Resenha Crítica: Lei penal e exemplaridade econômica – Sontag
SONTAG, Ricardo. Lei penal e exemplaridade econômica: A execução das penas como extensão dos enunciados legislativos de Jeremy Bentham. In: DAL RI JÚNIOR, Arno (org.). Iluminismo e Direito Penal. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. 206 p.
O artigo faz parte de uma obra organizada pelo Professor Doutor Arno Dal Ri Júnior em que se estudam alguns aspectos do Direito Penal no iluminismo. O trabalho em análise perscruta a questão da exemplaridade econômica da Lei Penal em Jeremy Bentham, isto é, o efeito de preventivo que a execução das penas gera perante terceiros.
Inicialmente, o artigo sedimenta o marco inicial do estudo. Valendo-se do clássico conceito de problema penal criado por Giovanni Tarello – que, de forma geral, é o que chamaríamos de Direito Penal e Processo Penal – mostra como Bentham se inseriu no contexto do iluminismo da 2ª metade do século XVIII.
Levanta também a diferença entre juristas e “filósofos juridicamente formados”, tipo de pensador que seria Bentham. Para o autor, aqueles são simples operadores de leis, enquanto estes têm uma visão global e interdisciplinar do fenômeno do direito.
Tal distinção, entretanto, mostra-se terminologicamente equivocada, haja vista que hodiernamente, a noção de jurista tem uma concepção muito mais ampla do que somente um operador de leis, aproximando-se da definição dada para a expressão “filosofo juridicamente informado”. Assim, Bentham não seria um filósofo juridicamente informado, mas um grande jurista, com conhecimentos interdisciplinares muito apurados.
Ressalta o autor, que o jurista inglês é um dos maiores expoentes do utilitarismo. Este radicalizou o princípio da utilidade, sendo que toda a ordem normativa deveria ser permeada pela máxima “a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número de pessoas”. E tal princípio realmente faz parte das idéias do estudioso, compreendendo o norte de todo o seu pensamento, inclusive no Direito Penal.
Bentham é considerado um dos consolidadores do iluminismo e é muito conhecido por seu projeto panopticon, em que um observador poderia seria visível, mas que pudesse vigiar as pessoas em sua volta. Embora tal sistema tenha sido projetado para prisões, seu criador o via como aplicável em todas as áreas, como escolas e fábricas, o que beira o absurdo num Estado Democrático de Direito, por violar Direitos Fundamentais básicos, como o da intimidade.
Muito bem destaca o autor, que, a partir do iluminismo, o papel do poder legislativo é alterado profundamente, “o guardião da ordem secular” transforma-se em “reformador da civilização”, processo em Bentham está inserido, sobretudo no que tange ao Direito Penal.
Assim, para o iluminista inglês, a partir de suas idéias utilitaristas, a lei penal teria dupla dimensão: determinar as condutas socialmente desejáveis e efetivamente garanti-las. Tal natureza dúplice, embora muito criticada pelos estudiosos da Criminologia Crítica, ainda faz parte do discurso dos penalistas e dos anseios populares, o que mostra a forte influência do iluminista inglês na sociedade hodierna.
Outro aspecto do pensamento de Bentham que entraria em conflito com a ideologia crítica do Direito Penal é a diferenciação de cidadão e de criminoso. Para o utilitarista, enquanto o primeiro concordaria com as regras impostas sociedade, o último seria o que não se enquadraria em tal sistema, cabendo ao Estado defender a ordem social a partir das normas penais. A Criminologia Crítica ataca frontalmente tais idéias, por compreender que todos cometem condutas definidas como “crime”, sendo que não existiria o cidadão e o delinqüente típicos, mas apenas uma margem social que seria criminalizada.
Da referida diferenciação entre cidadão e criminoso, surge então a importante questão da destinação das leis em Bentham. As leis comuns seriam destinadas aos cidadãos e apontariam a conduta desejada pelo soberano. Já as normas penais, teriam como sujeito o magistrado que executaria as penas previstas.
Dessa forma, a conduta criminosa não seria antijurídica, mas apenas um fato que geraria uma obrigação funcional aos juízes, qual seja, de aplicar e ordenar a execução das penas. Tal visão mostra-se, contudo, superada pela Teoria do Direito moderna que, muito bem compilada por Kelsen, deixa claro que quando se institui uma sanção há um dever implícito de não realizar a conduta apenada. A lei penal, portanto, tem destinação a todos – como proibição que é – e não somente ao julgador como via o iluminista.
Voltando ao pensamento do utilitarista inglês, cabe destacar a função dúplice que teria a execução das penas: a prevenção geral (exemplaridade econômica) e a correção individual.
Quanto à exemplaridade econômica, esta se mostra uma conseqüência lógica do princípio utilitarista. Ainda hoje, a concepção da prevenção de outros crimes através da aplicação da penas é muito comum e corresponde aos anseios sociais, sendo um dos fins das punições das condutas criminalizadas.
Todavia, o iluminista inglês peca, e muito, ao querer vincular, a título de analogia, a aplicação da pena com uma característica do delito cometido. Com isso, retornar-se-ia à simplicidade da lei do Talião, o que poderia transformar a execução das penas em verdadeiros espetáculos de horror.
Ciente disso, Bentham não desejava levar a “analogia do Talião” às últimas conseqüências. Em sintonia com a ideologia da época, via a prisão como o meio para atingir os referidos objetivos. Tinha, contudo, noção que o sistema prisional deveria ser remodelado para se adequar a seu binômio “analogia” e “exemplaridade”.
Para isso, propôs a criação de tipos de prisão, conforme o tipo de delito cometido, com nomes e cores diversas. Ademais, sugeriu que os sistemas carcerários deveriam ficar próximos das metrópoles a fim de assustar e inibir os cidadãos a praticarem condutas criminosas.
Aqui, vê-se que a exemplaridade foi cegamente exacerbada, de forma que violasse claramente o princípio da utilidade insculpido na célebre frase já mencionada: “a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número de pessoas”. Como se pode atingir a felicidade atraindo-se para perto delas um sistema que lhes causem medo? Ademais, os riscos de trazer um estabelecimento prisional para perto das cidades tornam muito mais caro o sistema de segurança, violando o princípio basilar do pensamento de Bentham.
Já no que concerne à correção individual, tal função da pena se mostra um grande engodo. Não é de hoje que as prisões não ressocializam nem tornam os que lá ficam aptos ao convívio em sociedade. Em verdade não se “corrige” ninguém aplicando penas, mas apenas se isola o desviante do convívio da sociedade.
Muito sapiente interessante é a conclusão do autor quanto ao sistema penal do utilitarista estudado e por que não funcionaria hodiernamente: “Evidentemente, a exemplaridade, para Bentham, deveria ser econômica e contínua e não descontínua e seletiva […]”. (p. 110, grifo nosso)
Por fim, ressalta-se a qualidade do artigo ora resenhado, por sua busca de informações nas fontes primárias. Analisa-se o pensamento de Jeremy Bentham através de livros escritos em sua língua materna, o que certamente torna muito mais verossímeis os apontamentos realizados pelo autor.