CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do processo Penal. 3ª edição. Leme: CL EDJUR, 2011, 92ps.
Francesco Carnelutti (1879 – 1965) foi um jurista italiano, nascido na comuna de Údine, que inspirou o Código de Processo Civil italiano e diversos amantes do direito ao redor do mundo. Das obras notáveis de Francesco Carnelutti, pode-se destacar “As Misérias do Processo Penal”, “Como Nasce o Direito” e “Como se Faz um Processo”. Católico, Carnelutti, juntamente a Giuseppe Capograssi, foi um dos fundadores da União de Juristas Católicos Italianos e sua fé é nitidamente observada em sua obra, “As Misérias do Processo Penal”, que por meio de comparações e analogias, o italiano apresenta ensinamentos cristãos e situações bíblicas para elucidar seus posicionamentos humanistas a respeito do Processo Penal.
Na conceituada obra “As Misérias do Processo Penal”, Carnelutti faz uma análise histórica e social sobre o instituto do Processo Penal, instrumento para realizar a perquirição, julgar e punir o réu. Na contramão do sistema, o autor descobre a problemática social por trás das formalidades do processo, mostrando o réu não como o “bandido”, como comumente é vislumbrado, mas como um ser humano marginalizado socialmente e em posição de desvantagem face ao poderio estatal.
No primeiro capítulo da obra, intitulado “A Toga”, o autor analisa as formalidades pelas quais o processo penal é envolto, e demonstra o quanto são necessárias para a regularização da ordem e da inferiorização do réu diante às autoridades. Aqui, o advogado é apresentado como figura nobre que, ao defender o acusado no tribunal, procura igualar os polos tão desiguais já no início do julgamento, pelas próprias vestes.
Em seguida, o jurista italiano dedica seus segundo e terceiro capítulos, respectivamente, a “O Preso” e a “O Advogado”. Quanto ao trabalho da advocacia, Carnelutti destaca que é o que dá a esperança ao réu ou até mesmo algo que valha mais que a tão almejada liberdade, a amizade. Carnelutti vê o preso como alguém de quem foi tudo tirado, marginalizado, que vive num “isolamento social” e ressalta a “coculpabilidade do estado”, que possui parcela de culpa na realização dos atos criminosos, já que deveria garantir os direitos básicos de sobrevivência para as pessoas, porém é falho e enseja a prática delituosa.
No quarto capítulo da obra, o autor apresenta “O Juiz e as Partes”, episódio destinado à crítica da disposição e disparidades do processo, no qual exibe o juiz como figura máxima e sobrenatural, superior à qualquer parte. Porém, o juiz não pode ser parte no processo, pois é ele que pronuncia a sentença, diz o direito. Além disso, a disposição dos agentes numa sala de audiência também é algo questionado pelo autor. O fato do representante do Ministério Público, órgão acusador, responsável por colher provas que comprovem o ato delituoso e a culpa do réu, ficar do lado do juiz, enquanto o advogado e o acusado sentam-se lado a lado, no banco dos réus, configura a posição de desvantagem desses últimos.
O capítulo cinco é intitulado “A Parcialidade do Defensor” e explica basicamente dois dos princípios norteadores do Processo: o livre convencimento do juiz e a persuasão racional do juiz. Apesar do acusador e do defensor serem parciais, o juiz deve se motivar independentemente de favoritismos, sendo imparcial. “A repugnância à parcialidade se converte para o juiz na necessidade de superá-la, ou seja, de superar-se; está nesta necessidade a salvação do juízo” (CARNELUTTI, 2011, p. 44).
Francesco Carnelutti explora, nos capítulos seis e sete, uma das maiores misérias do processo penal, que é a violação do princípio da presunção de inocência. Enquanto as autoridades se trajam de maneira respeitosa e imponente, o réu muitas vezes aparece trajando o uniforme da penitenciária, algemado e conduzido, e mesmo sem provas substanciais e devido julgamento, já é de pressuposto tido como culpado, condenado, sem ao menos ter oportunidade de se defender.
No oitavo e no décimo-primeiro capítulo, “O Passado e o Presente do Processo Penal” e “Da Libertação”, o autor desvela o preconceito, combustível de diversas mazelas da sociedade, e ensina que o processo penal não está eximido deste infeliz fenômeno, ao mesmo tempo que exibe que a sociedade é ensinada desde cedo a ter sede por vingança e querer que a pena seja um instrumento para concretizar esse vil desejo. O processo penal resgata o passado do preso e o acompanha para sempre, até mesmo depois de cumprida a pena, visto que o encarcerado, finalmente, quando conquista sua liberdade de volta, é rechaçado pela sociedade, momento em que será “ex-presidiário”, e sempre carregará consigo a mácula de um erro, que a sociedade não perdoa.
Carnelutti dedica os episódios nono e décimo a tratar da sentença e da execução da pena. Nesse momento ele explica que a pena não pode realizar seus dois papeis ao mesmo tempo, o retributivo e o preventivo. Sendo este, o papel educativo, ressocializador, que vai ensinar ao preso a não cometer mais crimes e ser um agente útil e cooperador da sociedade. Já aquele, o punitivo, é o que vai pagar o mal com o mal. Vale destacar que o papel preventivo está muito distante da realidade, que enxerga a pena como castigo e concretiza ainda mais o quadro social em que se vive, com desigualdades e discriminações.
Por fim, Francesco Carnelutti encerra a obra com o capítulo “Além do Direito”, deixando a mensagem que o processo penal não é uma formalidade ou mero instrumento, mas um fenômeno social, e ele desvenda que há no mundo dois tipos de pessoa, as civilizadas e as incivilizadas. E como o título do ultimo capítulo explica, devemos pensar além do direito, além do processo e mais como seres humanos, fraternos, pois o processo extrapola os autos, modifica a vida de diversas pessoas. A mensagem de Carnelutti é no sentido de que enquanto não houver compaixão, piedade e fraternidade, residirá no processo penal, a miséria.