A obra de Paolo Grossi, Ministro da Corte Constitucional da República Italiana e professor catedrático da Universidade de Florença, é uma compilação de
quatro ensaios, entre eles discursos e conferências, que têm por objetivo fazer uma revisão dos fundamentos jurídicos modernos hegemônicos da
atualidade, isto é, romper com as convicções acríticas e o simplismo que caracterizam o sistema jurídico moderno.
I – JUSTIÇA COMO LEI OU LEI COMO JUSTIÇA?
Logo no primeiro ensaio, Grossi manifesta uma curiosa indagação: Porque o homem comum tanto desconfia do direito? Certamente, um dos motivos desta
desconfiança deve-se ao fato do direito atual mostrar-se apenas como lei, ou seja, apenas um comando autoritário indiferente às peculiaridades das
situações que pretende regular, um direito que se orgulha por ser abstrato e geral. Generalidade e abstração que não garantem igualdade numa sociedade
extremamente estratificada e segmentada como a nossa, apenas acentuam ainda mais as diferenças já existentes.
Outro aspecto tratado no início da obra é a forte ligação existente entre o Estado moderno e direito: é lei somente o ato que provém de determinados
órgãos (do Estado) e que estejam de acordo com um procedimento específico. Esta redução do direito às leis estatais pode trazer diversos problemas,
visto que a lei acarreta uma obrigação, portanto, uma vez emanada, por mais injusta que ela possa ser, deve ser obedecida. Consequências trágicas dessa
obediência cega às leis não faltam, um exemplo muito ilustrativo disto foram as leis segregacionistas do Apartheid que , apesar de serem absurdas, eram
respeitadas , ainda que por medo de uma sanção, pela sociedade. O vinculo entre Estado e direito é recente, surgindo juntamente com o aparecimento dos
Estados modernos no século XV. E são casos como o do Apartheid e das leis racistas impostas pelo fascismo que evidenciam o risco de se ter o direito
vinculado a uma única fonte , que é, na estrutura vigente, o Estado moderno.
Para contrapor o sistema jurídico moderno, Paolo Grossi busca comparar o direito na modernidade com o direito medieval. Segundo o autor, na Idade média
não havia um projeto totalizante, ou melhor, o poder político não tinha o objetivo de controlar o fenômeno social e, devido a isso, não monopolizava o
direito. Muitas vezes o corpo político sequer interessava-se pelo direito, dando liberdade para que a sociedade se ordenasse por seus próprios
princípios. Isto prova que, ao contrário do que muitos imaginam, existe direito sem Estado. Inclusive , quando o direito não está vinculado ao Estado
ele representa com maior transparência os verdadeiros alicerces da sociedade, uma vez que não há ninguém outorgando sua vontade individual, travestida
de vontade geral, como lei.
Entretanto, paulatinamente, a sociedade, sobretudo a europeia, vai transformando-se até emergir um novo Estado e, juntamente, um novo Príncipe. Ambos
objetivam romper bruscamente com o passado, o Estado centraliza-se cada vez mais, enquanto os príncipes aumentam sua área de atuação, envolvendo-se a
partir deste momento na dimensão jurídica. É, então, que surge a cultura de um direito monista que se vincula unicamente ao Estado – tendência esta que
se encontra em decadência, ora pela conquista de autonomia jurídica por alguns grupos, como por exemplo, de indígenas na Bolívia e no Equador, ora pelo
aumento da influencia de instituições transnacionais como a União Europeia – deixando a sociedade completamente subordinada a este, o que pode ser
observado em Kant:
[…] a vontade do legislador (legislatoris) com respeito ao que concerne ao Meu e o Teu exterior é irrepreensível; que o poder executivo do governo
(summi rectoris) é irresistível e que a sentença do juiz supremo (supremi judicis) é sem apelação. (KANT, 1993, p. 156).
Foi sobre os parâmetros supracitados que se formou a cultura jurídica vigente. Na qual a lei é lei não por seu conteúdo, mas por sua origem. Uma lei
que é absoluta e que põe fim ao pluralismo jurídico medieval, como Grossi brilhantemente, e com tom irônico, descreve: “A antiga sobreposição e
integração das fontes – leis, costumes, opiniões doutrinais, sentenças, práxis – cede lugar à fonte única, que se confunde com a vontade do Príncipe, o
único personagem acima das paixões e dos partidarismos, o único capaz de ler o livro da natureza e traduzi-lo em normas […]” (GROSSI, 2007, p.40)
Ainda no primeiro Ensaio, o autor discorre sobre a diferença entre lei e direito. De acordo com Paolo, lei é a expressão de vontade do rei, enquanto o
direito está muito mais ligado à experiência social, sendo forjado cotidianamente. Esta diferenciação mostra que Grossi não compactua com a visão de
que direito é, apenas, a lei, sendo adepto de uma doutrina que observa o direito como um conjunto de determinações muito mais amplas do que uma simples
norma jurídica. É evidente que o raciocínio seguido pelo jurista italiano traduz melhor a realidade, afinal o direito vai além da lei, sendo, na
verdade, fruto das relações sociais e dos contextos históricos em que elas desenvolveram-se.
II- ALÉM DAS MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE
No segundo Ensaio, Paolo Grossi expõe sua visão sobre os parâmetros formados pela cultura jurídica atual. Para o autor, o iluminismo jurídico foi, na
verdade, um grande produtor de mitos. Mitos interrelacionados e organizados organicamente de um modo que se fundamentam em outros mitos como o estado
de natureza, contrato social, igualdade jurídica e vontade geral. O grande problema da cultura jurídica vigente é, justamente, o fato dela se basear em
puras abstrações – em um homem natural, livre , isolado e detentor natural de uma série de direitos – e , devido a isso, formular não mais que
sofismas.
Um dos papéis do historiador do direito é formar uma consciência crítica nos operadores do direito positivo e é por esse motivo que se estuda as bases
do chamado iluminismo jurídico. É só fazendo-se uma análise crítica das mitologias jurídicas que fundamentam o modelo jurídico vigente que se pode
levar o direito além da sua própria sombra e buscar reformá-lo.
Outro tema tratado na obra é a simplificação do direito na cultura jurídica atual. Hoje, o direito é lei. Mas direito não deve restringir-se a isso.
Direito deve ser algo essencialmente social, uma realidade dinâmica que se altera de acordo com as relações sociais, e não uma simples, e simplista,
norma emanada por uma autoridade do Estado, até porque a norma aprisiona o direito, torna-o imóvel, ou melhor, a norma coagula o direito. Portanto,
podemos concluir que o grande erro do pensamento jurídico que hoje vigora é pretender regular uma sociedade dinâmica através de um direito estático.
A redução do direito à lei, evidentemente, possui seus aspectos positivos, entre eles a clareza do direito positivado e o estabelecimento de parâmetros
para os juízes apoiarem-se. Inclusive, o iluminista inglês John Locke traz algo sobre o que fora discutido no parágrafo em uma de suas obras:
Seja quem for que detenha o poder legislativo, ou o poder supremo, de uma comunidade civil, deve governar através de leis estabelecidas e permanentes,
promulgadas e conhecidas do povo, e não por meio de decretos improvisados; por juízes imparciais e íntegros, que irão decidir as controvérsias conforme
estas leis; (LOCKE, 2002, p. 159).
Os aspectos positivos já citados, entretanto, não compensam as consequências geradas pela artificial redução do direito. Um direito enraizado no
costume e, por conseguinte, produto de toda a sociedade, traduz muito melhor as aspirações da sociedade do que o emanado por um ser superior e que deve
ser obedecido por todos. Este último é um direito que se prende ao momento da produção, que se limita ,segundo Hobbes, à palavra daquele que tem
direito de mando sobre os outros sem importar-se com o conteúdo da lei. Um problema gerado por esse demasiado apego à lei é a distancia existente entre
a produção e a aplicação de uma norma, porque se pode ter as mais perfeitas leis, porém se elas não forem cumpridas nem aplicadas de nada adiantarão,
se a sociedade não encarnar a lei escrita, ela não terá nenhuma eficácia. Sobre este tema o jurista brasileiro Miguel Reale assevera:
Há, todavia, um fenômeno, a que já aludimos, que é o da possível revogação das normas legais pelo desuso. Muito embora predomine a tese contrária à
essa revogação, de acordo, com o princípio corrente de que “ uma lei só se revoga por outra lei de igual ou maior categoria”, é preciso reconhecer que
se não pode admitir a eficácia de uma norma legal que , durante largo tempo, não teve qualquer aplicação, tão profundo era o seu divórcio com a
experiência social. (REALE, 1991, p. 121)
Concluímos que, neste segundo Ensaio, Grossi buscou mostrar-nos que as mitologias jurídicas produzidas , sobretudo, pelo iluminismo jurídico
encontram-se em xeque. É evidente que o direito não deve perder seu caráter formal, mas deve, ao menos, reconhecer que a sociedade é ativa e dinâmica e
que, logo, deve ser regulada por leis que se adaptam a este movimento, e não por um direito que flutua sob a história sem adentrá-la.
III- CÓDIGOS: ALGUMAS CONCLUSÕES ENTRE UM MILÊNIO E OUTRO
Nesta conferência, Paolo elucida-nos a respeito dos Códigos. Para ele, os Códigos – herança do iluminismo jurídico – são tentativas de estabilizar algo
que é naturalmente instável. Inicialmente, os códigos buscavam, também, um rompimento com o passado, buscavam substituir um direito pluralista e
fortemente conectado com a sociedade por um que era fortemente ligado ao poder político e se expressava por meio de um texto normativo artificialmente
construído. Ao nosso entender, a mudança, de um direito fortemente ligado à sociedade por um direito extremamente coeso com a política, foi negativa,
posto que o foco do direito transferiu-se da sociedade para o Estado e seus agentes, isto é, o direito deixou de buscar sua fonte nos indivíduos e
passou buscá-la no poder dos representantes desses indivíduos.
Outro tema tratado na conferência foi a influência jusnaturalista nas Codificações. Segundo o autor, os Códigos possuem, em sua estrutura óssea, o
jusnaturalismo iluminista. O problema é que este se fundamenta em abstrações e, por conseguinte, os Códigos também. Ambos possuem como protagonista um
sujeito abstrato destituído de carnalidade humana, de virtudes humanas. Isto faz com que a diferença entre o hipotético mundo do direito
positivo-iluminista e o mundo real dos homens seja imensa. Uma excelente crítica feita a este modelo codificista, proposto pelo iluminismo jurídico, é
encontrada na obra Le lys rouge de Anatole France:
a majestosa igualdade das leis, que proíbe ao rico assim como ao pobre de dormir debaixo das pontes, de mendigar nas ruas e de roubar o pão […] ela
eleva ,sob o nome de igualdade, o império da riqueza. (FRANCE, 1906, p. 118)
A grande virtude do pensamento de France foi perceber que a igualdade das leis, ao invés de promover a igualdade humana, acentua, ainda mais, a
existente desigualdade. Uma vez que os homens da sociedade encontram-se em diferentes condições econômicas e sociais, a imposição de leis exatamente
iguais para todos , no mínimo, mantém o status quo, isto quando não agrava ainda mais a diferença entre essas condições.
Felizmente, a ideologia de igualdade das leis, isto é, a hegemonia absoluta dos códigos e constituições, encontra-se enfraquecida. Hoje, outros
dispositivos ganham força, como a jurisprudência e a realidade consuetudinária, o que dá mais liberdade aos juízes, libertando-os após serem, durante
largo tempo, reféns dos códigos e demais leis fixas. É evidente que esta liberdade ainda não é plena, os juízes não podem ignorar os códigos e textos,
porém já possuem autonomia suficiente para ir além dos textos, apesar de seu caráter vinculante.
Já na parte final deste terceiro Ensaio, Grossi traz uma interessante indagação: a ideia de Código ainda é atual? Antes de aprofundar no tema, o autor
faz algumas considerações: a velocidade da transformação social na civilização moderna é muito maior do que era na antiguidade, a civilização
encontra-se cada vez mais complexa – sobretudo com as velozes alterações econômicas e tecnológicas – e o mundo vive hoje uma universalização, ou seja,
a tendência é que as barreiras entre os Estados dissolvam-se. Estas realidades citadas pelo jurista italiano constituem obstáculos para que o atual
modelo de Código continue em vigor, visto que numa sociedade dinâmica como a atual, as leis teriam que ser constantemente alteradas e também que,
devido à tendência das barreiras estatais diminuírem, a territorialidade dos Códigos ver-se-ia ameaçada constantemente. Ao nosso entender, caso o
modelo de Código atual não seja repensado ele entrará, em breve, numa completa exaustão. Para resolver isto, Grossi propõe uma nova espécie de Código,
um que sirva como uma grande moldura ao direito, servindo apenas para ampará-lo – e não para ser sua expressão máxima, como são os Códigos
contemporâneos. A alternativa trazida pelo autor é realmente interessante, principalmente pelo fato da sociedade voltar a ser o centro produtor de
direito, e não mais um mero objeto deste.
IV- AS MUITAS VIDAS DO JACOBINISMO JURÍDICO
Um dos temas discutidos neste último Ensaio do livro é o papel crítico que o historiador jurídico exerce na análise do direito vigente. É função do
historiador do direito servir como consciência crítica, lutar contra as absolutizações e mitificações pregadas por algumas doutrinas. Em síntese, o
conhecimento da história jurídica, principalmente de seus erros, é essencial para construção de novos entendimentos à cerca do direito.
Sendo a luta contra as absolutizações e mitificações um dos objetivos dos historiadores do direito, podemos crer que estes terão um árduo trabalho nos
tempos atuais. Já desde a Revolução Francesa, ainda no século XVIII, o mirabolante laboratório iluminista vem produzindo um sem-número de mitos
jurídicos. De maneira alguma pretendemos tirar o mérito das conquistas alcançadas pelos conhecimentos produzidos pela corrente iluminista, mas apenas
explicitar que estes passaram a condição de mitos, isto é, passaram a uma condição na qual não podem ser contestados.
A mitificação dos preceitos do direto atual deve-se, principalmente, ao famigerado jacobinismo jurídico. Segundo a visão jacobinista, o Estado tem a
incumbência de modelar a sociedade e o povo. Outros aspectos característicos desta visão é a desconfiança no social, ou seja, não acreditar que a
sociedade possa organizar-se sozinha, e a confiança no político, que tem por tarefa vigiar permanente a sociedade civil e estabelecer as regras sobre
as quais esta sociedade submeter-se-á. Podemos perceber que esta visão estatalista, monista e que aceita a existência de homens onipotentes ainda é a
que vigora hoje, minimamente abrandada.
É incrível constatar que, não obstante a doutrina jacobinista ter permitido a existência de tantas aberrações como o Nazismo, Stalinismo e tantos
outros regimes totalitários ou mesmo leis especificas que tolhem a sociedade, entre os alicerces que hoje sustentam o nosso direito e Estado muitos são
originários do jacobinismo, que, apesar de ajustar-se em certos momentos à algumas correntes, como a positivista do século XIX, continua sempre vivo.
Outro tema tratado na Obra de Grossi, é a relevância de se outorgar Declarações e Cartas. O autor critica estas espécies de documentos, inclusive chama
a “Carta de Nice” – documento outorgado em 2000 sob o nome oficial de Carta dos direitos fundamentais da União Europeia – de “última Carta de
direitos”, sobretudo pelo fato de elas declararem desconfiança tanto da formação espontânea do direito por parte da sociedade, quanto da capacidade do
Estado de produzir o direito. Outro problema, trazido por Paolo, é a intrínseca individualidade desse tipo de documento, que extrai o homem de seu
contexto histórico, e busca um homem abstrato, desumano. As Cartas e Declarações tem como objeto uma espécie de robô que existe somente no paraíso
artificial jusnaturalista. Concluímos então, que Cartas e Declarações são ineficientes e baseadas em abstrações, posto que partem de um homem irreal e
procuram impor conceitos à sociedade sem poder utilizar da força para coerção, como é permitido aos Estados.
Na parte final do quarto Ensaio, e do livro, Grossi convida-nos a repensarmos o modelo de direito que adotamos. Para ele, devemos rever o estatalismo
jurídico e pensar num direito que observe o sujeito no interior de um tecido social, e não como um indivíduo isolado. De fato, devemos repensar este
direito que hoje vigora, e construir um novo modelo jurídico que se baseie em homens reais, considerando suas relações sociais e históricas, e no qual
seja recuperada a riqueza plural da sociedade.
Por fim, podemos dizer que a Obra de Paolo Grossi dá-nos um bom panorama dos fundamentos que constituem o direito vigente e leva-nos a analisá-los de
modo crítico. Esta análise evidencia-nos que o direito de hoje, que tem por base mitos forjados pelo iluminismo, encontra-se muito mais conectado com o
Estado do que com a própria sociedade. É necessário que haja uma mudança, o direito, invariavelmente, tem por objeto a sociedade e deve, portanto, ser
produzido pela mesma, pois só assim valorizar-se-ão os costumes e as demais formas de expressão da sociedade. O direito deve ser feito por todos, e não
por, apenas, alguns iluminados que se julgam únicos capazes de prover o bem da sociedade.
REFERÊNCIAS:
FRANCE, A. Le lys rouge. Paris: Calmann-Lévy, 1994.
GROSSI, P. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007.
HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002.
KANT, E. Doutrina do Direito. São Paulo: Ícone editora, 1993.
LOCKE, J. 2º Tratado sobre o governo civil. São Paulo: Martin Claret , 2002.
REALE, M. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1991.
* Eduardo Moretti, Acadêmico de Direito da UFSC