Brasília, 19 a 30 de março de 2018 Nº 895
Data de divulgação: 4 de abril de 2018
Este Informativo, elaborado com base em notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a publicação do acórdão no Diário da Justiça.
Sumário
Plenário
Doação eleitoral e sigilo – 2
Execução provisória da pena e trânsito em julgado de sentença condenatória
1ª Turma
Resolução do CNJ e avaliação de títulos – 2
Complementação de pensão e aposentadoria de ferroviários e competência
2ª Turma
Colaboração premiada: prerrogativa de foro e competência
Recurso exclusivo da defesa e “reformatio in pejus”
Delitos eleitorais conexos com crimes comuns
Prisão Domiciliar Humanitária e Súmula 691/STF
Clipping da Repercussão Geral
Transcrições
Plenário
DIREITO ELEITORAL – PRESTAÇÃO DE CONTAS
Doação eleitoral e sigilo (2)
O Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade da expressão “sem individualização dos doadores”, constante da parte final do § 12 do art. 28 da Lei 9.504/1997 (Lei das Eleições), acrescentada pela Lei 13.165/2015 (1), para considerar que a indicação dos doadores deve ser feita tanto na prestação de contas dos partidos quanto dos candidatos.
No julgamento da medida cautelar, o Plenário havia suspendido, até o julgamento final da ação, a eficácia da referida expressão, com efeitos “ex tunc” (Informativo 807).
A norma impugnada dispõe sobre regras para a prestação de contas de partidos e candidatos com relação a valores oriundos de doações. De um lado, os valores transferidos pelos partidos aos candidatos serão registrados na prestação de contas dos candidatos como “transferência dos partidos”. De outro, essas mesmas operações serão registradas na prestação de contas dos partidos como “transferência aos candidatos”. Em ambas, a legislação prevê que os registros serão realizados “sem individualização dos doadores”.
Para o Tribunal, no entanto, o estabelecimento da chamada “doação eleitoral oculta” implica violação aos princípios republicano e democrático (CF, art. 1º, caput), além de representar afronta aos postulados da moralidade e da transparência.
O princípio republicano repele peremptoriamente a manutenção de expedientes ocultos no que concerne ao funcionamento da máquina estatal em suas mais diversas facetas. Especificamente sob o prisma do processo eleitoral, a divulgação dos nomes dos doadores de campanha e dos respectivos destinatários viabiliza uma fiscalização mais eficaz da necessária lisura dos processos de escolha dos detentores de mandato político.
O sistema democrático e o modelo republicano consagram, como fórmula legitimadora do exercício do poder, o direito do cidadão à plena informação sobre a origem dos recursos utilizados nas campanhas eleitorais, especialmente nas hipóteses de escolha, em processo eleitoral, daqueles que irão, como membros do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, coparticipar da regência e da direção superior do Estado. O anonimato, o sigilo e a confidencialidade são práticas incompatíveis com os princípios democrático e republicano.
Ademais, a transparência das doações serve também para se verificar a ocorrência de eventual vício que macule a atuação do próprio candidato eleito, pois será possível analisar a existência de relações não republicanas entre os doadores e o agora detentor de cargo público.
O aprimoramento da democracia representativa exige que o financiamento eleitoral tenha como base a transparência de seus métodos e protocolos de atuação, para se garantir a legitimidade do processo político. Daí a essencialidade de se estabelecer um sistema eficaz de controle destinado a conferir visibilidade às doações eleitorais, tornando-as transparentes e acessíveis ao conhecimento geral dos cidadãos.
Por fim, o caráter oculto das doações eleitorais importa violação ao art. 17, inciso III, da CF (2), segundo o qual a gestão dos partidos políticos pressuporá “a prestação de contas à Justiça Eleitoral”. É imprescindível a individualização dos doadores tanto na prestação de contas dos partidos quanto na dos candidatos, como exigência de transparência e efetividade da própria prestação de contas.
Nesse contexto, o Colegiado ressaltou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao regular as eleições de 2014 pela Resolução TSE 23.406/2014, já havia reconhecido a exigência de identificação dos doadores de forma individualizada, com fundamento na Lei 12.527/2011 (Lei do Acesso à Informação). Desse modo, a inovação legislativa que permitiu a “doação oculta” teve nítido propósito de contrariar a jurisprudência do TSE.
Vencidos, em parte, o Ministro Marco Aurélio, para quem a inconstitucionalidade da expressão “sem individualização dos doadores” se refere exclusivamente à prestação de contas do partido, e não do candidato; e, em maior extensão, o Ministro Edson Fachin, que declarou inconstitucional todo o § 12 do art. 28 da Lei 9.504/1997.
(1) Lei 9.504/1997: “Art. 28. A prestação de contas será feita: (…) § 12. Os valores transferidos pelos partidos políticos oriundos de doações serão registrados na prestação de contas dos candidatos como transferência dos partidos e, na prestação de contas dos partidos, como transferência aos candidatos, sem individualização dos doadores”.
(2) Constituição Federal: “Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: (…) III – prestação de contas à Justiça Eleitoral”.
ADI 5394, rel. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 22.3.2018. (ADI-5394)
Parte 1:Parte 1:
Parte 2:Parte 2:
DIREITO CONSTITUCIONAL – PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Execução provisória da pena e trânsito em julgado de sentença condenatória
O Plenário iniciou julgamento de “habeas corpus” no qual se pleiteia a vedação do início da execução provisória da pena de condenado em primeiro e segundo graus de jurisdição pela prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Inicialmente, o Tribunal, por maioria, rejeitou preliminar de inadmissibilidade do “writ”, ante o suposto cabimento, na espécie, de recurso ordinário constitucional, na forma do art. 102, II, “a”, da Constituição Federal.
No ponto, o Colegiado ressaltou que o remédio constitucional do “habeas corpus” sempre mereceu reverente tratamento por parte do Supremo Tribunal Federal, devendo-se considerar, inclusive, que foi precisamente nessa Corte que floresceu, sob a égide da Constituição Republicana de 1891, a doutrina brasileira do “habeas corpus”.
Não seria o caso de reviver referida doutrina, mas, tão somente, de conferir expressão concreta ao direito inalienável de qualquer pessoa à proteção judicial efetiva, a qual, além de se qualificar como prerrogativa de índole constitucional, encontra suporte em diversos documentos internacionais.
Por outro lado, não obstante o cabimento, no caso em comento, de recurso próprio — o recurso ordinário constitucional, a ser ajuizado em face da decisão denegatória exarada pelo Superior Tribunal de Justiça —, a Constituição vislumbra dupla possibilidade. Isso porque, ao mesmo tempo que prevê o referido recurso, a Constituição Federal, no art. 102, I, “i”, assenta a competência do STF para o processo e o julgamento de “habeas corpus” quando a autoridade coatora for Tribunal Superior. Há, portanto, uma opção aberta ao paciente para interpor o recurso ordinário ou mesmo ajuizar, diretamente, a ação constitucional de “habeas corpus” perante o STF.
Vencidos, no ponto, os Ministros Edson Fachin (relator), Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia (Presidente), que não conheciam do “writ”.
Em seguida, o Tribunal, por maioria, decidiu pela suspensão do julgamento, vencidos os Ministros Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Roberto Barroso e Cármen Lúcia (Presidente).
Outrossim, tendo em vista requerimento feito da tribuna pelo advogado do paciente, a Corte, por maioria, deferiu liminar para que fosse expedido salvo-conduto ao paciente até o julgamento do “habeas corpus”, o que se dará na sessão de 4.4.2018, vencidos os Ministros Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia (Presidente).
HC 152752/PR, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 22.3.2018. (HC-152752)
Parte 1:Parte 1:
Parte 2:Parte 2:
Parte 3:
Parte 4:
Primeira Turma
DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO – CONCURSO PÚBLICO/EDITAL
Resolução do CNJ e avaliação de títulos – 2
A 1ª Turma, em conclusão de julgamento, indeferiu a ordem em mandado de segurança no qual se pretendia a cassação de decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que alterou a contagem de títulos realizada por comissão de concurso público de provas e títulos para outorga de delegações de atividades notariais e/ou registrais do Estado do Rio de Janeiro.
No caso, discute-se a adequada interpretação dos incisos I e II do item 16.3 do edital, os quais reproduzem integralmente os incisos I e II do item 7.1 da minuta que acompanha a Resolução 81/2009 do CNJ (1) (Informativo 862).
Os impetrantes argumentaram que a autoridade coatora, ao fixar entendimento no sentido da impossibilidade de contabilizar o exercício de atividade notarial e registral por bacharel em Direito, teria violado o princípio da isonomia. Destacaram o acerto da óptica adotada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sublinhando que o citado preceito sempre foi interpretado de forma a abranger o cômputo de pontos em três situações: o exercício a) da advocacia; b) de delegação de notas e de registro; e c) de cargo, emprego ou função privativa de bacharel em Direito.
A Turma salientou que o CNJ, assim como o próprio Poder Judiciário, no exercício da atividade jurisdicional, não pode substituir a banca na questão valorativa, na questão de correção. Pode, no entanto, substituir, anular ou reformar decisões que firam os princípios da razoabilidade, da igualdade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade. Pontuou que a interpretação conferida pelo CNJ à Resolução 81/2009 é anterior ao edital do concurso público em discussão. Nesse contexto, os candidatos já sabiam previamente como os títulos seriam avaliados. Não houve ilegalidade porque a mudança não ofendeu o princípio da impessoalidade. A segurança jurídica, portanto, está preservada com a observância da interpretação do CNJ.
Vencido o ministro Marco Aurélio (relator), que deferiu a ordem.
(1) Resolução 81/2009 do CNJ: “7. TÍTULOS 7.1. O exame de títulos valerá, no máximo, 10 (dez) pontos, com peso 2 (dois), observado o seguinte: I – exercício da advocacia ou de delegação, cargo, emprego ou função pública privativa de bacharel em Direito, por um mínimo de três anos até a data da primeira publicação do edital do concurso (2,0); II – exercício de serviço notarial ou de registro, por não bacharel em direito, por um mínimo de dez anos até a data da publicação do primeiro edital do concurso (art. 15, § 2º, da Lei n. 8.935/1994) (2,0)”.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO TRABALHO – JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA
Complementação de pensão e aposentadoria de ferroviários e competência
As causas entre o Poder Público e servidores estatutários não são oriundas de relação de trabalho.
Com base nessa orientação, a 1ª Turma, por maioria, deu provimento a agravo regimental em reclamação para assentar a competência da justiça comum para o julgamento de demandas propostas por ferroviários pensionistas e aposentados das antigas ferrovias do Estado de São Paulo, que foram absorvidas pela Ferrovia Paulista S/A, sucedida pela extinta Rede Ferroviária Federal, com vistas à complementação de suas pensões e aposentadorias em face da União.
Vencidos os ministros Marco Aurélio (relator) e Rosa Weber, que negaram provimento ao agravo.
Rcl 24990 AgR/SP, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Roberto Barroso, julgamento em 20.3.2018. (Rcl-24990)
Segunda Turma
DIREITO PROCESSUAL PENAL – INVESTIGAÇÃO PENAL
Colaboração premiada: prerrogativa de foro e competência
A 2ª Turma, por maioria, concedeu a ordem de “habeas corpus” para determinar o trancamento de inquérito instaurado perante o STJ em desfavor de governador. A investigação foi instaurada para apurar a suposta prática de crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral.
O procedimento investigatório foi inaugurado com base em depoimentos colhidos em sede de colaboração premiada celebrada com o Ministério Público estadual e homologada pelo respectivo juízo.
A defesa sustentou que houve usurpação de competência e de jurisdição da Procuradoria-Geral da República e do STJ, o que teria acarretado a nulidade das provas dele derivadas.
A Turma asseverou que, nos termos da lei, o acordo de colaboração premiada deve ser remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade. Muito embora a lei fale apenas em juiz, é possível que a homologação de delações seja da competência de tribunal.
O colaborador admite seus próprios delitos e delata outros crimes. Assim, quanto à prerrogativa de função, será competente o juízo mais graduado, observadas as prerrogativas de função do delator e dos delatados. Essa prática vem sendo observada no STF.
No caso, o investigado celebrou acordo de colaboração com o Ministério Público estadual, o qual foi homologado pelo juiz. O acordo foi rescindido e outro foi firmado e homologado, com os mesmos sujeitos. O colaborador imputou delitos ao governador. Sustentou que um grupo de auditores da Receita estadual cobrava de empresários vantagem indevida para deixar de apurar ou reduzir tributos. Durante o período eleitoral de 2014, parte dos recursos teria sido repassada à campanha do paciente para o cargo de governador. Como corroboração, o colaborador apresentou nota de compra de compensados, com endereço de entrega na sede do comitê eleitoral da campanha do paciente. A despeito de terem sido imputados delitos ao governador, a colaboração não foi realizada pela Procuradoria-Geral da República, tampouco foi submetida à homologação pelo STJ.
Posteriormente, o STJ analisou a validade do acordo, em sede de reclamação. Reconheceu a usurpação da própria competência, mas apenas após a homologação do acordo. Conforme a decisão, até os depoimentos do colaborador, não havia elementos contra autoridades com prerrogativa de foro. Como os elementos que atraíram a competência do STJ teriam surgido com o acordo, teria sido correto homologar o acordo e, em seguida, remeter os autos ao STJ.
Essa interpretação, contudo, está em descompasso com o entendimento do STF, segundo o qual a delação de autoridade com prerrogativa de foro atrai a competência do tribunal competente para a respectiva homologação e, em consequência, do órgão do Ministério Público respectivo.
Após a instauração do inquérito, a defesa do paciente impugnou a utilização das declarações do colaborador. O STJ decidiu, então, que o paciente não tinha legitimidade para impugnar o acordo.
O STF entende que o delatado não tem legitimidade para impugnar o acordo, por se tratar de negócio jurídico personalíssimo. O contraditório em relação aos delatados seria estabelecido nas ações penais instruídas com as provas produzidas pelo colaborador. A impugnação quanto à competência para homologação do acordo, porém, diz respeito às disposições constitucionais quanto à prerrogativa de foro. Assim, ainda que seja negada ao delatado a possibilidade de impugnar o acordo, esse entendimento não se aplica em caso de homologação sem respeito à prerrogativa de foro. Portanto, o caso é de reconhecimento da ineficácia, em relação ao governador, dos atos de colaboração premiada, decorrentes de acordo de colaboração homologado em usurpação de competência do STJ. Por essa razão, as provas devem ser excluídas do inquérito. Tento em vista que a instauração se deu com base exclusivamente nos atos de colaboração, o inquérito deve ser trancado.
O Colegiado enfatizou, ainda, a necessidade de estrito cumprimento da lei quanto aos benefícios passíveis de negociação e quanto à competência jurisdicional para dosar a sanção premial. O estabelecimento de balizas legais para o acordo é uma opção do nosso sistema jurídico, para assegurar a isonomia e evitar a corrupção dos imputados, mediante incentivos desmesurados à colaboração, e dos próprios agentes públicos, aos quais se daria um poder sem limite sobre a vida dos imputados. As sanções premiais previstas na lei para acordos fixados até a sentença são o perdão judicial, a redução da pena privativa de liberdade e sua substituição por restritiva de direito. Além disso, a lei prevê que, mesmo que não acordado, o perdão pode ser requerido ao juiz, considerando a relevância da colaboração prestada. O perdão pode ser instrumentalizado por dispensa de ação penal, se o colaborador não for o líder da organização criminosa e for o primeiro a prestar a efetiva colaboração. Na colaboração posterior à sentença, a lei prevê a redução da pena até a metade e a relevação de requisitos objetivos para a progressão do regime prisional.
De toda forma, compete ao STJ ratificar ou não a homologação dos acordos, avaliando a validade de suas cláusulas. Eventual juízo sobre a validade dos acordos deverá ser baseado na decisão do STJ.
Vencido, em parte, o ministro Edson Fachin, que não determinou o trancamento do inquérito, por considerar competir ao STJ a deliberação a respeito, uma vez avaliado o acordo por aquele tribunal.
HC 151605/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 20.3.2018. (HC-151605)
DIREITO PROCESSUAL PENAL – NULIDADES
Recurso exclusivo da defesa e “reformatio in pejus”
A Segunda Turma, por maioria, denegou a ordem em “habeas corpus”, no qual se discutia a existência de “reformatio in pejus” em recurso exclusivo da defesa.
O juízo “a quo” condenou os pacientes às penas do art. 4º, “caput”, da Lei 7.492/1986 (1) e do art. 1º, VI, da Lei 9.613/1998 (2). O Ministério Público Federal não recorreu da decisão. Entretanto, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em recurso exclusivo da defesa, reclassificou a conduta para os artigos 16 (3) e 22, parágrafo único (4), da Lei 7.492/1986. O Superior Tribunal de Justiça endossou o acórdão do TRF 4ª, concluiu que não houve “reformatio in pejus”, pois aquela Corte Regional teria apenas adequado a imputação ao quadro fático dos autos, em típica situação de “emendatio libelli”.
O Colegiado afirmou que o Supremo Tribunal Federal considera possível a realização de “emendatio libelli” em segunda instância mediante recurso exclusivo da defesa, contanto que não gere “reformatio in pejus”, nos termos do art. 617 do CPP (5).
No caso, o acórdão do TRF 4ª não agravou a situação dos pacientes, tendo em vista que o “quantum” de pena aplicado em 1º grau teria sido respeitado. Ademais, a reclassificação jurídica dos fatos imputados e a redução operada nas suas reprimendas deram causa à extinção da punibilidade dos pacientes no que se refere ao delito do art. 16 da Lei 7.492/1986, tendo em vista à consumação da prescrição, reconhecida em sede de embargos.
Vencido o Ministro Celso de Mello, que deferia o pedido de “habeas corpus” por entender que houve ofensa à autoridade da coisa julgada, bem como “reformatio in pejus”.
(1) Lei 7.492/1986: “Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena – Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa”.
(2) Lei 9.613/1998: “Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (…) VI – (revogado pela lei 12.683/2012)”.
(3) Lei 7.492/1986: “Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração (Vetado) falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio: Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
(4) Lei 7.492/1986: “Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente”.
(5) CPP: “Art. 617. O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença”.
HC 134.872/PR, rel. Min. Dias Tóffoli, julgamento em 27.3.2018. (HC 134872)
DIREITO ELEITORAL – COMPETÊNCIA
Delitos eleitorais conexos com crimes comuns
A Turma, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto contra decisão que havia determinado a cisão de investigações com a remessa de declarações prestadas em colaboração premiada às Seções Judiciárias do Distrito Federal e do Paraná.
O caso versa sobre fatos imputados a diretor de empresa de comunicação que teria recebido supostos pagamentos irregulares no contexto de campanha eleitoral de candidato ao cargo de governador de estado.
O Colegiado asseverou que a matéria em questão é única e exclusivamente eleitoral, e, por se tratar de delitos eleitorais conexos com crimes comuns, seu processamento é da competência da justiça especializada. (1) (2).
Com base nesse entendimento, determinou o envio dos termos de depoimento dos colaboradores e de eventual documentação correlata à Justiça Eleitoral.
Vencido o Min. Edson Fachin, que negou provimento ao agravo, por considerar que a Suprema Corte, nos autos do INQ 4.130-QO (Informativo 800), atestou a competência territorial da Seção Judiciária do Distrito Federal com relação a fatos insertos nos mesmos termos de depoimento em referência, por se tratar de circunstâncias fáticas assemelhadas.
(1) Código de Processo Penal: “Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: (…) IV – no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta”.
(2) Código Eleitoral: “Art. 35. Compete aos juízes: (…) II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais”.
PET 7319/DF, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 27.3.2018. (PET – 7319)
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PRISÃO DOMICILIAR
Prisão Domiciliar Humanitária e Súmula 691/STF
A Turma, por maioria, conheceu da impetração e concedeu a ordem de habeas corpus para converter a custódia preventiva do paciente em prisão domiciliar humanitária, na forma do art. 318, II, do Código de Processo Penal (CPP). Determinou, ainda, que a prisão domiciliar deferida seja reavaliada pelo juízo processante a cada dois meses, enquanto perdurar a necessidade da custódia preventiva decretada (CPP, art. 312).
Os impetrantes sustentaram que as circunstancias do caso autorizam a mitigação do Enunciado 691 da Súmula do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo em vista que o paciente foi operado de tumor maligno e carece de tratamento pós-operatório adequado, circunstância incompatível com a condição de preso preventivo.
O Colegiado reconheceu a possibilidade de superação excepcional do Enunciado 691 para assegurar ao paciente a prisão domiciliar humanitária (CPP, art. 318, inciso II).
Enfatizou que, tendo em vista o alto risco de saúde, a grande possibilidade de desenvolver infecções no cárcere e a impossibilidade de tratamento médico adequado na unidade prisional ou em estabelecimento hospitalar — tudo demostrado satisfatoriamente no laudo pericial —, a concessão do “writ” se faz necessária para preservar a integridade física e moral do paciente, em respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
Vencido o ministro Edson Fachin, que denegava a ordem. Considerou incabível o habeas corpus, pois constava do laudo pericial que o preso estava em bom estado geral, nutricional e psicológico, embora levemente deprimido.
(1) CPP: “Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (…) II – extremamente debilitado por motivo de doença grave; (…) Parágrafo único: Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo”.
(2) CPP: “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (…) Parágrafo único: A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º) ”.
(3) CF: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana”.
(4) Súmula 691/STF: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.
HC 153961/DF, rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 27.3.2018. (HC-153961)
Sessões |
Ordinárias |
Extraordinárias |
Julgamentos |
Julgamentos por meio eletrônico* |
|
Em curso |
Finalizados |
||||
Pleno |
21.3.2018 |
22.3.2018 |
1 |
1 |
113 |
1ª Turma |
20.3.2018 |
— |
1 |
47 |
205 |
2ª Turma |
20.3.2018 27.3.2018 |
— |
3 |
47 |
300 |
* Emenda Regimental 51/2016-STF. Sessão virtual de 16 de março a 3 de abril de 2018.
Clipping da R e p e r c u s s ã o G e r a l
DJe 19 a 30 de março de 2018
REPERCUSSÃO GERAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.018.911 – RR
RELATOR : MIN. LUIZ FUX
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIONAL. TAXAS. REGISTRO DE PERMANÊNCIA DE ESTRANGEIROS NO PAÍS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 5º, CAPUT E INCISOS LXXVI E LXXVII, DA CRFB/88, C/C ART. 1º DA LEI FEDERAL 9.265 DE 1996. ACEPÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DE CIDADANIA. CONTEÚDO E ALCANCE DO TERMO. ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA (ART. 145, §1º, DA CRFB/88). RELEVÂNCIA DA MATÉRIA E TRANSCENDÊNCIA DE INTERESSES. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL.
Decisão Publicada: 1
Transcrições
Com a finalidade de proporcionar aos leitores do InformativoSTF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 9º Da Lei 13.165/2015. Fixação de Piso (5%) E de Teto (15%) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para a aplicação nas campanhas de candidatas. Ofensa a igualdade e a não-discriminação.
ADI – 5617
RELATOR: Ministro Edson Fachin
VOTO DO MINISTRO EDSON FACHIN
1. SÍNTESE DO VOTO
O presente voto, ao dispor dos eminentes pares e das partes na íntegra, expressa fundamentação nos termos do inciso IX do art. 93 da Constituição da República Federativa do Brasil, e se contém em aproximadamente 27 páginas. A síntese e a conclusão podem ser apresentadas, sem prejuízo da explicitação no voto contida, à luz do procedimento que se fundamenta nos termos do insculpido no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, em cuja abrangência se insere a celeridade de julgamento, mediante sucinta formulação que tem em conta as seguintes premissas e arremate:
1.1. Premissas
Primeira: As ações afirmativas prestigiam o direito à igualdade.
Segunda: É incompatível com o direito à igualdade a distribuição de recursos públicos orientada apenas pela discriminação em relação ao sexo da pessoa.
Terceira: A autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais, especialmente ao direito à igualdade.
Quarta: A igualdade entre homens e mulheres exige não apenas que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades, mas também que sejam elas empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultados.
Quinta: A participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado, uma vez que a ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres.
1.2. Base constitucional: o direito à dignidade (art. 1º, III, da CRFB), o pluralismo político (art. 1º, V, da CRFB), o objetivo de se construir uma sociedade livre, justa e solidária, o direito à igualdade (art. 5º, caput, da CRFB) e a autonomia partidária (art. 17, § 1º, da CRFB); e base convencional (art. 5º, § 2º, da CRFB): o direito à igualdade sem discriminações (art. 2º, 3º, 5º e 7º da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher).
1.3. Base doutrinária. O voto se assenta no pensamento das diversas autoras nele citadas; mencionam-se aqui especialmente as seguintes: Bertha Lutz; Joaquim Barbosa Gomes; Flávia Piovesan; Fernanda Ferreira Mota e Flávia Biroli; e Dianne Otto.
1.4. Base em precedentes. o voto se estriba em precedentes que formam jurisprudência deste Tribunal, do Tribunal Superior Eleitoral e, especialmente, dos órgãos internacionais de proteção à pessoa humana; especificamente citam-se os seguintes: a ADPF 186, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski; Representação n. 32.255, Rel. Ministro Herman Benjamin; a Opinião Consultiva da Corte IDH sobre a Condição Jurídica dos Migrantes sem Documentos; o Comentário Geral n. 18 do Comitê de Direitos humanos; e o Comentário Geral n. 25 do Comitê para Eliminação da Discriminação contra a Mulher
1.5. Conclusão do voto: é procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade para: (i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015, eliminando o limite temporal até agora fixado; (ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção; (iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95.
O Senhor Ministro Edson Fachin (Relator): “Nunca haverá paz no mundo enquanto as mulheres não ajudarem a criá-la”. Essas lúcidas palavras de Bertha Lutz, proferidas por ocasião da Conferência de São Francisco, em 1945, na fundação da Organização das Nações Unidas, reverberam até hoje, audível no silêncio das ausências femininas nos parlamentos mundo afora.
Bertha Lutz, bióloga brasileira, vocalizou o anseio das mulheres em ocupar a esfera pública e assumiu, após a morte do titular, o mandato de deputada na Câmara Federal em julho de 1936. Sua trajetória guarda verdadeira indissociabilidade com a inscrição da igualdade entre homens e mulheres no preâmbulo da Carta da ONU (artigo 8º da Carta da ONU).
Segundo dados da União Interparlamentar (IPU), no bojo do relatório “Mulheres no Parlamento 2015: Revisão Anual”, as mulheres representam 22,6% dos membros dos parlamentos mundo afora. E, ainda que se trate do maior percentual já alcançado, de 2015 caiu 1,5% (um e meio por cento) em relação ao observado em 2013.
Importa, portanto, percorrer o histórico de reivindicações de direitos políticos das mulheres e o papel da Suprema Corte brasileira no presente momento. Remonta ao Código Eleitoral de 1932 (Decreto n. 21.076/1932) a conquista do direito ao voto no Brasil, reivindicação de movimentos sufragistas, que rompeu com a exclusão não advinda de proibição expressa, mas de uma interpretação excludente do texto constitucional.
A agenda de reivindicações subsequentes tratou do acesso a cargos públicos e de representação política; na América Latina, na década de 1990, após serem firmadas diretrizes na Plataforma de Ação de Beijing (1995), difundiram-se leis de cotas de gênero na região.
A matéria a ser enfrentada no deslinde desta causa, qual seja, a destinação de Fundo Partidário para o financiamento de campanhas de candidatas, ao trazer à tona a coibição de uma externalidade negativa que produz barreiras para o ingresso feminino em mandatos eletivos, representa novo marco neste processo. Conclama o Supremo Tribunal Federal a robustecer a vedação à discriminação por gênero (art. 1º, IV, da CRFB) para realizar a promoção de uma sociedade plenamente justa, solidária e livre e a promessa constitucional da igualdade. Tal como a paz, não haverá verdadeira democracia enquanto não se talharem as condições para tornar audíveis as vozes das mulheres na política.
I – Preliminar de impossibilidade jurídica do pedido
Assento, preliminarmente, a plena cognoscibilidade da presente ação direta. A ação é proposta pelo Procurador-Geral da República (art. 103, VI, da CRFB) e tem por objeto lei editada pelo Congresso Nacional (art. 102, I, “a”, da CRFB).
No que tange à impossibilidade jurídica do pedido suscitada pela Advocacia-Geral da União, deve-se rememorar o que pugnou em sua manifestação no sentido de que, tal como expresso nos pedidos, eventual procedência da ação direta implicaria modificação da sistemática normativa e alteração do sentido da norma (eDOC 16, p. 8).
Não assiste razão jurídica à Advogada-Geral. O pedido veiculado na inicial consiste em dar ao art. 9º da Lei 13.165/2015 interpretação conforme à Constituição, “de modo a (b.1) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretação como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b.2) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção” (eDOC 1, p. 34).
Com efeito, há, aqui, pedido para que se reconheça que os direitos das mulheres são “insuficientemente protegidos”, a permitir que se cogite de eventual omissão parcial a ser solucionada pela adoção de outras técnicas decisórias, tal como registrou o e. Ministro Gilmar Mendes quando do julgamento da ADI 4.430, Rel. Ministro Dias Toffoli, Pleno, DJe 18.09.2013:
“Vejam, por exemplo, que, em relação à omissão inconstitucional, até bem pouco tempo, nós não admitimos sequer a ADI, ou ação direta por omissão, quando tivesse por objeto uma omissão parcial, porque dizíamos que a declaração de inconstitucionalidade vai levar a uma situação de maior gravame; por exemplo, eu vou eliminar a tal ADI contra a Lei do salário mínimo, e dizia-se: eu tenho um quadro mais gravoso. Hoje nós já temos alternativas em termos de técnica de decisão, e temos admitido, não só no âmbito da jurisdição da omissão, mas em outros campos, a possibilidade dessas sentenças de caráter aditivo.”
Nesse mesmo precedente, advertiu o e. Ministro Dias Toffoli que “assentar a impossibilidade jurídica do pedido em sede de controle de constitucionalidade (…) privaria a Corte de tecer juízo final de constitucionalidade sobre certa norma e evitar, assim, a insegurança jurídica decorrente da sua aplicação duvidosa pelos demais órgãos jurisdicionais e pela comunidade jurídica em geral”.
Ainda em relação a esse precedente, é preciso registrar que ali expressamente superou-se o óbice relativo à impossibilidade do pedido, de modo a superar a decisão firmada na ADI 1.822, Rel. Ministro Moreira Alves, a qual a Advogada-Geral invoca para subsidiar sua manifestação:
“O não conhecimento da ADI nº 1.822/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, por impossibilidade jurídica do pedido, não constitui óbice ao presente juízo de (in)constitucionalidade, em razão da ausência de apreciação de mérito no processo objetivo anterior, bem como em face da falta de juízo definitivo sobre a compatibilidade ou não dos dispositivos atacados com a Constituição Federal. A despeito de o pedido estampado na ADI nº 4.430 se assemelhar com o contido na ação anterior, na atual dimensão da jurisdição constitucional, a solução ali apontada não mais guarda sintonia com o papel de tutela da Lei Fundamental exercido por esta Corte. O Supremo Tribunal Federal está autorizado a apreciar a inconstitucionalidade de dada norma, ainda que seja para dela extrair interpretação conforme à Constituição Federal, com a finalidade de fazer incidir conteúdo normativo constitucional dotado de carga cogente cuja produção de efeitos independa de intermediação legislativa.”
(ADI 4430, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-184 DIVULG 18-09-2013 PUBLIC 19-09-2013 RTJ VOL-00226-01 PP-00257)
Noutras palavras, trata-se, aqui, não de simplesmente limitar-se ao conteúdo normativo da lei impugnada, mas de fixar a interpretação que constitucionalmente o densifique.
Ainda não se deve olvidar que este Tribunal tem reconhecido, em inúmeras ocasiões, a possibilidade de proferir decisões que, em sede doutrinária, têm sido chamadas de “manipulativas de efeitos aditivos”. Por exemplo, as decisões com o fez nos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604, em que se reconheceu que a infidelidade partidária constituiria causa para a extinção do mandato, ou ainda a própria rejeição da Questão de Ordem formulada na ADPF 54 pelo Procurador-Geral da República:
“ADPF – ADEQUAÇÃO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO ANENCÉFALO – POLÍTICA JUDICIÁRIA – MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental – como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia.”
(ADPF 54 QO, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2005, DJe-092 DIVULG 30-08-2007 PUBLIC 31-08-2007 DJ 31-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02287-01 PP-00021)
A consequência jurídica da apreciação da alegação de inconstitucionalidade, tal como contida no pedido, é matéria própria do mérito da ação, a implicar a rejeição da preliminar suscitada pela Advocacia-Geral da União.
II – Mérito
Impugna a presente ação direta o disposto no art. 9º da Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015, que alterou diversas normas eleitorais com o objetivo, expresso no próprio texto legal, de “reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos Partidos Políticos e incentivar a participação feminina”. O dispositivo tem o seguinte teor:
“Art. 9º Nas três eleições que se seguirem à publicação desta Lei, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995.”
Suscita-se, ainda, a inconstitucionalidade, por arrastamento, o § 5º, o § 5º-A, o § 6º e o § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95. Tais dispositivos têm o seguinte teor:
“Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:
(…)
V – na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;
(…)
§ 5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.
§ 5º-A. A critério das agremiações partidárias, os recursos a que se refere o inciso V poderão ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido.
§ 6º No exercício financeiro em que a fundação ou instituto de pesquisa não despender a totalidade dos recursos que lhe forem assinalados, a eventual sobra poderá ser revertida para outras atividades partidárias, conforme previstas no caput deste artigo.
§ 7º A critério da secretaria da mulher ou, inexistindo a secretaria, a critério da fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, os recursos a que se refere o inciso V do caput poderão ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido, não se aplicando, neste caso, o disposto no § 5o.”
Os parâmetros constitucionais invocados pelo requerente são o princípio da igualdade (art. 5º, I), o pluralismo político, a cidadania e o princípio democrático (art. 1º, II, V e parágrafo único), o objetivo de se construir sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), o princípio da eficiência e finalidade (art. 37) e a autonomia partidária (art. 17, § 1º). Os parâmetros têm o seguinte teor:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
II – a cidadania;
(…)
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
(…)
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
(…)
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
(…)
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
(…)
§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.
(…)
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”
Os amici curiae, por sua vez, sustentam, ainda, ofensa aos artigos 2º, 3º, 5º e 7º da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Tais dispositivos têm o seguinte teor:
“Artigo 2º – Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a:
a) consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio;
b) adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher;
c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação;
d) abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação;
e) tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;
f) adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher;
g) derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher.
Artigo 3º – Os Estados-partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.
(…)
Artigo 5º – Os Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas para:
a) modificar os padrões sócio-culturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação de preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na idéia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres.
b) garantir que a educação familiar inclua uma compreensão adequada da maternidade como função social e o reconhecimento da responsabilidade comum de homens e mulheres, no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento de seus filhos, entendendo-se que o interesse dos filhos constituirá a consideração primordial em todos os casos.
(…)
Artigo 7º – Os Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em igualdade de condições com os homens, o direito a:
a) votar em todas as eleições e referendos públicos e ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas;
b) participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais;
c) participar em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida pública e política do país.”
É procedente a presente ação direta. Se o princípio da igualdade material admite, como reconhece a jurisprudência desta Corte, as ações afirmativas, utilizar para qualquer outro fim a diferença, estabelecida com o objetivo de superar a discriminação, ofende o mesmo princípio da igualdade, que veda tratamento discriminatório fundado em circunstâncias que estão fora do controle dos indivíduos, como a raça, o sexo, a cor da pele ou qualquer outra diferenciação arbitrariamente considerada.
Com efeito, quando da edição da Lei 9.504/97, os partidos passaram a ser obrigados a preencher, do número de vagas de candidaturas, o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.
Não se pode afirmar que tal desequiparação seja incompatível com a Constituição. Nesse ponto, é preciso observar que, seja por força do art. 5º, § 2º, da CRFB, seja, ainda, pela adoção do princípio pro homine, o conteúdo do direito à igualdade é muito semelhante ao direito previsto no art. 2º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:
“Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição”.
Ao interpretar esse dispositivo, o Comitê de Direitos Humanos, por meio do Comentário Geral n. 18, assentou que:
“O Comitê acredita que o termo ‘discriminação’ tal como usado pelo Pacto deve ser compreendido como assentando que qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência por qualquer razão como raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, seja ou não política, origem, nacional ou social, propriedade, nascimento ou qualquer outro status, que tem por propósito ou o efeito nulificar ou impedir o reconhecimento, o gozo e o exercício por todas as pessoas, de modo igual, de todos os direitos e liberdades.
(…)
O Comitê gostaria de sublinhar que o princípio da igualdade as vezes exige do Estados parte que tomem medidas afirmativas para diminuir ou eliminar as condições que causam ou ajudam a perpetuar a discriminação proibida pelo Pacto. Por exemplo, em um Estado em que as condições gerais de uma determinada parte da população previnem ou impedem o gozo do direitos humanos, o Estado devem tomar medidas específicas para corrigir tais condições. Tais ações podem envolver garantir por um tempo a parte da população tratamento preferencial em assuntos específicos. No entanto, desde que tais ações sejam necessárias para corrigir a discriminação, é um caso de diferenciação legítima para o Pacto.”
Ainda no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher prevê, expressamente, em seu art. 1º, o seguinte:
“Para fins da presente Convenção, a expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”
Na mesma linha de entendimento, este Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF 186, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, Pleno, DJe 17.10.2014, assentou que “não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares”.
Assim, é próprio do direito à igualdade a possibilidade de uma desquiparação, desde que seja ela pontual e tenha por objetivo superar uma desigualdade histórica. Nesse contexto, o e. Ministro Joaquim Barbosa sustenta, em sede doutrinária, que “as ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os ‘efeitos persistentes’ da discriminação do passado, que tendem a ser perpetuar”. Esses efeitos, ainda de acordo com o Ministro, “se revelem na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos dominados” (GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. Ações Afirmativas e o combate ao racismo nas Américas. Brasília: ONU, BID e MEC, 2007, p. 56).
In casu, o disposto no art. 10, § 3º, da Lei Geral de Eleições, é apenas para que os partidos preencham um mínimo de vagas para candidaturas. Assim, as mulheres não apenas devem disputar as prévias partidárias como também concorrer, sem que para isso a lei preveja qualquer vantagem, às cadeiras disponíveis no Parlamento.
Dados do Tribunal Superior Eleitoral e informações trazidas pelos amici curiae demonstram que, embora as mulheres correspondam a mais da metade da população e do eleitorado brasileiro, elas ocupam menos de 15% das cadeiras do Poder Legislativo federal, sendo que, na Câmara dos Deputados, apenas 9,9% dos parlamentares são mulheres. Além disso, apenas 11% das prefeituras do país são comandadas por mulheres.
Os dados são ainda mais alarmantes, caso se tenha em conta que eles não indicam qualquer possibilidade de reversão dessa tendência. Em 2010, escrevendo para o Relatório “O Progresso das Mulheres no Brasil 2003-2010”, editado pela ONU Mulheres, Flávia Piovesan chamava a atenção para os obstáculos à inclusão das mulheres:
“Importa realçar que a adoção da legislação das cotas está associada à campanha ‘Mulheres sem Medo do Poder’, desenvolvida pela bancada feminina do Congresso Nacional, com o apoio do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e do movimento de mulheres.
A respeito das cotas, constata-se que, se em 1994 (antes da legislação específica) a percentagem de mulheres candidatas no Brasil era de 7,18%, em 2002, com a adoção da lei das cotas, este índice foi elevado a 14,84%, conforme os dados do próprio Tribunal Superior Eleitoral. Em 2010, o percentual de mulheres candidatas para as eleições foi de 22,4% do total de candidaturas para os cargos do Executivo e Legislativo federal e estaduais. Entretanto, ao analisar as candidaturas femininas para o cargo de governador/a o percentual cai para apenas 10,6%. As candidatas para o Senado representaram apenas 13,2%; as candidaturas femininas para deputado/a federal corresponderam a 22,2% e para deputada/o estadual, 22,7%.”
De fato, o quadro não é apenas o de uma desigualdade estrutural, mas é mesmo o de um descumprimento da própria legislação de regência. Veja-se, quanto a esse ponto, as informações do próprio Tribunal Superior Eleitoral, trazidas pela CEPIA (eDOC 30, p. 19):
“De acordo com as estatísticas disponibilizadas pelo Tribunal, no ano de 2014, a proporção geral de candidaturas era de 68,955 (homens) para 31,05% (mulheres). Nessas eleições, o descumprimento do mínimo legal foi alarmante, tendo se verificado em 11 dos 32 partidos analisados: DEM (29,49%), PCO (24,49%), PDT (29,68%), PHS (29,94%), PROS (28,45%), PRTB (28,27%), PSDC (29,34%), PSOL (29,61%), PT do B (29,68%), PTB (29,42%), e SD (26,35%). Com exceção do PSTU, que atingiu um percentual de 40% de candidaturas femininas, os 20 partidos restantes ficaram entre 30,08% (PSB) e 33,92% (PMN) – porcentagem próxima do limite mínimo, que ainda é muito baixo.
Nas eleições municipais de 2016, por sua vez, o percentual de candidaturas femininas atingido pelos partidos ficou entre 30,77% (PDT) e 34,34% (PT), média muito semelhante à de 2014. Somente o PSTU (39,20%) e o PMB (43,47%), apresentaram percentuais notadamente destoantes. Vale dizer que, com exceção do PCO, que alcançou somente 29,41% de candidaturas femininas, os demais partidos respeitaram, ao menos formalmente, o mínimo legal de cotas para mulheres. Partindo-se de um universo de 35 partidos, constatou-se haver 68,11% de candidaturas masculinas contra 31,89% de candidaturas femininas”.
Permanecem, assim, de todo verdadeiras as afirmações feitas por Fernanda Ferreira Mota e Flávia Biroli, no artigo “O gênero na política: a construção do feminino nas eleições presidenciais de 2010” (cadernos pagu (43), julho-dezembro de 2014):
“A presença reduzida de mulheres na vida política brasileira não é uma circunstância ocasional. É um desdobramento dos padrões históricos da divisão sexual do trabalho e da atribuição de papéis, habilidades e pertencimentos diferenciados para mulheres e homens. Corresponde a uma realização restrita do ideal democrático da igualdade política, que reserva os espaços de decisão e as posições de poder a uma parcela da população com perfis determinados – homens, brancos, pertencentes às camadas mais ricas da população. As desigualdades de gênero, assim como a desigualdade racial e a de classe, são importantes para se compreender os mecanismos de divisão e diferenciação que impedem uma realização mais plural da política.”
Os obstáculos para a efetiva participação política das mulheres são ainda mais graves, caso se tenha em conta que é por meio da participação política que as próprias medidas de desequiparação são definidas. Qualquer razão que seja utilizada para impedir que as mulheres participem da elaboração de leis inviabiliza o principal instrumento pelo qual se reduzem as desigualdades. Em razão dessas barreiras à plena inclusão política das mulheres, são, portanto, constitucionalmente legítimas as cotas fixadas em lei a fim de promover a participação política das mulheres, tal como afirma Flávia Piovesan, em obra já citada neste voto:
“Observe-se que a Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, ao estabelecer normas para as eleições, dispôs que cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo. Anteriormente, a Lei 9.100, de 2 de outubro de 1995, previa uma cota mínima de 20% das vagas de cada partido ou coligação para a candidatura de mulheres. Tais comandos normativos estão em absoluta consonância com a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que estabelece não apenas o dever do Estado de proibir a discriminação, como também o dever de promover a igualdade, por meio de ações afirmativas. Estas ações constituem medidas especiais de caráter temporário, voltadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher (artigo 4º da Convenção).”
É certo que a presente ação direta não impugna as quotas para as campanhas, mas a distribuição dos recursos partidários posteriormente fixada por meio da Lei 13.165/2015. Em específico, questiona-se a fixação de patamares mínimos e máximos para o acesso a recursos públicos do fundo partidário.
Quanto a esse ponto, a inconstitucionalidade é manifesta.
O estabelecimento de um piso de 5% significa, na prática, que, na distribuição dos recursos públicos que a agremiação partidária deve destinar às candidaturas, os homens poderão receber no máximo 95%. De outro lado, caso se opte por fixar a distribuição máxima às candidaturas de mulheres, poderão ser destinados do total de recursos do fundo 15%, hipótese em que os recursos destinados às candidaturas masculinas será de 85%.
Inexistem justificativas razoáveis, nem racionais, para essa diferenciação.
A autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais. O art. 17 da Constituição Federal dispõe ser livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, “resguardados os direitos fundamentais da pessoa humana”. Noutras palavras, a autonomia partidária não justifica o tratamento discriminatório entre as candidaturas de homens e mulheres.
É certo que, enquanto pessoas jurídicas de direito privado, conforme preceitua o art. 44, V, do Código Civil, aplicam-se aos partidos políticos não só a garantia da plena autonomia, nos termos do art. 17, § 1º, da CRFB, mas também a própria liberdade de associação livre da interferência estatal (art. 5º, XVIII, da CRFB).
O respeito à igualdade não é, contudo, obrigação cuja previsão somente se aplica à esfera pública. Incide, aqui, a ideia de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, sendo importante reconhecer que é precisamente nessa artificiosa segmentação entre o público e o privado que reside a principal forma de discriminação das mulheres:
“As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.
(…)
A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.”
(RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)
Na mesma direção, o Tribunal Superior Eleitoral chegou a assentar:
“A autonomia partidária contida no § 1º do art. 17 da CF/88 não significa soberania para desrespeitar, direta ou indiretamente, valores e princípios constitucionais: é imperativo que agremiações observem a cota de gênero não somente em registro de candidaturas, mas também na propaganda e assegurando às mulheres todos os meios de suporte em âmbito intra ou extrapartidário, sob pena de se manter histórico e indesejável privilégio patriarcal e, assim, reforçar a nefasta segregação predominante na vida político-partidária brasileira.”
(Representação nº 32255, Acórdão, Relator(a) Min. Antonio Herman De Vasconcellos E Benjamin, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 53, Data 17/03/2017, Página 135-136)
Ainda de acordo com o referido precedente, o e. Ministro Herman Benjamin sublinhou que “as agremiações devem garantir todos os meios necessários para real e efetivo ingresso das mulheres na política, conferindo plena e genuína eficácia às normas que reservam número mínimo de vagas para candidaturas (art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97) e asseguram espaço ao sexo feminino em propaganda (art. 45, IV, da Lei 9.096/95)”.
Tampouco se poderia afirmar, na linha do que suscitou o Presidente do Congresso Nacional, que os recursos destinados às campanhas de mulheres revelam o “consenso possível”. Em caso de proteção deficiente de direitos fundamentais, a liberdade de conformação do legislador é reduzida, incumbindo ao Judiciário zelar pela sua efetiva promoção.
Nesse sentido, constituiu um dos corolários do princípio da igualdade não apenas a previsão de tratamento igual, mas também o direito à proteção contra a discriminação por diversos motivos. Como advertiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, “o elemento da igualdade é difícil de separar da não discriminação (…) quando se fala de igualdade perante a lei (…) esse princípio deve ser garantido com a não discriminação” (Condição Jurídicas e Direitos dos Migrantes sem Documentos, opinião consultiva da OC-18/03, pár. 83).
Ademais, como assentou o Comitê de Direitos Humanos no Comentário Geral n. 18, já referido neste voto, a não discriminação deve ser compreendida “como assentando que qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência por qualquer razão como raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, seja ou não política, origem, nacional ou social, propriedade, nascimento ou qualquer outro status, que tem por propósito ou o efeito nulificar ou impedir o reconhecimento, o gozo e o exercício por todas as pessoas, de modo igual, de todos os direitos e liberdades”.
Nessa perspectiva, a inexistência de consenso revela não um limite à atuação do legislador, mas uma omissão inconstitucional, na medida em que priva as candidaturas de mulheres dos recursos públicos que irão custear suas aspirações políticas de ocupar uma posição democraticamente representativa, apenas pelo fato de serem mulheres.
Finalmente, não cabe sustentar que o percentual de candidaturas para as mulheres limita-se a reconhecer uma igualdade de oportunidades, no sentido de garantir iguais condições a partir de uma posição inicial, nomeadamente as candidaturas. Poder-se-ia falar aqui, naquilo que o Comitê para Eliminação da Discriminação contra a Mulher chamou de “igualdade transformativa”, em seu Comentário Geral 25:
“7. Firstly, States parties’ obligation is to ensure that there is no direct or indirect discrimination against women in their laws and that women are protected against discrimination — committed by public authorities, the judiciary, organizations, enterprises or private individuals — in the public as well as the private spheres by competent tribunals as well as sanctions and other remedies. Secondly, States parties’ obligation is to improve the de facto position of women through concrete and effective policies and programmes. Thirdly, States parties’ obligation is to address prevailing gender relations and the persistence of gender-based stereotypes that affect women not only through individual acts by individuals but also in law, and legal and societal structures and institutions.
8. In the Committee’s view, a purely formal legal or programmatic approach is not sufficient to achieve women’s de facto equality with men, which the Committee interprets as substantive equality. In addition, the Convention requires that women be given an equal start and that they be empowered by an enabling environment to achieve equality of results. It is not enough to guarantee women treatment that is identical to that of men. Rather, biological as well as socially and culturally constructed differences between women and men must be taken into account. Under certain circumstances, non-identical treatment of women and men will be required in order to address such differences. Pursuit of the goal of substantive equality also calls for an effective strategy aimed at overcoming underrepresentation of women and a redistribution of resources and power between men and women.
9. Equality of results is the logical corollary of de facto or substantive equality. These results may be quantitative and/or qualitative in nature; that is, women enjoying their rights in various fields in fairly equal numbers with men, enjoying the same income levels, equality in decision-making and political influence, and women enjoying freedom from violence.
10. The position of women will not be improved as long as the underlying causes of discrimination against women, and of their inequality, are not effectively addressed. The lives of women and men must be considered in a contextual way, and measures adopted towards a real transformation of opportunities, institutions and systems so that they are no longer grounded in historically determined male paradigms of power and life patterns.”
Tradução livre:
7. Primeiramente, as obrigações dos Estados parte são garantir que não haja discriminação direta ou indireta contra as mulheres nas suas leis e que as mulheres sejam protegidas contra a discriminação – praticada por autoridades públicas, o judiciário, organizações, empresas e entidades privadas – nas esferas públicas ou privadas pelos tribunais competentes assim como sanções e outros remédios. Em segundo lugar, as obrigações dos Estados parte é a de melhorar a posição de fato das mulheres por meio de políticas concretas e eficazes. Em terceiro lugar, a obrigação dos Estados parte é a de enfrentar as relações prevalentes de gênero e a persistência de estereótipos baseados no gênero que atingem as mulheres não apenas por meio de atos individuais por indivíduos, mas também por meio da lei, e das estruturas legais e sociais e das instituições.
8. Na visão do Comitê, uma atuação puramente legal e forma ou programática não é suficiente para atingir a igualdade de fato entre homens e mulheres, a qual o Comitê interpreta como igualdade material. Além disso, a Convenção exige que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades e que elas sejam empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultados. Não é suficiente garantir às mulheres tratamento que é idêntico ao dos homens. Ao contrário, diferenças biológicas e as que são social e culturalmente construídas entre homens e mulheres devem ser levadas em conta. Em certas circunstâncias, tratamento não idêntico de mulheres e de homens será exigido para resolver tais diferenças. O objetivo de alcançar a igualdade material também convoca uma estratégia efetiva para superar a sub-representação das mulheres e a redistribuição de recursos e poderes entre homens e mulheres.
9. A igualdade de resultados é o corolário lógico da igualdade de fato ou material. Esses resultados podem ser de natureza quantitativas ou qualitativas; ou seja, mulheres gozando de seus direitos em vários campos em número e de forma igualmente justa em relação aos homens, gozando de mesmos padrões remuneratórios, igualdade na tomada de decisões e na influência política, e mulheres gozando de liberdade contra toda violência.
10. A posição das mulheres não será melhorada enquanto as causas que sustentam a discriminação contra as mulheres, e sua desigualdade, não forem efetivamente enfrentadas. As vidas das mulheres e dos homens devem ser consideradas em seu contexto, e as medidas adotadas para a a real transformação de oportunidades, instituições e sistemas a fim de que eles não mais tenham por base os paradigmas masculinos historicamente determinados de poder e de padrões de vida.”
Trata-se, pois, de reconhecer, na linha do que assentou o Comitê, que a concepção de igualdade a elas garantida não autoriza o tratamento discriminatório por circunstâncias que estão fora de seu controle.
Sob essa perspectiva, o caráter público dos recursos a elas destinados é elemento que reforça a obrigação de que a sua distribuição não seja discriminatória. A fundamentalidade das normas constitucionais referentes à atividade financeira do Estado na unidade entre obtenção de recursos, orçamento e realização de despesas engloba o regime jurídico das finanças públicas em máxima conformidade com os fins da Constituição da República.
Conforme dispõe o art. 38 da Lei 9.096/95, os recursos do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) são constituídos por multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e leis conexas; recursos financeiros que lhe forem destinados por lei; doações de pessoas físicas ou jurídicas; e dotações orçamentárias da União.
Tais recursos são destinados, nos termos do art. 44 da Lei 9.096, à manutenção das sedes e serviços do partido, à propaganda doutrinária e política, ao alistamento e às campanhas eleitorais, às fundações de pesquisa e de doutrinação política, e, mais recentemente, aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.
A consignação desses recursos é feita ao Tribunal Superior Eleitoral, que distribui aos órgãos nacionais dos partidos, na proporção de sua representação na Câmara dos Deputados (art. 41-A da Lei 9.096 c/c ADI 5.105, Rel. Ministro Luiz Fux, Pleno, DJe 01.10.2015). No que tange aos recursos empregados nas campanhas, os partidos detêm autonomia para distribuí-los, desde que não transbordem dos estritos limites constitucionais.
Em virtude do princípio da igualdade, não pode, pois, o partido político criar distinções na distribuição desses recursos exclusivamente baseadas no gênero.
Assim, não há como deixar de reconhecer como sendo a única interpretação constitucional admissível aquela que determina aos partidos políticos a distribuição dos recursos públicos destinados à campanha eleitoral na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, sendo, em vista do disposto no art. 10, § 3º, da Lei de Eleições, o patamar mínimo o de 30%.
No que tange ao prazo de três eleições fixado pela lei, deve-se ter em conta que o critério de distribuição de recursos oriundos do fundo partidário deve obedecer à composição das candidaturas e deflui diretamente da cota fixada no art. 10, § 3º, da Lei de Eleições. Assim, é inconstitucional a fixação de um prazo, porquanto a distribuição não discriminatória dos recursos deve perdurar enquanto for justificada a composição mínima das candidaturas. Tal como já decidiu esta Corte na ADPF 186, Rel. Ministro Lewandowski, a legitimidade das políticas afirmativas depende de seu caráter temporário. A temporariedade recai, na hipótese do autos, sob as cotas de candidaturas, não sob a distribuição de recursos, que, como se sustentou neste voto, não está sujeita ao tratamento discriminatório.
Pelas razões até aqui apresentadas, também deve ser julgado procedente o pedido formulado pelo CEPIA para a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento do disposto no art. 44, § 5º-A e § 7º.
Registro, no ponto, que o § 7º do referido artigo não dispõe sobre os recursos destinados à promoção ou à difusão da participação política das mulheres, nem às suas campanhas, mas à manutenção de instituto ou fundação de pesquisa (art. 44, IV, da Lei 9.096/95).
Em relação aos § 5º-A e § 7º, a discricionariedade conferida, quer às agremiações partidárias, quer às secretarias da mulher, autorizaria-lhes, em tese, a utilizar os recursos destinados à promoção e difusão da participação política das mulheres em suas campanhas, como se tal obrigação estivesse em seu âmbito de discricionariedade.
É preciso reconhecer que ao lado do direito a votar e ser votado, como parte substancial do conteúdo democrático, a completude é alcançada quando são levados a efeito os meios à realização da igualdade. Só assim a democracia se mostra inteira. Caso contrário, a letra Constitucional apenas alimentará o indesejado simbolismo das intenções que nunca se concretizam no plano das realidades. A participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado e produz impactos significativos para o funcionamento do campo político, uma vez que ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres.
Há ainda muito a se fazer. Não se pode deixar de reconhecer que a presença reduzida de mulheres na vida política brasileira “colabora para a reprodução de concepções convencionais do ‘feminino’, que vinculam as mulheres à esfera privada e/ ou dão sentido a sua atuação na esfera pública a partir do seu papel convencional na vida doméstica” e “coloca água no moinho da reprodução de posições subordinadas para as mulheres e da naturalização das desigualdades de gênero” (MOTA, Fernanda Ferreira; BIROLI, Flávia. O gênero na política: a construção do “feminino” nas eleições presidenciais de 2010”. cadernos pagu (43), julho-dezembro de 2014, p. 227).
Daí porque a atuação dos partidos políticos não pode, sob pena de ofensa às suas obrigações transformativas, deixar de se dedicar também à promoção e à difusão da participação política das mulheres.
Como afirma Dianne Otto, “precisamos de uma nova forma de pensar sobre as representações legais que desafiem os estereótipos de gênero que estão por trás dos abusos de direitos humanos baseados no gênero” (OTTO, Dianne, Women’s Rights (22.03.2010). U. of Melbourne Legal Studies Research Paper No. 459. Disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1576229, tradução livre).
Por todas essas razões, é procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade para:
(i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015, eliminando o limite temporal até agora fixado;
(ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção;
(iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95.
É como voto.
Secretaria de Documentação – SDO
Coordenadoria de Jurisprudência Comparada e Divulgação de Julgados – CJCD