamenta o sistema normativo, não o podemos submeter a nenhum critério racional, ele é perfeitamente arbitrário e logicamente determinado”.
A relação entre as teorias de Hans Kelsen e Chaim Perelman
Há, inegavelmente, pontos comuns e distintivos entre a teoria de Kelsen e a teoria de Perelman.
Os pontos comuns residem no fato de que ambos descrêem dos pensadores metafísicos que sustentam poder-se alcançar a justiça pela razão prática ou pela revelação mística – a noção acabada de justiça. Kelsen e Perelman afirmam peremptoriamente o caráter relativo dos valores, por natureza, arbitrários que decorrem de escolhas, ou opções, e não de evidências empíricas, ou de parâmetros lógicos.
Os pontos distintivos residem, basicamente, da convicção de Perelman de que é possível encontrar um substrato comum a todas as concepções concretas de justiça – a justiça formal vinculada à igualdade. Por isso, adverte Kelsen que esse pretenso substrato comum é apenas uma decorrência lógica da generalidade da norma e da necessidade de sua correta aplicação. Neste sentido, a justiça formal de Perelman nada tem a ver com a igualdade.
A RACIONALIDADE JURÍDICA: PARA ALÉM
DO DIREITO NATURAL E DO POSITIVISMO
“A antítese “Direito positivo-direito natural” opõe o respeito à lei ao respeito à justiça, concebida de outro modo que a de conformidade à lei”. (Perelman, 2005, p. 386)
“Essa antítese data apenas do século XIX, pois, anteriormente, não se havia cogitado em que os fatos de dizer o direito e de administrar a justiça não fossem sinônimos. É verdade que a aplicação pura e simples da lei podia ter conseqüências iníquas, ou inaceitáveis, mas cada uma das tradições de que se formou a civilização do Ocidente soubera encontrar um modo de sair do embaraço.” (Perelman, 2005, p. 386)
“Foi o positivismo jurídico, durante o século que separa Austin de Kelsen, que não só descartou qualquer possibilidade de direito natural, mas mesmo que a lei possa ser confrontada com o problema da justiça. Os juristas têm como única preocupação a legalidade, dizem o que é ou o que não é conforme ao direito. Quanto à justiça, por certo ela é uma categoria importante, mas não se relaciona com o direito positivo: diz respeito à moral e à religião.” (Perelaman, 2005, p. 388)
“O positivismo descarta o direito natural como uma incursão indevida da idéia de justiça no funcionamento do direito, com o intuito de limitar o poder do legislador. Para o positivismo jurídico, a justiça conforme ao direito é a justiça tal como foi precisada pelo legislador. Mas que fazer quando a lei se mostra insuficiente por uma ou outra razão?” (Perelaman, 2005, p. 389)
“Não só se recorre ao direito natural para preencher as lacunas da lei, mas também para limitar o alcance de uma lei; considera-se que o direito positivo não se aplica ao que já é regulamentado em virtude do direito natural. Limitar-se-á, da mesma forma, o alcance de uma lei, mesmo de uma lei importante, mediante o que o procurador geral Terlinden considerou como “axioma do direito público” tal como aquele da continuidade do Estado. Daí resultará a “inevitável necessidade, para o Rei, de legislar sozinho quando os dois outros ramos do poder legislativo estão impedidos de cumprir sua função” e isto apesar do art. 26 da Constituição (Belga).” (Perelaman, 2005, p. 390)
“Com efeito, se o direito positivo pode ser definido no modo mais claro como expressão unicamente da vontade do legislador, se o direito natural é melhor concebido como uma criação puramente racional, independente das contingências, de ordem social ou política, uma visão do direito fundamentada no consenso, seja da opinião geral, seja da opinião especializada, tirará seus elementos, em proporção variável, tanto da vontade expressa do legislador quanto das considerações de eqüidade e de oportunidade, que vêm executa-la. Quando o valor dominante num ramo do direito for a segurança jurídica, não se hesitará em citar a letra ou, pelo menos, o espírito da lei. Em contrapartida, quando a grande variedade das situações, tal como a encontramos em direito internacional privado, levar o juiz a deixar-se guiar pela doutrina e pela jurisprudência, ele dará muita importância à teoria, levando em conta a natureza das coisas e considerações pragmáticas. Quando, diante das conturbações sociais acarretadas por uma modificação rápida das relações entre o capital e o trabalho dentro de uma empresa, o juiz tiver de desempenhar um papel de árbitro e de pacificador, em vez de aplicar os textos de uma forma rígida ou formalista, ele efetuará um arbitragem entre os valores em conflito, buscando soluções que têm mais possibilidades de realizar um consenso e de servir de precedente.” (Perelaman, 2005, p. 391)
“O crescente papel atribuído ao juiz na elaboração de um direito concreto e eficaz torna cada vez mais ultrapassada a oposição entre o direito positivo e o direito natural, apresentando-se o direito efetivo, cada vez mais, como o resultado de uma síntese em que se mesclam, de modo variável, elementos emanantes da vontade do legislador, da construção dos juristas, e considerações pragmáticas, de natureza social e política, moral e econômica.” (Perelaman, 2005, p. 392)
“Um dos lugares-comuns que todo estudante de direito ouve muitas vezes durante seus estudos afirma que o direito não é uma ciência, mas que há uma ciência do direito. A elaboração e a aplicação do direito necessitam, com efeito, recorrer a juízos de valor, a escolhas e a decisões que, característicos da legislação e mesmo da jurisprudência, são alheios a qualquer ciência que se pretende, por natureza, descritiva e objetiva. Essa diferença de atitude é que justificaria a distinção entre a ciência do direito e a jurisprudência.” (Perelaman, 2005, p.408)
“Reconhecendo que o princípio da continuidade do Estado cria um caso de força maior que impede a aplicação de certos artigos da Constituição – princípio que lembra o adágio romano salus patriae suprema lex –, constatamos a existência de regras de direito que não só não são fundamentadas na norma fundamental, no sentido de Kelsen, mas também conduzem à violação de alguns artigos.” (Perelaman, 2005, p. 412)
“Ao ignorar o papel político do direito, a teoria pura do direito não só peca por abstração, mas ainda falseia a realidade jurídica. O exemplo preciso que acabamos de assinalar contradiz redondamente a afirmação de Kelsen de que “uma lei só pode ser válida em virtude da Constituição”.” (Perelaman, 2005, p. 412)
“Não basta dizer que a ciência do direito só deve ocupar-se com o que não é controverso: ela ficaria, então, na superfície formal do direito e não cumpriria o papel essencial de guia dos juízes em busca de soluções conformes ao direito e à equidade. Ela não pode cumprir esse papel sem a busca de justificações, que deixariam as decisões conformes à equidade e à segurança, ou seja, à justiça formal que exige que se trate da mesa forma situações essencialmente semelhantes. Mas, para alcançar esses fins, ela não pode dispensar argumentações que justificariam as soluções preconizadas. É o recurso a estas, à lógica jurídica por ela empregada, que explica as características próprias da deliberação, da motivação e do litígio em direito. Se se quisesse limitar a lógica jurídica formal, deformar-se-ia a própria realidade do raciocínio dos juízes e dos advogados.” (Perelaman, 2005, p. 419)
“As noções coordenadas da filosofia do direito, tais como o direito e a lei, a razão e a vontade, a justiça e o poder, são confusas, pois, mudando de sentido e de alcance todas as vezes que se modificam suas relações recíprocas, elas permanecem confusas enquanto que essas relações não são precisadas no seio de um sistema de direito ou de filosofia do direito. Cada sistema, por definir a seu modo essas diversas noções , assim como as suas relações, será levado a posicionar-se nas controvérsias seculares e a enunciar ou a pressupor juízos de valor, explícitos ou implícitos.” (Perelaman, 2005, p. 448)
“Os textos jurídicos, trate-se de leis ou de precedentes judiciários, são habitualmente suscetíveis de interpretações variadas, seja extensivamente, por via de analogia, por exemplo, seja restritivas, mercê das distinções que o intérprete poderia neles, introduzir. As diversas interpretações favorecem um ou outro interesse, um ou outro valor, que estão em conflito em cada caso específico. A interpretação escolhida, ao restringir ou ampliar o campo de aplicação da norma, se pronunciará em favor de um dos valores contrapostos. O juiz, com sua interpretação, se adapta aos valores do meio. Esse esforço de adaptação será facilitado graças ao recurso freqüente do legislador (e do juiz na common law) a noção de conteúdo variável, tais como “os bons costumes”, “a ordem pública”, “o interesse geral”, “o razoável”, que se definem, em cada caso específico, com relação a valores, a aspirações, a usos e crenças que dominam em dado meio. As diferentes teorias jurídicas contribuem para esse esforço de adaptação.” (Perelaman, 2005, p. 453)
“Se o direito natural forneceu uma técnica secular no Ocidente medieval para limitar o exercício do poder de forma que seja digno de um monarca cristão, se a idéia de um direito racional pôde cumprir a mesma função no séculos XVII e XVIII, esse mesmo papel é cumprido, nas sociedades democráticas contemporâneas, por juízes que compreendem seu papel, que é o de conciliar o respeito pelo direito com o respeito pela eqüidade e pela justiça, de eliminar-lhe as conseqüências desarrazoadas, portanto inaceitáveis.” (Perelaman, 2005, p. 457)
O RACIOCÍNIO JURÍDICO:
UMA LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO
“Ao querer reduzir a lógica à lógica formal, tal como ela se apresenta nos raciocínios demonstrativos dos matemáticos, elabora-se uma disciplina de uma beleza e de uma unidade inegáveis, mas se descura inteiramente do modo como os homens raciocinam para chegar a uma decisão individual ou coletiva. É porque, de fato, a razão prática, aquela que deve guiar-nos na ação, é muito mais próxima daquela do juiz do que daquela do matemático, que o lógico que se veda examinar a estrutura dos raciocínios alheios às matemáticas, que recusa reconhecer a especificidade do raciocínio jurídico e do raciocínio prático em geral, presta mau serviço a filosofia e à humanidade. À filosofia, obrigada a renunciar, por causa da ausência de um fundamento teórico, ao seu tradicional papel educadora do gênero humano. À humanidade, que à mingua de encontrar um guia nas filosofias de inspiração racional, tem de abandonar-se à irracionalidade, às paixões, aos instintos e à violência.” (Perelaman, 2005, p. 473)
“A lógica jurídica é uma lógica que permite levar a seu termo uma controvérsia, em que argumentos são confrontados, em que, em cada etapa, o pró e o contra não são postos em pé de igualdade, pois as presunções intervêm em favor da tese ou da antítese, incumbindo o ônus da prova a quem se propõe derrubar essa presunção. Esse vaivém de argumentos e de contra-argumentos terminará com a decisão do juiz, que decidirá quais argumentos devem prevalecer. A sentença assim emitida, com sua ratio decidendi, fará jurisprudência e se inserirá na ordem jurídica que contribui para elaborar. Bastará, no futuro, para justificar uma decisão, referir-se aos precedentes, devendo aqueles que lutam por uma reforma de jurisprudência fornecer as razões que deveriam, em sua opinião, prevalecer sobre aquelas que foram admitidas anteriormente.” (Perelaman, 2005, p. 504)
“É esse vaivém de argumentos, que implicam posicionamentos, juízos de valor, o que estes têm de relevante ou de irrelevante em dada situação, o alcance de sua generalização e de sua inserção num sistema jurídico, que caracteriza o raciocínio jurídico. A lógica jurídica se apartará da análise dos debates judiciários, da classificação, da explicação, da esquematização deles. O resultado desse esforço não será um teoria da demonstração formal, da qual só se teria de seguir regras operatórias para chegar a uma conclusão corretamente deduzida, mas uma teoria da argumentação e da controvérsia em que a força e a relevância dos motivos serão apreciadas por um juiz, formado por uma determinada tradição, e para cuja elaboração ele contribui com suas sentenças e a motivação delas.” (Perelaman, 2005, p. 505)
“Para precisar a noção de raciocínio jurídico, entendemos por essa expressão o raciocínio do juiz, tal como se manifesta numa sentença ou aresto que motiva uma decisão. As análises doutrinárias de um jurista, os arrazoados dos advogados, as peças de acusação do Ministério Público fornecem razões que podem exercer uma influência sobre a decisão do juiz: apenas a sentença motivada nos fornece o conjunto dos elementos que nos permitem pôr em evidência as características do raciocínio jurídico.” (Perelaman, 2005, p. 480)
“Assimilar o raciocínio judiciário a um silogismo, cuja conclusão seria verdadeira, porque pode ser demonstrada formalmente a parir de premissas verdadeiras, é mascarara própria natureza do raciocínio prático, é transforma-lo num raciocínio impessoal, do qual se terá eliminado todo fator de decisão, que é, contudo, essencial. O que há de especificamente jurídico no raciocínio do juiz não é de modo algum a dedução formalmente correta de um conclusão a partir de premissas – nisso a dedução em direito nada tem de particular – mas são os raciocínios que conduzem ao estabelecimento dessas premissas no âmbito de um sistema de direito em vigor.” (Perelaman, 2005, p. 481)
“Que se poderá provar, quem tem o ônus da prova, que será preciso provar, como se deverá provar? Todas estas questões receberão respostas diferentes conforme o juiz seja considerado neutro, devendo unicamente apreciar o valor das provas trazidas pelas partes – sem infringir, aliás, o que a lei prevê quanto a matéria –, ou conforme o juiz seja encarregado de investigar ativamente a materialidade dos fatos, o que é chamado igualmente a verdade objetiva.” (Perelaman, 2005, p. 482)
“O raciocínio jurídico, mesmo sendo sujeito a regras e a prescrições que limitam o poder de apreciação do juiz na busca da verdade e na determinação do que é justo – pois o juiz deve amoldar-se à lei –, não e uma mera dedução que se ateria a aplicar regras gerais a casos particulares. O poder concedido ao juiz interpretar e, eventualmente, de completar a lei, de qualificar os fatos, de apreciar, em geral livremente, o valor das presunções e das provas que tendem a estabelecê-los, o mais das vezes basta para permitir-lhe motivar, de forma juridicamente satisfatória, as decisões que seu senso de eqüidade lhe recomenda como sendo, social e moralmente, as mais desejáveis.” (Perelaman, 2005, p. 489)
“Se acaso uma legislação francamente iníqua não lhe permitir, por uma ou outra razão, exercer seu ofício em conformidade com sua consciência, o juiz é moralmente obrigado a renunciar a suas funções. Pois ele não é uma simples máquina de calcular, Contribuindo, com seu concurso, para o funcionamento de uma ordem iníqua, ele não pode esperar isentar sua responsabilidade.” (Perelaman, 2005, p. 489)
“O papel da retórica se torna indispensável numa concepção do direito menos autoritária e mais democrática, quando os juristas insistem sobre a importância da paz judiciária, sobre a idéia de que o direito não deve somente ser obedecido, mas também observado quanto mais largamente for aceito.” (Perelaman, 2005, p. 554)
OS LUGARES DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
“É a dialética entre o legislativo e o poder judiciário, entre a doutrina e a autoridade, entre o poder e a opinião pública, que faz a vida do direito e lhe permite conciliar a estabilidade e a mudança.” (Perelaman, 2005, p. 631)
“É assim que se compreende o papel dos advogados, enquanto auxiliares da justiça. Se eles se opõem é porque procuram fazer prevalecer, no interesse do cliente, um dos valores em conflito: a segurança ou a eqüidade, os direitos do indivíduo ou o interesse geral, a proteção da ordem das famílias ou a busca da verdade, etc.” (Perelaman, 2005, p. 631)
“O papel do juiz é tomar uma decisão, resolver, escolher, em nome do que considera o direito e a justiça, sabendo que suas decisões vão integrar-se no sistema de que ele constitui um elemento central.” (Perelaman, 2005, p. 632)
“É dentro desse espírito que as técnicas de interpretação, justificadas pelo recurso à lógica jurídica, que não é uma lógica formal, mas uma lógica razoável, ser-lhe-ão um auxílio essencial na medida em que lhe permitem conceituar, por uma argumentação apropriada, o que lhe dita seu senso de eqüidade e seu senso do direito.” (Perelaman, 2005, p. 632)
“Mais do que o moralista ou o político, o jurista se preocupa, e com toda a razão, com a segurança jurídica, em que se supõe que cada qual conheça seus direitos e suas obrigações, da qual estão eliminados as controvérsias e os conflitos resultantes da ambigüidade e da indeterminação da lei, manifestam-se valores que, na mente de muitos juristas, se identificam à justiça: previsibilidade, a imparcialidade, a igualdade perante a lei, a ausência de arbitrariedade dos administradores públicos e dos juízes. No limite, um sistema de direito concebido unicamente em função do ideal de segurança jurídica eliminaria a intervenção de qualquer julgamento, substituindo os juízes por computadores na administração da justiça.” (Perelaman, 2005, p. 659)
“Levando em conta a infinita variedade das circunstâncias, o fato de que não é capaz de prever tudo e regulamentar tudo com precisão, admitindo que regras rígidas se aplicam penosamente a situações variáveis, o legislador pode introduzir deliberadamente, no texto da lei, noções com conteúdo variável, vago, indeterminado, tais como a equidade, o razoável, a ordem pública, a falta grave, deixando ao juiz o cuidado de precisá-las em cada caso específico. O reitor J. Carbonnier mostrou como a nova legislação francesa sobre o direito de família introduziu no texto noções com conteúdo variável, tais como o interesse da criança, o interesse da família, a dureza, para deixar ao juiz maior liberdade de apreciação. Com efeito, quanto mais vagas e indeterminadas são as noções jurídicas aplicáveis, maior é o poder de apreciação deixado ao juiz.” (Perelaman, 2005, p. 662)
“Em seu relatório introdutivo, o professor J. Verhaegen enumerou as diversas expressões que designam, todas elas, noções com conteúdo variável e cuja interpretação corre o risco de não ser uniforme: noções confusas, vagas, equívocas, ambíguas, indefinidas ou mesmo indefiníveis, imprecisas, indeterminadas, que necessitam de apelar para juízos de valor, para a apreciação dos administradores públicos ou juízes.” (Perelaman, 2005, p. 663)
“Haverá meios de precisar de modo suficiente o que é contrário aos bons costumes para uniformizar a jurisprudência no conjunto do país? Poder-se-á formular uma regra uniforme, enquanto as reações do público variam muito de uma localidade para a outra? Parece que a busca da uniformidade colide com exigências de ordem social que são mais imperiosas. Essa falta de uniformidade tem como conseqüência a imprevisibilidade das reações dos Ministérios Públicos e dos tribunais e a violação do princípio da igualdade perante a lei. Ora, um recente acórdão (ainda inédito) da Corte de Apelação de Bruxelas (de 30 de junho de 1983) acaba de absolver uma dezena de médicos e enfermeiras, acusados de haver infringido a proibição do aborto inclusive em meio hospitalar, porque os fatos, repetidos durante cerca de dez anos, não foram objeto de instauração de processo; a Corte, fundamentando-se numa violação flagrante e inesperada do princípio da igualdade perante lei, admitiu o erro invencível dos réus como causa da justificação.” (Perelaman, 2005, p. 670)
“É a propósito de situações que se caracterizam pela impossibilidade de estabelecer a uniformidade, a previsibilidade e a igualdade perante a lei que se pode falar, de uma forma pregnante, de noções com conteúdo variável. A impossibilidade, talvez, provisória, de aplicar noções de um modo uniforme impede integrá-la num sistema de direito coerente e estável. A Corte de Cassação, vendo-se na impossibilidade de uniformizar a jurisprudência, as considera juízos de fato deixados à apreciação soberana dos juízes da causa. A propósito delas, a Corte se aterá a exercer um controle marginal quando a decisão do juiz da causa parecer claramente desarrazoada. Em situações análogas, a Corte Federal suíça abandona voluntariamente o poder de decisão às autoridades cantonais, “mais bem colocadas para julgá-las porque mais próximas dos jurisdicionados”. A segurança jurídica e a uniformidade daí resultantes são sacrificadas ao cuidado de adaptar-se aos costumes e às aspirações das coletividades locais.” (Perelaman, 2005, p. 670)
“A questão é difícil, pois não se dispõe de critérios objetivos na matéria. A única observação que se poderia fazer a propósito disso é que os usuários de um l;íngua comum, utilizada como instrumento de comunicação, não podem servi-se dela com o intuito de induzir seu interlocutor em erro, pois isso seria agir côo aquele que põe em circulação moeda falsa, abusando da confiança que se concede à moeda legal.” (Perelaman, 2005, p. 683)
“As noções confusas constituem, na teoria e na prática da ação, sobretudo da ação pública, instrumentos de comunicação e de persuasão que não podem ser eliminados. Mas é preciso manejá-los com prudência. O papel da retórica, tal como a concebo – ou seja, de uma teoria da argumentação, que engloba, aliás, a dialética dos Antigos, a de Sócrates, de Platão e de Aristóteles –, é precaver-nos contra o uso abusivo das noções confusas. É pelo estudo dos procedimentos argumentativos, retóricos e dialéticos que aprendemos a distinguir os raciocínios aceitáveis dos raciocínios sofisticados, aqueles em que se procura persuadir e convencer daqueles em que se procura enganar, induzir em erro. É por essa razão, aliás, que considero o ensino da retórica, assim compreendida, um elemento central de toda educação liberal.” (Perelaman, 2005, p. 684)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a leitura da extensa obra e ao conhecer a nova concepção de agir e ser proposta pelo autor, sedimentando novas bases para próprio direito enquanto função jurisdicional e como justiça em latu sensu; nota-se que em muito foi influenciada nossa sociedade pelos seus preceitos e que em outros campos – sempre dentro do âmbito judiciário – ainda caminhamos para contemplar os ideais do autor. Não que esse tenha se tornado algum marco ou ícone para nossa sociedade como foram os autores positivistas, mas com certeza a marca do pensamento lançado por Perelman está enraizada em institutos e instituições da nossa sociedade.
As lições do autor, como a justiça formal, a teoria da argumentação, a interação do direito com as demais formas de regulamentação social, a lógica e raciocínio jurídico, entre outros, são críticas fortes e consistentes tanto aos defensores do direito natural, quanto aos positivistas, ele busca um meio termo sem abandonar o que há avançado nas correntes dominantes de produção epistemológica. Sua intenção é salvaguardar condutas e princípios necessários aos Estados de Direito e a democracia, buscando não só uma otimização do sistema jurídico como também o crescimento dos sujeitos quanto atores dentro da organização estatal.
Em nosso Estado onde temos inúmeros advogados e a cada dia surgem milhares a mais, onde cada vez mais as instituições de ensino apresentam fraco rendimento e incapacidade de preparar o bacharel em direito – para não dizer bacharel em leis, tendo em vista o prisma puramente normativo do ensino jurídico no país –, depreende-se da leitura uma alternativa tanto para o ensino. Necessita-se de uma educação que instigue o pensamento crítico, que desenvolva a retórica e principalmente que propicie novas visão sobre o sistema – já que este mostra-se cada vez mais ineficiente – a fim de que surjam alternativas, pois não se pode esperar que venha de dentro desse a solução para o problema do judiciária.
* Texto enviado de forma anônima
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