Tema: Direito Administrativo
Subtema: Concurso Público
Tese: É ilegal o parecer emitido pela comissão de verificação que, de forma sumária, conclua apenas pelo critério da heteroidentificação, sem qualquer fundamentação e sem levar em consideração a autodeclaração do candidato e os documentos por ele juntados.
Aplicação: Requerimento administrativo, petição inicial, réplica ou recursos judiciais para obter a anulação da decisão administrativa que reprovou candidato no exame de heteroidentificação para aferir a veracidade da autodeclaração de pessoas negras em concursos públicos e vestibulares. Esta tese pode ser utilizada tanto no âmbito administrativo como no judicial.
Conteúdo da tese jurídica:
I. CANDIDATO ÀS VAGAS RESERVADAS A CANDIDATOS NEGROS. REPROVAÇÃO NO EXAME DE AFERIÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO FOI ILEGAL PELA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO E POR TER DESCONSIDERADO OS DOCUMENTOS APRESENTADOS PELO CANDIDATO.
A parte autora se candidatou para uma vaga no concurso público nas vagas reservadas a candidatos negros, por ser pardo. Segundo constava no edital, além da autodeclaração apresentada no momento de inscrição, os candidatos deveriam se submeter a um exame de heteroidentificac?a?o realizado por uma comissão específica e destinada a este fim.
Após a aprovação preliminar no concurso, a parte autora foi convocada para avaliação pela banca, a qual se submeteu convicta de que, ao fim, seria considerada aprovada.
No entanto, para sua surpresa, a comissão indeferiu sua candidatura, porque entendeu, sem qualquer explicação, que a parte autora não apresentava fenótipo de pessoa negra. Aliás, a decisão apresentada é padronizada e não detém qualquer especificação de quais os fatores avaliados, ou o que foi considerado insuficiente na caracterização necessária para a aprovação para as vagas reservadas.
Essa decisão viola os mais comezinhos princípios jurídicos e, simultaneamente, a regulamentação específica que orienta as comissões de heteroidentificac?a?o.
Primeiro, a Constituição Federal prevê eu seu artigo 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Ora, o presente caso se refere a um litígio administrativo, no qual um cidadão pleiteia um direito de um lado, e, de outro, a Administração nega o reconhecimento a este direito.
Para que isso seja feito de modo legítimo, de acordo com o Direito, é necessário que o ato administrativo seja devidamente motivado, porque, sem motivação, é impossível que seja realizado de forma adequado o contraditório e a ampla defesa. A lógica é simples: não é possível contraditar um argumento sem conhecê-lo.
Deste modo, a afirmação genérica de que a parte autora “não tem o fenótipo de pessoa negra” é absolutamente insuficiente para viabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa.
No mesmo sentido, dispõe o artigo 50 da Lei Federal nº 9.784/1999:
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;
Desta forma, é imprescindível que a decisão administrativa que indefere o reconhecimento de um direito pleiteado (o de utilizar as vagas reservadas) deve ser, obrigatoriamente, motivada com a indicação dos fatos e fundamentos jurídicos que levaram à sua prática.
Aliás, a própria normativa específica que orienta as comissões de validação das autodeclarações reforçam o dever de motivar as decisões:
Portaria Normativa nº 4/2018 – Ministério do Planejamento:
Art. 12 – A comissão de heteroidentificação deliberará pela maioria dos seus membros, sob forma de parecer motivado.
Deste modo, resta claro o dever de motivação do ato administrativo que indefere o reconhecimento de candidato a vaga reservada a candidatos negros em concurso público.
Esse é o entendimento consolidado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), como se verifica do recente julgamento, ocorrido em março de 2019:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. SISTEMA DE COTAS SOCIAIS. COMISSÃO DE VERIFICAÇÃO. CONCLUSÃO APENAS PELO CRITÉRIO DA HETEROIDENTIFICAÇÃO. ILEGALIDADE. HAVENDO DÚVIDA QUANTO À DEFINIÇÃO DO GRUPO RACIAL DO CANDIDATO PELA COMISSÃO DEVE PREVALECER A PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DA AUTODECLARAÇÃO.
1. O Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da Lei n.º 12.990/14, entendendo legítimo o controle da autodeclaração a partir de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
2. É ilegal o parecer emitido pela comissão de verificação que, de forma sumária, conclua apenas pelo critério da heteroidentificac?a?o, sem qualquer fundamentação e sem levar em consideração a autodeclaração do candidato e os documentos por ele juntados.
3. Diante da subjetividade que subjaz à definição do grupo racial de uma pessoa por uma comissão avaliadora e havendo dúvida quanto a isso, tem-se que a presunção de veracidade da autodeclaração deve prevalecer.[1]
Aliás, não se trata de uma decisão isolada, mas que vem sendo amplamente reconhecida pelo Poder Judiciário:
ADMINISTRATIVO. ACESSO À UNIVERSIDADE. COTAS RACIAIS. HETEROIDENTIFICAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. CRITÉRIO FENOTÍPICO.
1. A fixação de cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas federais foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 186/DF).
2. A autodeclaração relativamente à condição de “preto ou pardo” (Lei nº 12.288/10) pode ser confrontada pela heteroidentificação feita pela administração universitária, a qual deve-se basear na fenotipia, e não na ancestralidade, do candidato.
3. Para se valer do benefício legal, não basta ser afrodescendente: tem que parecer ser afrodescendente, aos olhos do homem médio.
4. Tal verificação deve-se dar no âmbito administrativo, através de comissão universitária criada para tal função, devendo seu parecer ser fundamentado de forma individualizada.[2] [Grifou-se]
E colhe-se do voto do Desembargador Relator:
A comissão ao proferir o parecer a respeito do enquadramento do autor como pardo, assim referiu:
O(A) condidato (a) não foi aferido (a) como preto (a) ou pardo (a) pela Comissão.
Apresentado recurso pelo autor com a juntada de documentos e certidões, proferiu o seguinte parecer:
Após a análise da íntegra do recurso, a Comissão recursal manifesta-se pelo INDEFERIMENTO do pedido.
Ressalto que a fundamentação do indeferimento de inclusão da parte autora na quota é precária, não sendo declinado de forma clara e minuciosa fatores objetivos para afastar a autodeclaração. O parecer dos membros da comissão limita-se a apontar, em formulário padronizado, se considerava o candidato pessoa preta ou parda nos termos da Decisão 212/2017 do CONSUN, resumindo-se a referir que o autor não foi aferido como pardo.
Não se pode admitir a invalidação da autodeclaração baseada em critérios de fundamentação tão precários como os elencados pela banca do concurso. Para afastar a presunção de veracidade da autodeclaração do candidato, necessária decisão fundamentada em sentido contrário. Mais do que simplesmente referir que o candidato não se enquadra, tem a banca examinadora o dever de justificar sua decisão atendo-se ao caso de forma individualizada, o que não fez. A fundamentação do parecer administrativo deve-se dar de forma analítica, e não baseada em critérios demasiadamente genéricos como ocorrido. [Grifou-se]
Em outro caso semelhante, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu a ilegalidade na decisão desmotivada que exclui candidato das vagas reservadas:
MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. ESCREVENTE TÉCNICO JUDICIÁRIO. SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS (COTAS RACIAIS). Impetrante classificada na lista de vagas reservadas aos candidatos negros. Exclusão do certame na fase de entrevista com a Comissão de Avaliação. Suposto desatendimento ao quesito de cor ou raça. Inadmissibilidade. Lei Federal nº 12.990/14 que, ao estabelecer a reserva de vagas aos candidatos negros, adotou como regra o critério da autodeclaração. Controle externo que, embora legítimo, não impede que se questione a avaliação procedida pela Comissão de Avaliação, quando equivocada ou ausente fundamentação razoável. Critérios subsidiários de hetereoidentificação que devem respeitar a dignidade da pessoa humana e garantir o contraditório e a ampla defesa. In casu, decisões impugnadas desprovidas de indicação mínima dos motivos que levaram a considerar que a impetrante não tem fenótipo pardo. Violação à tese fixada pelo STF no julgamento da ADC nº 41/DF, bem como aos arts. 8º e 9º da Lei Estadual nº 10.177/98. Documentos juntados aos autos são indicadores suficientes de que a impetrante atende ao quesito de cor ou raça do Edital, enquadrando-se na condição de pessoa parda. Eventual dúvida sobre o fenótipo que, se ainda existir, deve ser dirimida a favor da autodeclaração. Direito líquido e certo demonstrado. Segurança concedida.[3] [Grifou-se]
Diante do exposto, é de se reconhecer, com base na legislação e jurisprudência pátria, a ilegalidade da decisão administrativa que indefere o reconhecimento a um direito pleiteado quando desacompanhada de fundamentação. Assim, deve ser reconhecido o direito pleiteado, determinando-se a manutenção da parte autora no concurso público para que seja oportunamente nomeada e empossada no cargo.
*É proibida a cópia ou reprodução, total ou parcial, deste conteúdo, em qualquer meio. Fica autorizada a utilização deste conteúdo exclusivamente em petições dirigidas ao Poder Judiciário ou à Administração Pública.
[1] TRF-4 – Apelação nº 5024707-08.2018.4.04.7100/RS, Relator: JUIZ FEDERAL ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 13/03/2019, 3ª Turma da Tribunal Regional da 4ª Região.
[2] TRF-4, Apelação nº 5039304-79.2018.4.04.7100/RS, Desembargador Relator Luís Alberto D Azevedo Aurvalle, julgado em 30/01/2019.
[3] TJSP; Mandado de Segurança 2001689-21.2018.8.26.0000; Relator (a): Heloísa Martins Mimessi; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Tribunal de Justiça de São Paulo – N/A; Data do Julgamento: 12/11/2018; Data de Registro: 13/11/2018