Misael Torquato Souza *
A obra inicia, em seu primeiro capítulo, com algumas considerações sobre o direito objetivo e subjetivo. Interessante salientar o título da egrégia obra, pois o autor dos Fundamentos do Direito trabalha mais com a desconstrução desses fundamentos do que os asseverando.
O direito subjetivo, enquanto “poder do indivíduo que vive em sociedade”, faculta-nos diversas interpretações. Há explícito no senso comum a formalização da concepção de direito como sendo inerente ao ser humano de uma forma transcendente. A inferência trivial parte do pressuposto que aquilo que debilita ainda mais o desfavorecido constitui-se em si um crime, não em sua forma positivada tão ciente dos juristas, mas um crime moral sob a ótica do vulgo.
Crime enquanto injúria a um direito subjetivo que este indivíduo, socialmente ou fisicamente debilitado, possui de não se tirar-lhe o pouco que tem, seja esse pouco sua honra e dignidade ou mesmo pequenas posses. Nesse sentido o direito subjetivo encontra-se acima de todo o positivismo do ordenamento jurídico de acordo com o cisma popular. Assistimos à diversas manifestações que corroboram com nossa interpretação, não raro vemos o senso comum proclamar que “tal lei é um crime”, é ilativo dessa inferência trivial que o direito para o vulgo apresenta-se como algo que nos remete ao direito natural de matizes platônicas, devendo ser necessariamente positivado quando manifesto aos homens. Ao mesmo tempo em que deve ser rejeitada e até mesmo rechaçada qualquer forma de direito positivo-objetivo que venha de encontro a esse direito natural almejado pelos homens. No dizer de Tércio Ferraz Jr o direito se apresenta como uma dicotomia que necessariamente produz nos homens os sentimentos de obediência e revolta em relação ao direito positivo, alvitrando-nos o deus Janus bifronte.
É, ao nosso ver, positiva a assertiva de Duguit em objetar a tese de que o direito só existe em função e em relação ao estado. É equívoca tal concepção, uma vez que anteriormente ao estado moderno temos a manifesta existência do direito. Não obstante dirão que as formas primitivas de estado encontram-se na polis grega e na urbe romana, existindo aí, todavia, uma relação direta entre o poder constituído da autonomia e a produção jurídica. A esse sofisma objetamos as relações comerciais, tanto as medievo-modernas quanto as primitivas, como prova o bastante que anteriormente às proto-formas de estado nestas, ou ao estado-nação moderno naquelas, já existiam relações de obrigações necessárias à atividade comercial existente desde a pré-história, exemplo que evidencia o parecer de Duguit ao afirmar que “o direito tem um fundamento sólido, anterior e superior ao estado”, quod erat demonstrandum. Contudo a trivialidade acadêmica insiste em ater-se a tão lúdico e vil argumento, dentre outros, onde temos com veemência a posição de Hanz Kelsen e sua pirâmide escalonária do ordenamento jurídico exclusivamente embasada na aridez do estado. Contra Kelsen temos a posição de pensadores mais brilhantes como Schmitt e Platão. A visão platônica entendia que o verdadeiro direito está na observação objetiva do mundo a nossa volta. Destarte Villey nos informa que no pensamento de platão:
“O trabalho do jurista tem por finalidade descobrir o justo, é claro que a posição de Platão se afasta do positivismo jurídico a que estamos habituados. Platão, como vimos, zomba dos decretos da assembléia pública; é completamente estranho às doutrinas do contrato social, do voluntarismo, do democratismo moderno.” (VILLEY, 2005, p.29)
Infere-se daí a impossibilidade do filósofo ateniense dar respaldo à ideologia contratualista de entregarmos nossos direitos ao estado para que provenha dele toda e qualquer fonte do direito. Kelsen no papel de anteparo maior do positivismo jurídico moderno, consta Carl Schmitt, contradiz-se em sua obra. Uma vez que sendo o estado fonte única do direito de acordo com os positivistas, é premissa maior do apotegma sua soberania para que o estado seja auto-suficiente enquanto fonte “única”. Porém o neokantiano alemão trata o problema da soberania como algo a ser reprimido radicalmente. Para Schimitt, “o estado deve manter o direito; ele é vigia, não mandante”. (SCHIMITT, 2006, p. 25)
Duguit aborda a questão da sociabilidade humana como algo não produzido pela boa-vontade, mas produto de sua debilidade diante da natureza. Denotado está esse anexim do filósofo ao constatarmos que sua outra assertiva manifesta o desejo individualista humano, somente concretizado através do convívio em sociedade. Adverte-nos o autor para não confundirmos no ser humano sua necessidade que o encaminha à interdependência social com solidariedade.
À constatação do filósofo que “o homem só se concebe como verdadeiramente solidário daqueles homens que pertencem ao seu grupo” ressaltamos não somente a veracidade de suas palavras, como também corrobora ser infactível a utopia comunista a partir das premissas da diversidade e do multiculturalismo. No Brasil há uma campanha impetuosa em favor das ditas ações afirmativas e da diversidade cultural, campanha essa fadada ao malogro à luz das palavras de Duguit. Uma vez que os próprios vocábulos admitem a divisão, à luz de Duguit estamos colocando homens diferentes e sem o menor interesse em resguardo mútuo sob forçosa solidariedade que inevitavelmente entrará em rota de colisão com os interesses de um ou outro grupo. Há, porém, uma contradição em suas palavras no momento em que afirma ser não só possível, como inevitável, o dia em que o homem romperá as cadeias do sectarismo e considerar-se-á cidadão do mundo. Arrola o autor as formas de solidariedade entre os homens em duas distintas, a saber a solidariedade por similitude e por divisão de trabalho. Essa última nos parece equivocada, uma vez que se acompanharmos a seqüência lógica do texto em questão inferimos que não a divisão, mas a variabilidade das aptidões para o trabalho em meio à sociedade é que gera a solidariedade social. Duguit trabalha esse conceito a partir de Durkheim, que por sua vez é categórico ao afirmar que a solidariedade por similitude é tão mais forte quanto menor for a personalidade, ou seja, a individualidade de cada um. Interpretamos no texto de Durkheim que a necessidade de variabilidade de divisões do trabalho é vital para a sociedade capitalista. Essa forma de solidariedade possui um sistema de interpenetração com a divisão dos homens na sociedade. Pois o que difere nos homens é o que os torna interdependentes, suas diversas aptidões os obrigam a conviverem, porém de forma alguma em harmonia uma vez que essas mesmas diferenças geram outras diferenças de necessidades e interesses que os impelem necessariamente à competição e à emulação. Essa frágil união é alimentada apenas pela necessidade dos homens de sobrevivência, enquanto sua divisão fortalece-se pelos interesses diversos dos indivíduos diversos. Para revigorar essa união torna-se necessário apelar para o espetáculo social de Guy Debord, que assevera ser na aparência que se fundem a unidade e a divisão social. Para Debord
“O espetáculo, da mesma forma que a moderna sociedade, está ao mesmo tempo unido e dividido. Ele edifica a sua unidade sobre o dilaceramento. A contradição, quando emerge no espetáculo, é contradita pela inversão do seu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária, enquanto que a unidade mostrada está dividida”. (Debord, 2003, III-54)
Toda nossa digressão sobre o assunto anterior serve tão somente para provar inviável a constatação de Duguit ao afirmar que a humanidade caminha para o inevitável cosmopolitismo redentor. Pois por ambos os caminhos chegamos à divisão e conseqüente dilaceração da solidariedade humana. No primeiro temos um sectarismo de grupos na hipotrofia do indivíduo em proveito do coletivo, no segundo há o sectarismo de indivíduos na hipertrofia do individualismo em detrimento do coletivo. , ou seja, muitas vezes as aparências levam o juízo a enganar-se. (Tosi, 2000, p.101)
O homem só vive em sociedade em conseqüência de sua prostração frente às objeções da vida. Havendo a necessidade da convivência social nasce com essa convivência o direito. Sendo o direito em si mesmo ordem, dessa ordem nascerá conseqüentemente uma hierarquia dos aplicadores da ordem sobre os receptores, mais que perfeita está então a colocação de Duguit:
“O homem vive em sociedade e só pode viver em sociedade; a sociedade subsiste apenas pela solidariedade que une os indivíduos que a compõem. Por conseqüência, uma regra de conduta impõe-se ao homem social pela própria força das coisas, e essa regra pode formular-se deste modo: nada fazer que atente contra a solidariedade social sob qualquer das suas duas formas e fazer tudo o que for de natureza a realizar e a desenvolver a solidariedade social mecânica e orgânica.” (Duguit, 2005, p. 23)
Ao demonstrar nas páginas seguintes a individualidade da regra, diretamente alicerçada nas individualidades humanas, Duguit contesta a proclamada igualdade absoluta dos homens, contestação inequívoca do autor à máxima sofista outorgada pela revolução burguesa de 1789. Surpreendentemente o autor vai de encontro ao mais francês de todos os adágios modernos, sendo ele mesmo francês, abjurando o pensamento igualitário ao demonstrar que a sociedade justifica-se em suas próprias diferenças e nas necessidades complementares de seus associados.
Colocamo-nos em divergência com Duguit quando o mesmo impugna o conceito jusnaturalista como direito ideal e absoluto. Pois ao nosso ver esse é o real exórdio para inserirmos o Direito no rol das ciências, senão vejamos a ciência é, segundo o Dicionário Caldas Aulete, a soma ou conjunto de conhecimentos sobre variados objetos, e quando ínsita à regras o faz no campo do ser e não do dever ser como as regras de funcionamento de um organismo vivo. Diferentemente quando se trata das regras de um idioma, que não se pode enxergar como ciência, sendo tão somente aplicação de regras no campo do dever ser. Tanto quanto um idioma não será uma ciência enquanto pura aplicação de normas, também o Direito perde seu status de ciência, uma vez que deixa de ser a ciência do justo, como o já citado dicionário afirma que direito é “aquilo que é moralmente justo”. Platão informa que a missão do homem político é a descoberta do justo, é de Platão que recebemos o conceito de que uma lei iníqua não é lei, mas perversão da mesma. A outra premissa que encadeia-se no silogismo platônico é o fato de que o positivismo jurídico engessa o estado. Remete-nos esse silogismo ao início do presente trabalho, passamos a entender a percepção trivial do direito natural como algo que pertence ao indivíduo desde o seu nascimento, intrínseco ao ser humano independente de sua condição.
Parece-nos difícil a compreensão da assertiva de Duguit quando assevera que “a regra do direito… não é uma regra ideal e absoluta, da qual os homens devem esforçar-se por se aproximar cada vez mais; é uma regra variável e mutável” ( Duguit, 2005, p.24), uma vez que se entendermos essa regra do direito como o direito positivo que os homens devem constantemente melhorá-lo, o autor estaria colocando-se como jusnaturalista ao afirmar a mutabilidade do direito, depois de toda sua digressão sobre a regra aplicada ao indivíduo. Todavia, se entendermos essa regra como direito subjetivo, ainda que não ideal e absoluto, teremos na própria declaração do autor sua contraposição ao jusnaturalismo. De qualquer maneira, parece-nos difícil a compreensão desses axiomas a partir de uma única leitura.
Perscrutamos em seu texto a defesa da liberdade como direito incontestável, observa-se a simples defesa do dever do indivíduo de desenvolver plenamente suas aptidões para justificar sua liberdade. Ora, também na Roma Antiga os escravos tinham esse dever, e não há que se considerar sensato que havendo uma aptidão do indivíduo, seu mestre não a descobrisse a tempo de fazer uso da mesma. Se não temos aí uma demonstração evidente de um direito natural permeado no coração dos homens, não sei onde mais a teremos. Posto que o malogro em bem conceituar o ideal da liberdade não dá direito a ninguém de atentar contra a liberdade alheia, percebemos haver um direito natural que não nos permitimos usurpar a ninguém.
Ao apresentar-nos a dicotomia do governo teocrático versus governo democrático, Duguit trabalha com o enfrentamento Platão versus Aristóteles em suas concepções de direito dos deuses contra direito dos homens. Confronto esse que atravessou a história vindo assentar-se na luta de classes marxista, ambas as formas de governo em sua produção de direito demonstraram excessos ao longo da história. Não somente o despotismo absolutista foi capaz de gerar revoltas, senão vejamos os excessos das assembléias populares atenienses, ou quando a inveja provocou a expulsão de Camilo da república romana e se tivemos no século XX os horrores do nazi-fascismo europeu, o que dizer de nossa dita democracia que fundamenta-se em grupos organizados capazes de sob o manto da democracia fazer vingar verdadeiras ditaduras das minorias. Integérrima a afirmação do autor ao solicitar meios de resguardo do indivíduo contra os ditames dos parlamentos, leia-se parlamentos submetidos à peita dos grupos organizados que se ocultam sob a farsa da inóxia.
Em sua crítica das doutrinas democráticas, Duguit remete o princípio da soberania, pertencente exclusivamente à nação, embargando qualquer pretensão de facções e indivíduos ao exercício da mesma. As ditas ações afirmativas que permeiam nossa “democracia” estão locupletadas pelos vícios demagógicos que arrevesam a democracia em tirania de grupos. Tirania essa que já conseguiu envenenar nossa constituição com um anexim igualitário que se sustenta na inversão da igualdade. O sistema encerra seu ciclo na formação acadêmica dos futuros operadores do direito que devem, de acordo com a alocução esquerdocrata, saírem das faculdades intoxicados de Michel Foucault. A anamorfose demagógica já era admoestada por Aristóteles em sua política, coisa que os Romanos, mais brilhantes que os Gregos na Arte Política, souberam sobrepujar.
Duguit faz perfeita crítica ao Contrato Social de Rousseau, ao demonstrar que a soberania não está em momento algum distribuída entre os cidadãos, mas nas mãos e nas conveniências da maioria. Essa parte final requer uma crítica de nossa parte, pois a democracia tem demonstrado que também as minorias podem impor suas vontades arrogando-se à pretensão do uso da soberania, tornando inquestionáveis seus sofismas. Sob o prognóstico de maiores mazelas sociais a maioria torna-se consenciente à ditadura ideológica da minoria, amparada pela muito bem dissimulada máscara do inóxio que encobre terrificante deletério social.
O autor desvanece o sofisma rousseauniano ao equiparar o poder despótico dos reis com o poder despótico das assembléias populares, requisitando meios de defesa contra as burlas das assembléias populares da mesma forma que se exigiram garantias contra o poder absoluto. No dizer de D uguit, “uma coisa injusta permanece injusta por mais que seja ordenada pelo povo ou seus representantes”. (DUGUIT, 2005, p. 40)
Duguit vaticina a submissão da “democracia” à força dos grupos sociais organizados, arrola as técnicas dos governos teocráticos na tentativa de legitimar suas ações estapafúrdias perante seus súditos. Afixa o autor o direito divino, a vontade social, a soberania nacional como palavras sem valor entre tantos outros sofismas. Hoje vemos somarem-se à esses sofismas tantos outros, como a soberania popular, a vontade democrática estabelecida, as ações afirmativas e outras tantas aberrações perpetradas pela patuscada democrática. Vale também para os democratas, e principalmente os esquerdocratas que a controlam, a observação de Duguit que “os governantes querem enganar os seus súditos e se enganam a si mesmos.” Uma vez que como religiosos fanáticos, esquecem de olhar para o mundo com os pés no chão e passam a acreditar nas próprias mentiras que usaram para lidimar-se no poder.
A posição de Duguit com relação à dicotomia jus naturalismo/jus positivismo torna-se mais albinitente quando o mesmo posiciona-se em favor do jus positivismo refutando o caráter singular do mesmo, asseverando que o costume continua a desempenhar papel importante em nossa sociedade jus positivista, mesmo Kelsen em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado não deixou de fazer menção ao dessuetudo. Não podemos deixar de concordar com a proposição do autor, uma vez que o direito continental moderno é eminentemente positivo, embora a força consuetudinária ainda se faça sentir, com ênfase na inferência trivial, provando que o jus naturalismo está longe do seu ocaso.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Edipro, 1995.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Disponível em: < www.geocities.com/projetoperiferia >. Acesso em 2006.
DUGUIT, Leon. Fundamentos do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2005.
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SCHIMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006.
TOSI, Renzo. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
*Acadêmico de Direito da UFSC.
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