1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 Interesse sociológico nas dimensões processuais
Em um processo decorrente do pós-guerra (2ª Grande Guerra Mundial), mediante a investigação empírica e formulação de técnicas, métodos e teorização próprios, a sociologia do direito constituiu-se em verdadeira ciência social. Isso não faz olvidar o peso dos pensadores sociológicos de épocas mais recuadas, cuja visão privilegiava a dogmática – o direito como norma material –, embora com aportes na sociologia – o direito não só pela ótica institucional e organizacional, mas também com fulcro na integração social e no bem comum, de um lado, e como instrumento de dominação econômica e política de uma classe, de outro. (SANTOS, 1995, p. 161-162)
Boaventura de Souza Santos atribui à produção científica de Ehrlich – o direito vivo e a criação judiciária do direito, não obstante ainda vinculada à ótica normativista e substantivista do direito –, ao lado da de Weber, a criação de pré-condições teóricas para uma nova dimensão da sociologia jurídica:
[…] ao deslocar a questão da normatividade do direito dos enunciados abstratos da lei para as decisões particulares do juiz, criou as pré-condições teóricas da transição para uma nova visão sociológica centrada nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito (SANTOS, 1995, p. 163)
Viu-se o direito formal distante do fato social (law in books em contraponto com a law in action dos americanos) e também com papel relevante na transformação modernizadora das sociedades tradicionais.
Surge, então – mais especificamente no final dos anos 50 e início dos anos 60 –, o interesse sociológico pelas questões processuais, cujas condições teóricas e sociais em evidência no referido período pós-guerra tiveram relevante colaboração. (SANTOS, 1995, p. 164)
Em relação às condições teóricas, Santos destaca três espécies: a sociologia das organizações de inspiração Weberiana; o desenvolvimento da ciência política interessada nos tribunais como instância de poder e a orientação política dos juízes; e a antropologia do direito que se orientou para as instituições e suas organizações. (1995, p.164)
Quanto às condições sociais, são duas as ressaltadas pelo autor.
A primeira são as lutas sociais das minorias jurídica e politicamente dominadas, que buscaram dar maior profundidade ao conteúdo democrático dos regimes do pós-guerra. (SANTOS, 1995, p.165)
Nesse sentido, as desigualdades sociais tornaram-se uma ameaça à legitimidade dos regimes políticos baseados na igualdade de direitos:
A igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos, uma confrontação que em breve se transformou em um vasto campo de análise sociológica e inovação social centrado na questão do acesso diferencial ao direito e à justiça por parte das diferentes classes e estratos sociais (SANTOS, 1995, p. 165)
A segunda condição social está intimamente relacionada com a primeira: trata-se da crise da administração da justiça. As transformações do Estado liberal para o Estado-Providência foram aceleradas pelas pressões e lutas sociais. O Estado passa a se envolver de maneira mais ativa, buscando diminuir as desigualdades sociais resultantes do modo de produção capitalista. Assim, expandiram-se os direitos sociais, integrando as classes trabalhadoras em âmbitos aos quais não tinham alcance anteriormente: o consumo.(SANTOS, 1995, p.165)
Dentre outros aspectos, essa integração das classes trabalhadoras aos circuitos de consumo aconteceu simultaneamente e também em razão da inserção da mulher no mercado de trabalho, fato que alterou os padrões de relação familiar. Em decorrência, os conflitos de família tornaram-se mais frequentes e aceitos perante a sociedade. (SANTOS, 1995, p. 166)
Desse modo, com a conquista dos direitos sociais e o surgimento de novos litígios familiares ocorreu um aumento exponencial da demanda pela prestação jurisdicional, acompanhada por um período de recessão econômica estrutural no início da década de 70. (SANTOS, 1995, p. 166)
Daí resultou a redução progressiva dos recursos financeiros do Estado e a sua crescente incapacidade para dar cumprimento aos compromissos assistenciais e providenciais assumidos para com as classes populares na década anterior. (SANTOS, 1995, p.166)
A crise financeira do Estado o impossibilitou de investir na expansão dos serviços da administração da justiça, impedindo uma oferta compatível com a procura verificada. (SANTOS, 1995, p. 166)
Com visibilidade social e vulnerabilidade política, a administração da justiça e os seus vários fatores – tais como formação e recrutamento de magistrados e o custo dos processos – tornaram-se novo e vasto objeto de estudo da sociologia do direito, permitindo o avanço dos estudos e aprimoramento no que tange ao acesso à justiça.
1.2 Acesso à Justiça
1.2.1 Disposições Gerais
A questão relativa ao acesso à justiça ganhou destaque – ou melhor, explodiu – no período pós-guerra, sendo a “que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econômica” (SANTOS, 1995, p. 167).
As conquistas constitucionais dos direitos sociais ao lado da expansão do Estado-Providência tornaram o direito ao acesso efetivo à justiça um direito “charneira”, significando aquele cuja negação levaria à de todos os demais.
Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos direitos sociais e econômicos passariam a meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Daí a constatação de que a organização da justiça civil e, em particular, a tramitação processual não podiam ser reduzidos à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo investigar-se as funções sociais por elas desempenhadas e, em particular, o modo como as opções técnicas no seu seio veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou mesmo antagônicos […]. (SANTOS, 1995, p. 167-168)
1.2.2 Obstáculos de acesso
Cabe à sociologia do direito a investigação sistemática e empírica dos obstáculos que impedem o acesso efetivo à justiça às classes populares, na busca de ações para superá-los. Boaventura de Souza Santos aponta-os como sendo três: econômicos, sociais e culturais. (1995, p.168)
1.2.2.1 Obstáculos Econômicos
O primeiro obstáculo econômico, verificado de maneira geral nas sociedades capitalistas, são os custos elevados do litígio. “[…] a relação entre o valor da causa e o custo de sua litigação aumentava à medida que baixava o valor da causa. (SANTOS, 1995, p. 168)
O autor destaca o seguinte: “A justiça civil é cara para os cidadãos em geral, […] mas é proporcionalmente mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis” (SANTOS, 1995, p. 168), pois seus interesses costumam estar nas ações de menor valor, que são proporcionalmente mais caras, sendo assim duplamente vitimizados; aliás, são triplamente vitimizados pela morosidade dos processos (SANTOS, 1995, p. 168)
1.2.2.2 Obstáculos Sociais e Culturais
Embora inter-relacionados com os econômicos (especialmente com o aspecto da desigualdade econômica), Santos enfatiza que os obstáculos sociais e culturais que afastam as classes populares da prestação jurisdicional são um campo de estudo inovador, que revelam que
[…] a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. (1995, p. 170)
As pessoas com um nível socioeconômico mais baixo costumam desconhecer os seus direitos, apresentando dificuldades de constatar que seus problemas têm conteúdo jurídico. Além disso, mesmo que se reconheça a violação de um direito, é preciso ter disposição (não hesitação) para propor a ação. Verifica-se maior hesitação das pessoas de classe mais baixa de procurar a tutela jurisdicional, mesmo tendo reconhecido estar diante de um problema legal. (SANTOS, 1995, p. 170)
Tal desconfiança pode ser resultado de frustrações com experiências anteriores – dada a qualidade de serviços prestados às classes mais baixas –, como também por uma situação de insegurança e vulnerabilidade que gera o medo de represálias caso procure os tribunais. (SANTOS, 1995, p. 170)
Outro significante fator que dificulta o acesso à justiça é que, mesmo que haja o reconhecimento da lesão jurídica e a disposição para pleitear seus direitos perante os tribunais, quanto menor o nível socioeconômico do indivíduo, menor é a probabilidade de ele conhecer os meios de contatar um advogado, bem como maior é a distância geográfica de sua residência e os locais em que se encontram os tribunais e escritórios. (SANTOS, 1995, p. 170)
Os estudos destacados por Santos mostram a complexidade da discriminação social no acesso à justiça, pois vão além das condicionantes econômicas e tratam das condicionantes sociais e culturais, que são “[…] resultantes de processos de socialização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de tranformar”. (1995, p. 170-171)
Não à toa, porém, estão aí – em paulatina evolução – os sistemas de assistência jurídica gratuita, com a ótica não só para os obstáculos econômicos, mas também para os sociais e culturais, privilegiando “as ações coletivas, a criação de novas correntes jurisprudenciais sobre problemas recorrentes nas classes populares e, finalmente, a transformação ou reforma do direito substantivo” (SANTOS, 1995, p. 172). Ao final, ganham destaque reformulações também no direito processual, “nomeadamente o alargamento do conceito de legitimidade processual e de interesse em agir” (Id. Ibid.).
1.2.3 O acesso à justiça em Cappelletti e Garth
Para Cappelletti e Garth, o acesso efetivo à justiça deve superar alguns obstáculos, tal como mencionado anteriormente. Em síntese, podem ser dispostos nestes termos: custas judiciais, possibilidades das partes e problemas especiais dos interesses difusos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 15-28)
Um exame dessas barreiras de acesso, como se vê, revelou um padrão: os obstáculos criados por nossos sistemas jurídicos são mais pronunciados para as pequenas causas e para os autores individuais, especialmente para os pobres; ao mesmo tempo, as vantagens pertencem de modo especial aos litigantes organizacionais, adeptos do uso do sistema judicial para obterem seus próprios interesses. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 28)
Nesse sentido, esses dois estudiosos dividem as propostas para atingir o efetivo acesso à justiça – soluções práticas para os problemas de acesso à justiça –, superando os obstáculos, em três ondas: a primeira, que trata da assistência jurídica aos menos afortunados – ora privada, ora pública –, embasada na busca dos direitos individuais; a segunda, relativa à assistência jurídica e representação para os direitos e interesses difusos e coletivos, com a mudança do paradigma individualista; e a terceira, combinando as duas anteriores, foca-se na realização do direito, seja ele individual, difuso ou coletivo, observando-se a instrumentalidade do processo e a necessária reformulação dos institutos processuais e dos órgãos judiciários. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 31-74)
REFERÊNCIAS
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Título original: Access to Justice: The Worldwide Movement to Make Rights Effective: a general report.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
Roberta Zumblick Martins da Silva é acadêmica de Direito no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc), atualmente no 7ª período. Estagiária de Direito do núcleo de direito administrativo do escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados.
Escrito em outubro de 2011.