Brasília,
Data (páginas internas): 11 de maio de 2011
Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.
Sumário
Plenário
Relação homoafetiva e entidade familiar – 1
Relação homoafetiva e entidade familiar – 2
Relação homoafetiva e entidade familiar – 3
Relação homoafetiva e entidade familiar – 4
Relação homoafetiva e entidade familiar – 5
1ª Turma
Tráfico de drogas: “sursis” e substituição de pena por restritiva de direitos
Lei 9.784/99 e demarcação de terras indígenas
Chave “mixa” e furto qualificado
Princípio da Insignificância e furto em penitenciária – 2
2ª Turma
Apelação criminal e nulidades – 4
Princípio da insignificância e ato de prefeito
Repercussão Geral
Transcrições
Lei da “Ficha Limpa” e art. 16 da CF (RE 633703/DF)
Inovações Legislativas
Plenário
Relação homoafetiva e entidade familiar – 1
A norma constante do art. 1.723 do Código Civil — CC (“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”) não obsta que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção estatal. Essa a conclusão do Plenário ao julgar procedente pedido formulado em duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas, respectivamente, pelo Procurador-Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. Preliminarmente, conheceu-se de argüição de preceito fundamental — ADPF, proposta pelo segundo requerente, como ação direta, tendo em vista a convergência de objetos entre ambas as ações, de forma que as postulações deduzidas naquela estariam inseridas nesta, a qual possui regime jurídico mais amplo. Ademais, na ADPF existiria pleito subsidiário nesse sentido. Em seguida, declarou-se o prejuízo de pretensão originariamente formulada na ADPF consistente no uso da técnica da interpretação conforme a Constituição relativamente aos artigos 19, II e V, e 33 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da aludida unidade federativa (Decreto-lei 220/75). Consignou-se que, desde
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Relação homoafetiva e entidade familiar – 2
No mérito, prevaleceu o voto proferido pelo Min. Ayres Britto, relator, que dava interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Asseverou que esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas conseqüências da união estável heteroafetiva. De início, enfatizou que a Constituição proibiria, de modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem. Além disso, apontou que fatores acidentais ou fortuitos, a exemplo da origem social, idade, cor da pele e outros, não se caracterizariam como causas de merecimento ou de desmerecimento intrínseco de quem quer que fosse. Assim, observou que isso também ocorreria quanto à possibilidade da concreta utilização da sexualidade. Afirmou, nessa perspectiva, haver um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; e c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Relação homoafetiva e entidade familiar – 3
Em passo seguinte, assinalou que, no tocante ao tema do emprego da sexualidade humana, haveria liberdade do mais largo espectro ante silêncio intencional da Constituição. Apontou que essa total ausência de previsão normativo-constitucional referente à fruição da preferência sexual, em primeiro lugar, possibilitaria a incidência da regra de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Em segundo lugar, o emprego da sexualidade humana diria respeito à intimidade e à vida privada, as quais seriam direito da personalidade e, por último, dever-se-ia considerar a âncora normativa do § 1º do art. 5º da CF. Destacou, outrossim, que essa liberdade para dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, sendo direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea. Frisou que esse direito de exploração dos potenciais da própria sexualidade seria exercitável tanto no plano da intimidade (absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual). Asseverou, de outro lado, que o século XXI já se marcaria pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Ao levar em conta todos esses aspectos, indagou se a Constituição sonegaria aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união — realidade há muito constatada empiricamente no plano dos fatos —, o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heteroafetivos em idêntica situação.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Relação homoafetiva e entidade familiar – 4
Após mencionar que a família deveria servir de norte interpretativo para as figuras jurídicas do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção, o relator registrou que a diretriz da formação dessa instituição seria o não-atrelamento a casais heteroafetivos ou a qualquer formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Realçou que família seria, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada, o que a credenciaria como base da sociedade (CF, art. 226, caput). Desse modo, anotou que se deveria extrair do sistema a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganharia plenitude de sentido se desembocasse no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família, constituída, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade (CF, art. 226, § 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”). Mencionou, ainda, as espécies de família constitucionalmente previstas (art. 226, §§ 1º a 4º), a saber, a constituída pelo casamento e pela união estável, bem como a monoparental. Arrematou que a solução apresentada daria concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da proteção das minorias, da não-discriminação e outros. O Min. Celso de Mello destacou que a conseqüência mais expressiva deste julgamento seria a atribuição de efeito vinculante à obrigatoriedade de reconhecimento como entidade familiar da união entre pessoas do mesmo sexo.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Relação homoafetiva e entidade familiar – 5
Por sua vez, os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso, Presidente, embora reputando as pretensões procedentes, assentavam a existência de lacuna normativa sobre a questão. O primeiro enfatizou que a relação homoafetiva não configuraria união estável — que impõe gêneros diferentes —, mas forma distinta de entidade familiar, não prevista no rol exemplificativo do art. 226 da CF. Assim, considerou cabível o mecanismo da integração analógica para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que o Congresso Nacional lhe dê tratamento legislativo. O segundo se limitou a reconhecer a existência dessa união por aplicação analógica ou, na falta de outra possibilidade, por interpretação extensiva da cláusula constante do texto constitucional (CF, art. 226, § 3º), sem se pronunciar sobre outros desdobramentos. Ao salientar que a idéia de opção sexual estaria contemplada no exercício do direito de liberdade (autodesenvolvimento da personalidade), acenou que a ausência de modelo institucional que permitisse a proteção dos direitos fundamentais em apreço contribuiria para a discriminação. No ponto, ressaltou que a omissão da Corte poderia representar agravamento no quadro de desproteção das minorias, as quais estariam tendo seus direitos lesionados. O Presidente aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitude factual entre a união estável e a homoafetiva, contudo, não incidiriam todas as normas concernentes àquela entidade, porque não se trataria de equiparação. Evidenciou, ainda, que a presente decisão concitaria a manifestação do Poder Legislativo. Por fim, o Plenário autorizou que os Ministros decidam monocraticamente os casos idênticos
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Primeira Turma
Tráfico de drogas: “sursis” e substituição de pena por restritiva de direitos
A 1ª Turma julgou prejudicado habeas corpus em que condenado à reprimenda de 1 ano e 8 meses de reclusão em regime fechado e 166 dias-multa, pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 11.343/2006, art. 33), pleiteava a suspensão condicional da pena nos termos em que concedida pelo Tribunal de Justiça estadual. Em seguida, deferiu, de ofício, a ordem para reconhecer a possibilidade de o juiz competente substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos na lei. A impetração questionava acórdão que, em 9.3.2010, ao dar provimento a recurso especial do parquet, não admitira o sursis, em virtude de expressa vedação legal. Consignou-se que, ao julgar o HC 97256/RS (DJe de 16.12.2010), o Supremo concluíra, em 1º.9.2010, pela inconstitucionalidade dos artigos 33, § 4º; e 44, caput, da Lei 11.343/2006, ambos na parte em que vedavam a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em condenação pelo delito em apreço.Asseverou-se, portanto, estar superado este impedimento. Salientou-se que a convolação da reprimenda por restritiva de direitos seria mais favorável ao paciente. Ademais, observou-se que o art. 77, III, do CP estabelece a aplicabilidade de suspensão condicional da pena quando não indicada ou cabível a sua substituição por restritiva de direitos (CP, art. 44).
HC 104361/RJ, rel. Min. Cármen Lúcia, 3.5.2011. (HC-104361)
Lei 9.784/99 e demarcação de terras indígenas
A 1ª Turma desproveu recurso ordinário em mandado de segurança interposto de acórdão do STJ, que entendera legal o procedimento administrativo de demarcação de terras do grupo indígena Guarani Ñandéva. Ao rechaçar a primeira alegação, aludiu-se à jurisprudência pacífica do Supremo no sentido de que o prazo de 5 anos para a conclusão de demarcação de terras indígenas não é decadencial, sendo a norma constante do art. 67 do ADCT meramente programática, a indicar ao órgão administrativo que proceda às demarcações dentro de um prazo razoável. No tocante à aplicação subsidiária da Lei 9.784/99, asseverou-se que o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) seria legislação específica a regulamentar o mencionado procedimento administrativo. No ponto, salientou-se que esta afastaria a incidência de qualquer outra norma de natureza geral. Na seqüência, ressaltou-se inexistir ofensa ao princípio do contraditório e da ampla defesa, porquanto a recorrente manifestara-se nos autos administrativos e apresentara suas razões, devidamente refutadas pela FUNAI. Assentou-se, por fim, não haver que se falar em duplo grau de jurisdição em matéria administrativa.
RMS 26212/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 3.5.2011. (RMS-26212)
Chave “mixa” e furto qualificado
O furto praticado mediante o emprego de “mixa” é qualificado nos termos do art. 155, § 4º, III, do CP (“Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa … § 4º – A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido: … III – com emprego de chave falsa”). Com base nessa orientação, a 1ª Turma denegou habeas corpus no qual sustentada a ilegalidade da incidência dessa qualificadora no crime em comento.
HC 106095/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, 3.5.2011. (HC-106095)
Princípio da Insignificância e furto em penitenciária – 2
A 1ª Turma retomou julgamento de recurso ordinário em habeas corpus no qual se pretende a incidência do princípio da insignificância em favor de condenado pela tentativa de subtração de 1 cartucho de tinta para impressora do Centro de Progressão Penitenciária, em que trabalhava e cumpria pena por delito anterior — v. Informativo 618. Em divergência, o Min. Dias Toffoli deu provimento ao recurso, por entender aplicável, ao caso, o referido postulado, no que foi acompanhado pelo Min. Luiz Fux. Após, pediu vista dos autos a Min. Cármen Lúcia.
RHC 106731/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 3.5.2011. (RHC-106731)
Segunda Turma
Apelação criminal e nulidades – 4
A 2ª Turma retomou julgamento de habeas corpus em que se reitera a alegação de nulidade de acórdão do TRF da 4ª Região, em virtude de: a) ausência de intimação de advogado do paciente, ora impetrante, da pauta de julgamento de apelação e de seu resultado e b) não-participação de revisor original na sessão de julgamento de recurso criminal — v. Informativo 603. Em voto-vista, o Min. Joaquim Barbosa acompanhou a Min. Ellen Gracie, relatora, e denegou a ordem. Aduziu que, quanto à não-participação do revisor originário na sessão de julgamento, não haveria qualquer nulidade, tendo em vista que sua substituição por juíza convocada ocorrera com base em previsão legal e regimental. No que se refere ao outro argumento, consignou que o impetrante sabia que as intimações dos atos processuais foram feitas em seu nome e no de outro advogado que vinha sendo intimado desde o primeiro grau de jurisdição. Portanto, caber-lhe-ia requerer, nos autos, que as publicações não fossem mais realizadas no nome deste último, mas, tão-somente, em seu próprio nome. Deste modo, ressaltou que se aplicaria a regra do art. 565 do CPP (“Nenhuma das partes poderá argüir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse”). Após, o Min. Gilmar Mendes pediu vista.
HC 102433/PR, rel. Min. Ellen Gracie, 3.5.2011. (HC-102433)
Princípio da insignificância e ato de prefeito
A 2ª Turma concedeu habeas corpus para aplicar o princípio da insignificância em favor de ex-prefeito que, no exercício de suas atividades funcionais, utilizara-se de máquinas e caminhões de propriedade da prefeitura para efetuar terraplenagem em terreno de sua residência. Por esse motivo, fora denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 1º, II, do Decreto-Lei 201/67 (“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores … II – utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos”). Asseverou-se tratar-se de prática comum na municipalidade em questão, mediante ressarcimento, para fins de remuneração dos condutores e abastecimento de óleo diesel. Concluiu-se pela plausibilidade da tese defensiva quanto ao referido postulado, dado que o serviço prestado, se contabilizado hoje, não ultrapassaria o valor de R$ 40,00.
HC 104286/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 3.5.2011. (HC-104286)
Sessões Ordinárias Extraordinárias Julgamentos
Pleno 4.5.2011 5.5.2011 1
1ª Turma 3.5.2011 — 146
2ª Turma 3.5.2011 — 75
R e p e r c u s s ã o G e r a l
DJe de
REPERCUSSÃO GERAL EM RE N. 609.096-RS
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. COFINS E CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS. INCIDÊNCIA. RECEITAS FINANCEIRAS DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. CONCEITO DE FATURAMENTO. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
REPERCUSSÃO GERAL EM AI N. 818.688-SP
RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
Agravo de Instrumento contra inadmissão de recurso extraordinário. 1. Pedido de adicional de periculosidade. 2. Trabalho exercido em prédio vertical onde se encontra armazenado combustível em um de seus andares. 3. Matéria disciplinada pelo art. 193 da CLT e por normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho. 4. Questão afeta à legislação infraconstitucional que comumente demanda a análise de provas. 5. Violação reflexa à Constituição Federal. 6. Inexistência de repercussão geral.
REPERCUSSÃO GERAL EM RE N. 635.546-MG
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
ISONOMIA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO TERCEIRIZADO – EMPREGADOS DO QUADRO FUNCIONAL DA TOMADORA – ADMISSIBILIDADE DO TRATAMENTO IGUALITÁRIO NA ORIGEM – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a controvérsia acerca da possibilidade de se reconhecer aos empregados terceirizados os mesmos direitos conferidos aos trabalhadores contratados pela tomadora dos serviços e vinculados à Administração Pública, a teor do princípio da isonomia e da proibição preceituada no artigo 7º, inciso XXXII, da Carta Maior, no que tange à distinção laborativa.
Decisões Publicadas: 3
Transcrições
Com a finalidade de proporcionar aos leitores do Informativo STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.
Lei da “Ficha Limpa” e art. 16 da CF (Transcrições)
(v. Informativo 620)
RE 633703/MG*
RELATOR: Min. Gilmar Mendes
VOTO DO MIN. LUIZ FUX
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ELEITORAL. INELEGIBILIDADE DECORRENTE DA LEI COMPLEMENTAR Nº135/10. INDEFERIMENTO DE REGISTRO DE CANDIDATURA A DEPUTADO ESTADUAL. CONDENAÇÃO JUDICIAL, POR ÓRGÃO COLEGIADO, PELA PRÁTICA DE ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (ART.1º, I, ‘l’, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90, NA REDAÇÃO QUE LHE CONFERIU A LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10). PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. LIMITES TEMPORAIS DA APLICAÇÃO DA COGNOMINADA “LEI DA FICHA LIMPA”. ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REGRA DA ANTERIORIDADE ELEITORAL. ALTERAÇÃO DO PROCESSO ELEITORAL. STATUS DE CLÁUSULA PÉTREA. DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. PRESERVAÇÃO DA IGUALDADE DE CHANCES NAS ELEIÇÕES. MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO E DE APLICAÇÃO DAS REGRAS E DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS. POSTULADOS DA UNIDADE E DA CONCORDÂNIA PRÁTICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS. SEGURANÇA JURÍDICA. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. COMPORTAMENTO ESTATAL QUE ENSEJA A FRUSTRAÇÃO DAS EXPECTATIVAS LEGÍTIMAS DOS ENVOLVIDOS NO PLEITO ELEITORAL. IMPOSSIBILIDADE DE A LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10 ATINGIR AS ELEIÇÕES OCORRIDAS NO ANO DE SUA ENTRADA EM VIGOR. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA DO ART.16 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
2. Os postulados da unidade e da concordância prática das normas constitucionais, que impõem a vedação a que o intérprete inutilize comandos normativos estabelecidos na Carta Constitucional de 1988, têm por consequência jusfilosófica que mesmo o melhor dos direitos não pode ser aplicado contra a Constituição.
4. O processo eleitoral, cuja estabilidade é assegurada pela regra da anualidade, compõe-se de três fases: fase pré-eleitoral, com as convenções partidárias e a definição do candidato; fase eleitoral, com o início, a realização e o encerramento da votação; e fase pós-eleitoral, com a apuração e contagem dos votos, seguida da diplomação dos candidatos (ADIn nº 3.345, Rel. Min. Celso de Mello).
7. Trata-se de recurso extraordinário em que questionada a aplicação da cognominada “Lei da Ficha Limpa” (LC nº 135/10) às eleições ocorridas no ano de 2010, mormente por conta da previsão, na nova redação do art. 1º, I, ‘l’, da LC nº 64/90, de novel hipótese de inelegibilidade, configurada diante de condenação, por órgão judicial colegiado, pela prática de ato de improbidade administrativa.
8. O sistema constitucional de inelegibilidade, quando da entrada em vigor da LC nº 135/10, já havia sido integralizado, há vinte anos, pela LC nº 64/90, descabendo falar, no caso sub judice, de risco de configuração de vácuo legislativo, porquanto a “Lei da Ficha Limpa”, apesar de todos os seus inquestionáveis méritos, alterou – para usar a expressão literal do art. 16 da CF – o regime das inelegibilidades já em vigor no direito brasileiro.
9. Consequentemente, inexistentes, in casu, as mesmas razões de decidir que presidiram o julgamento do RE nº 129.392/DF, relator o Min. Sepúlveda Pertence, apreciado na sessão de 17/06/1992.
10. O art. 16 da Constituição Federal, como decorre da moderna teoria geral do direito e, mais particularmente, da novel teoria da interpretação constitucional, consubstancia uma regra jurídica, e não um princípio jurídico; constatação que impõe não seja possível simplesmente desconsiderar seu enunciado lingüístico para buscar desde logo as razões que lhe são subjacentes.
11. À Suprema Corte brasileira descabe simplesmente reescrever o art. 16 da Constituição Federal, no sentido de que, onde se lê “não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, seja lido como marco temporal a data da realização das convenções partidárias, ou a data em que ocorrido o registro da candidatura, porquanto já tomada a decisão, pelo legislador constitucional, a respeito do marco inicial para a segurança jurídica no processo eleitoral, qual a inteireza do ano em que ocorrem as eleições.
13. Deveras, se há razões para condicionar à regra da anterioridade a eficácia de Emenda à Constituição publicada no mês de março – também antes, portanto, do período das convenções partidárias –, tal como decidido por este STF no julgamento da ADIn nº 3.685/DF, não há como entender diferente quanto à lei complementar publicada no mês de junho.
14. Os efeitos imediatos da Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010 infringem o princípio da proteção da confiança, difundido no Direito germânico e que, mais recentemente, ganha espaço no cenário jurídico brasileiro. Consectariamente, a ampliação das atividades estatais faz crescer uma exigência por parte dos cidadãos de maior constância e estabilidade das decisões que lhes afetam, de modo que um cidadão não consegue planejar sua vida se o Estado não atuar de forma estável e consistente. Mudança e constância são, dessa forma, duas expressões que colidem no mundo pós-moderno.
15. O princípio da proteção da confiança, imanente ao nosso sistema constitucional, visa a proteger o indivíduo contra alterações súbitas e injustas em sua esfera patrimonial e de liberdade, e deve fazer irradiar um direito de reação contra um comportamento descontínuo e contraditório do Estado.
16. O art. 16 da Carta de 88 materializou o que a doutrina alemã denomina de disposições de transição; vale dizer: dispositivo constitucional que, ao deslocar, para um momento futuro, os efeitos de uma nova lei capaz de interferir no processo eleitoral, amortece os efeitos da nova norma, viabilizando a coesão social e a tutela da confiança que os indivíduos depositaram no Estado brasileiro.
19. Recurso extraordinário provido.
VOTO: Preliminarmente, gostaria de destacar que, mercê de os votos confluírem nalguns aspectos, a nossa proposição pretende fazer uma rápida incursão nos antecedentes da Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), para, empós, aferir a sua constitucionalidade à luz do art. 16 da Constituição Federal e da cláusula da Segurança Jurídica, sob o enfoque da proteção da confiança ou do princípio da Confiança Legítima.
Cumpre-nos, nesse afã prefacial, destacar que a Lei da Ficha Limpa representa um dos mais belos espetáculos democráticos experimentados após a Carta de 1988, porquanto lei de iniciativa popular com o escopo de purificação do mundo político, habitat dos representantes do povo – aqueles que expressam a vontade popular, na memorável expressão de Friedrich Müller, na sua monografia Quem é o Povo? (MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo?, São Paulo: Ed. Malheiros, 2010), prefaciada magnificamente por Fábio Konder Comparato.
É cediço que dos juízes reclama-se um conhecimento enciclopédico, uma isenção hercúlea, tudo envolto numa postura olímpica. Se assim o é, e é assim que se passam as coisas do mundo judicial, dos políticos esperasse moralidade no pensar e no atuar, virtudes que conduziram ao grito popular pela Lei da Ficha Limpa.
Na verdade, a moralidade no exercício do mandato político é a mesma que se impõe ao agente administrativo em geral, como entrevêem os administrativistas clássicos de ontem e de hoje. Na percuciente visão de Hauriou (HAURIOU, Maurice. Précis Élémentaires de Droit Administratif, Paris, 126, p. 197), não se trata da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. No mesmo sentido ensinam Henri Welter e Lacharrière, assentando este último que a moral administrativa é o conjunto de regras que, para disciplinar o exercício do poder discricionário da Administração, o superior hierárquico – hoje, no Brasil, o próprio texto constitucional de 1988 – impõe aos seus subordinados (Apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 27ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, p. 89).
Essa moralidade, pauta jurídica dos agentes públicos, sintetiza-se no dever de atuar com lealdade e boa-fé do homem comum, que sabe distinguir o honesto do desonesto, o legal do ilegal, o justo do injusto, e assim por diante, à luz do art. 37 da Constituição Federal, que dispõe no seguinte sentido, verbis:
“Art.
A probidade e a exação da conduta dos políticos, assim, eclipsa a moralidade que se pretende com a denominada Lei da Ficha Limpa, e se acomoda no espírito conceitual versado pelos ensaístas do tema, como, v.g., Jesus Gonzalez Perez (PEREZ, Jesus Gonzalez. El princípio general de la buena fe em el derecho administrativo, Madrid, 1983.), Márcio Cammarosano (CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa, Belo Horizonte: Ed. Forum, 2006.) e o insuperável Celso Antônio Bandeira de Mello (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 27ª edição, São Paulo: Ed.Malheiros, p. 120.).
Deveras, é cediço que também integra a moralidade a obediência às decisões judiciais, às leis e, com maior razão, à Constituição Federal. A atividade de quem quer que exerça uma função pública e desobedeça a Constituição Federal deve ser acoimada de uma atividade imoral. E é sob este prisma que Orozimbo Nonato, na coletânea Memórias Jurisprudenciais, publicada nesta Corte Suprema (LEAL, Roger Stiefelmann, Memória jurisprudencial: Ministro Orozimbo Nonato, Brasília:Supremo Tribunal Federal, 2007, p. 131), assenta que o melhor dos direitos não pode ser aplicado contra a Constituição.
A partir desse pano de fundo axiológico, a questão sub judice suscita a indagação sobre se a criação de interdições à elegibilidade de candidatos no próprio ano da eleição viola o art. 16 da Constituição Federal, que assim dispõe, verbis:
“Art.
O princípio da Unidade da Constituição revela que as normas constitucionais se interligam, razão pela qual não há regras inúteis e desprezíveis no texto constitucional, ideário de uma nação, e que por isso deve ser prestigiado em todos os seus dispositivos, como assentam Hans Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, tradução de João Baptista Machado, São Paulo: Ed.Martins Fontes, 2009, p. 228 e segs.) e Konrad Hesse (HESSE, Konrad, La interpretación constitucional, In: Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constituticionales, 1983, p. 48), para nos limitarmos a duas grandes expressões do constitucionalismo.
A regra do art. 16, na sua interpretação literal, traz como punctum saliens o processo eleitoral, por isso que, a partir da sua concepção, ou seja, da concepção do que seja processo eleitoral, torna-se clara a mens legis e aquilo que pretende dizer a Constituição Federal, ao proibir a mudança do processo eleitoral no mesmo ano da eleição.
Resta evidente, por conta desse objetivo, que a expressão lei, utilizada no texto maior, tem sentido lato, compreendendo qualquer lei ordinária, complementar ou mesmo emenda constitucional, pois todas essas espécies normativas são capazes de atingir a segurança e a estabilidade de que devem gozar as eleições. Assim já se pronunciou esta Corte, assentando que a regra insculpida no art. 16 da CRFB é clausula pétrea e que, portanto, impõe-se mesmo diante de Emenda Constitucional, consoante decidido na ADIn nº 3.685/DF, relatora a Min. Ellen Gracie, posto garantir direito político fundamental pro eleitor e pro candidato.
Subjaz, assim, a indagação do que seja o fenômeno jurídico interditado, qual o da alteração do processo eleitoral. O que significa alterar o processo eleitoral no mesmo ano da eleição?
O tema, à luz do dispositivo constitucional retratado, expõe a justeza do que se contém no voto do eminente Relator, o Ministro Gilmar Mendes, a cujos argumentos, na sua inteireza, manifesto a minha adesão. Mas não é somente isso que nos inclina a convergir na direção da conclusão do seu voto.
A primeira interpretação do disposto no art. 16 da CF, inegavelmente simples, cinge-se em se verificar se uma lei foi promulgada e aplicada no mesmo ano da eleição, porquanto, se assim o foi, desconsiderou o comando constitucional; violou-o, habilitando o prejudicado ao recurso veiculador do error in judicando.
De outro lado, o sentido da expressão processo eleitoral, utilizada no artigo 16 da CRFB, não pode ser confundido, de modo algum, com processo jurisdicional eleitoral, isto é, com as regras do processo judicial que tramita junto à Justiça Eleitoral. É que não há qualquer relação entre a finalidade de segurança por detrás do art. 16 da CF, que garante a igualdade de condições no pleito a ser realizado, e a imunização, no período de um ano, das regras de processo judicial na Justiça Eleitoral.
Na realidade, a expressão processo eleitoral foi utilizada pelo constituinte no sentido colhido da teoria geral do direito, como série concatenada de atos dirigidos a uma finalidade, qual seja: a definição dos mandatários políticos através do jogo democrático.
Desta sorte, inexiste oposição entre direito material e processo eleitoral, para fins de incidência do art. 16 da CF. Ao revés, são justamente as regras de direito material no domínio eleitoral que mais podem influenciar a isonomia e a igualdade de chances nas eleições, de modo que é especialmente para estas hipóteses que se dirige o dispositivo. A assertiva vem confirmada pela jurisprudência pacífica deste Supremo tribunal Federal, que reconhece, como fez na ADIn nº 3.345, Rel. Min. Celso de Mello, que o processo eleitoral se compõem de três fases: fase pré-eleitoral, com as convenções partidárias e a definição do candidato; fase eleitoral, com o início, a realização e o encerramento da votação; e fase pós-eleitoral, com a apuração e a contagem dos votos, seguida da diplomação dos candidatos. Ora, não há como negar que tais fases são compostas não só de normas procedimentais, mas principalmente por regras de conteúdo substancial, que disciplinam os requisitos de fundo a serem satisfeitos em cada etapa.
Firmada a premissa de que o comando do art. 16 da CF se dirige também a normas eleitorais de conteúdo substancial, a única conclusão possível de se alcançar, com a devida vênia dos entendimentos em contrário, é que as novas hipóteses de inelegibilidade previstas na LC nº 135/10 não podem ser aplicadas para as eleições ocorridas no próprio ano em que entraram em vigor.
De fato, se o processo eleitoral, como visto, tem inicio com o ato da convenção partidária, cuja finalidade é a definição dos candidatos ao pleito, é evidente que as regras que interferem na produção desse ato, com a enunciação das qualidades subjetivas que devem satisfazer os candidatos, integram o processo eleitoral, pois é justamente disso que tratará a convenção partidária. Em outras palavras, os requisitos que a lei estabelece para o ato inicial do processo eleitoral devem estar inequivocamente submetidos à regra da anualidade, conclusão essa que se justifica principalmente à luz da isonomia e do equilíbrio nas eleições, que devem presidir a interpretação do art. 16 da CF, porquanto é inquestionável que qualquer restrição à elegibilidade interfere na igualdade de chances de acesso aos cargos públicos.
Destarte, inequívoco que as normas de inelegibilidade atingem o quadro subjetivo dos competidores no processo eleitoral, elemento essencial e principal do processo eleitoral, em torno do qual todos os demais giram.
Entendimento diverso conduziria ao paradoxo no sentido de que a proteção do art. 16 seria inócua, pois estaria ao alcance dos atuais titulares do poder político a previsão de leis restritivas do ponto de vista subjetivo, afastando tais ou quais categorias de pessoas da possibilidade de concorrerem, e com isso interferindo na segurança de que devem gozar as eleições. Se a finalidade do art. 16 é assegurar também o pluralismo político no pleito (CF, art. 1º, V), com igualdade de condições entre quem está no poder e quem está fora, para que os primeiros não criem regras de exceção, de última hora, em benefício próprio, o dispositivo deve necessariamente abranger também as condições de elegibilidade.
Outrossim, não é cabível a aplicação ao presente caso da tese vencedora no julgamento do RE nº 129.392/DF, relator o Min. Sepúlveda Pertence, apreciado na sessão de 17/06/1992. Naquele caso, como se sabe, discutiu-se se a aplicação da LC nº 64/90, que hoje foi alterada pela LC nº 135/10, estava sujeita ou não à regra do art. 16 da Constituição, na redação anterior à EC nº 04/93. Naquela oportunidade, a conclusão a que se chegou, contra os votos vencidos dos Min. Marco Aurélio, Celso de Mello, Carlos Velloso, Aldir Passarinho e Sepúlveda Pertence, foi pelo afastamento da incidência da regra da anualidade, pois a LC nº 64/90 havia sido editada de forma a verdadeiramente inaugurar um sistema constitucional de inelegibilidades, concretizando o disposto no art. 14, § 9º, da CF. Entendeu a maioria, assim, que a eficácia deste último dispositivo constitucional não poderia ser restringida pelo art. 16 da CF, de idêntica hierarquia, de vez que, se não tolerada a eficácia imediata da LC nº 60/94, haveria um vácuo legislativo sobre o tema das inelegibilidades, esvaziando o comando do art. 14, § 9º, da CF.
Ocorre, porém, que não há mais, atualmente, o contexto que ensejou a conclusão alcançada pela douta – e apertada – maioria naquele precedente. Com efeito, não há mais o vácuo legislativo que poderia conduzir, se negada aplicabilidade à LC nº 135/10, ao esvaziamento da eficácia do art. 14, § 9º, da CF. O regime das inelegibilidades, sob o pálio da Constituição de 1988, já foi instituído desde a década de 90 pela LC nº 64/90, há vinte anos, portanto. Descabe falar, assim, de caráter inaugural na LC nº 135/10, que, apesar de todos os seus inquestionáveis méritos, alterou – para usar a expressão literal do art. 16 da CF – o regime das inelegibilidades já em vigor há duas décadas no direito brasileiro.
Desta sorte, inexistentes as mesmas razões de decidir que presidiram o julgamento do RE nº 129.392/DF, uma vez que, repita-se, o sistema constitucional de inelegibilidade, quando da entrada em vigor da LC nº 135/10, já havia sido integralizado, há vinte anos, pela LC nº 64/90, inoperante a máxima ubi eadem ratio ibi eadem dispositio. Ora, não havendo, in casu, qualquer risco de configuração de vácuo legislativo, descortina-se que o conteúdo da LC nº 135/10 consubstancia inequívoca alteração do regime das elegibilidades, e, como tal, incide na interdição constitucional do art. 16 da CRFB.
Refute-se, por oportuno, com a devida vênia, o argumento de que a publicação da LC nº 135/10 antes das convenções partidárias, nas quais ocorre a definição dos candidatos, seria suficiente para satisfazer as razões subjacentes ao art. 16 da Constituição. Segundo referido raciocínio, os partidos políticos e seus filiados teriam tido tempo suficiente para deliberar em igualdade de condições quanto à escolha dos respectivos candidatos segundo as regras novas, na medida em que a publicação da LC nº 135/10 ocorreu em 07 de junho de 2010, três dias antes do período fixado pelo TSE para a realização das convenções partidárias – de 10 de junho a 30 de junho. Assim, conforme essa tese, por não ter havido surpresa quanto ao regime jurídico subjetivo dos candidatos, não haveria violação ao art. 16 da CF.
Apesar da aparente sedução do argumento, que se funda nas razões subjacentes à regra da anualidade eleitoral, o mesmo não merece acolhida. É que o enunciado normativo do art. 16 da Constituição Federal, como decorre da moderna teoria geral do direito e, mais particularmente, da novel teoria da interpretação constitucional, consubstancia uma regra jurídica. Ao contrário dos princípios jurídicos, que apelam imediatamente para estados ideais a serem alcançados – como os princípios da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) ou da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) –, as regras se caracterizam pela enunciação de uma hipótese de incidência e, simultaneamente, do comando a ser desencadeado pela configuração de seus pressupostos de fato (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, pp. 316-8; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, São paulo: Ed. Saraiva, 2009, pp. 64 e segs.; e BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2005, p. 166 e segs.).
Essa constatação, do ponto de vista metodológico, impõe não seja possível, na aplicação de regras jurídicas, simplesmente desconsiderar seus enunciados lingüísticos para buscar desde logo as razões que lhe são subjacentes, a fim de que, identificadas tais razões, serem aplicados ao caso, a despeito do que preveja a regra, diretamente os fundamentos que teve em vista o legislador ao instituí-la. Este raciocínio é próprio aos princípios jurídicos, que, como dito acima, conclamam o aplicador a ter em vista a concretização de estados ideais a serem alcançados, muitas vezes sob a técnica da ponderação de interesses, que deve se fazer presente, como se sabe, sempre que a finalidade proclamada por um princípio colida com o que prega outro de igual hierarquia.
Diversamente, as regras se caracterizam justamente pela segurança e pela previsibilidade que decorrem de seu método subsuntivo de aplicação, que parte da hipótese de incidência para alcançar o comando nela cristalizado. E esse método de aplicação se justifica pois as regras já representam uma decisão, pelo legislador, acerca da acomodação dos diversos vetores em jogo, que, no caso dos princípios, ao contrário, é delegada pela lei ao aplicador, de modo a ser feita à luz das particularidades do caso concreto.
Em síntese, o fato de o legislador optar por instituir uma regra – e não um princípio –, como no caso do art. 16 da CF, é motivo suficiente para que não sejam desconsiderados seus enunciados lingüísticos, que representam, na realidade, a decisão já tomada no domínio da democracia quanto às diversas razões que poderiam conduzir a soluções opostas, ou simplesmente diferentes, a respeito da segurança jurídica no processo eleitoral. É nesse sentido, por exemplo, a lição de Frederick Schauer, renomado Professor da Universidade de Virgínia e ex-Professor da Universidade de Harvard, que traça com clareza as linhas gerais do método de aplicação das regras:
“We have now distinguished two types of decisionmaking, the distinction being a function of the way in which prescriptive generalizations directed to any decision-maker are, ordinarily, under- and over-inclusive instantiations of deeper justifications. Under one sort of decision-making, these instantiations are intrinsically unweighty guides to the application of their background justifications, and so provide no normative pressure in cases in which the results they indicate diverge from the results indicated by direct application of those background justifications. But under another sort of decision-making these instantiations are treated as entrenched, such that the instantiation provides normative pressure qua instantiation even in those cases in which application of that instantiation frustrates the justification (or justifications) lying behind it.
We can now label the two forms of decision-making. Because one treats what look like rules in form only as weightless rules of thumb (a term I will subject to closer scrutiny in the concluding section of this chapter), not allowing them to interfere with the fullest consideration of all relevant (according to the applicable justification or array of justifications) features of the event calling for a decision, I will refer to it as particularistic. Particularistic decision-making focuses on the particular situation, case, or act, and thereby comprehends everything about the particular decision-prompting event that is relevant to the decision to be made. By contrast, the second type of decision-making, excluding from consideration some properties of the particular event that a particularistic decision procedure would recognize, is the one I refer to as rule-based. Rule-based decision-making fails to be particularistic just because some otherwise relevant features of the decision-prompting event are actually or potentially ignored by the under- and over-inclusive generalization constituting the factual predicate of any rule.” (SCHAUER, Frederick. Playing by the rules – a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life, New York: Oxford University Press, 2002, pp. 77-78).
Em sentido similar, no direito brasileiro, é a lição do Prof. Luís Roberto Barroso, nos seguintes termos:
“Como já dito e reiterado, regras são descritivas de conduta, ao passo que princípios são valorativos ou finalítiscos. Essa característica dos princípios pode acarretar duas consequências. Por vezes, a abstração do estado ideal indicado pela norma dá ensejo a certa elasticidade ou indefinição do seu sentido. É o que acontece, e.g., com a dignidade da pessoa humana, cuja definição varia, muitas vezes, em função das concepções políticas, filosóficas, ideológicas e religiosas do intérprete. Em segundo lugar, ao empregar princípios para formular opções políticas, metas a serem alcançadas e valores a serem preservados e promovidos, a Constituição nem sempre escolhe os meios que deve ser empregados para preservar ou alcançar esse bens jurídicos. Mesmo porque, e esse é um ponto importante, frequentemente, meios variados podem ser adotados para alcançar o mesmo objetivo. As regras, uma vez que descrevem condutas específicas desde logo, não ensejam essas particularidades. Ora, a decisão do constituinte de empregar princípios ou regras em cada caso não é aleatória ou meramente caprichosa. Ela está associada, na verdade, às diferentes funções que essas duas espécies normativas podem desempenhar no texto constitucional, tendo em conta a intensidade de limitação que se deseja impor aos Poderes constituídos. Ao utilizar a estrutura das regras, o constituinte cria condutas específicas, obrigatórias, e, consequentemente, limites claros à atuação dos poderes políticos. Os princípios, diversamente, indicam um sentido geral e demarcam um espaço dentro do qual as maiorias políticas poderão legitimamente fazer suas escolhas” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 210-1).
Esses postulados teóricos aplicáveis ao caso sub examine impedem que a Suprema Corte Brasileira simplesmente reescreva o art. 16 da Constituição Federal, no sentido de que, onde se lê “não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, seja lido como marco temporal a data da realização das convenções partidárias, ou a data em que ocorrido o registro da candidatura. A regra do art. 16 da CF, ao concretizar o princípio da segurança jurídica no domínio eleitoral, definiu um marco claro e preciso para a eficácia de novas leis que pretendam alterar o processo eleitoral, qual seja: a lei não pode atingir as eleições que ocorram no mesmo ano em que iniciada sua vigência. E um ano, evidentemente, não é igual a quatro meses, espaço de tempo que medeia entre o mês de junho (entrada em vigor da LC nº 135/10) e o mês de outubro (mês de realização das eleições).
Mercê desse aspecto metodológico, a dinâmica eleitoral não se inicia apenas formalmente na convenção partidária: há movimentos políticos de estratégia que ocorrem antes, pela conjugação e harmonização de forças, como é notório, e notoria non egent probationem, por isso que esse fato não pode ser simplesmente desconsiderado na identificação da razão subjacente ao art. 16. Se permitida a incidência de lei publicada apenas três dias antes do começo do período das convenções partidárias, assim, haveria um prejuízo material ao debate democrático, pois a própria definição dos candidatos poderia ficar à deriva, dado o risco de alteração, de modo abrupto, das regras sobre inelegibilidade, com inegável afronta à previsibilidade que deve presidir o jogo eleitoral. Deste modo, mesmo que interpretado o art. 16 da CF à luz de sua razão subjacente – i.e., a segurança jurídica, da qual decorrem o equilíbrio e a igualdade nas eleições – seu comando não poderia ser afastado no presente caso.
Nesse segmento, rememore-se que no julgamento da ADIn nº 3.685/ DF, na qual se discutiu a aplicação no tempo, para as eleições de 2006, das novas regras sobre coligações partidárias instituídas pela Emenda Constitucional nº 52/06, publicada em março de 2006, entendeu este Supremo Tribunal Federal pela ofensa ao art. 16 da Constituição, cuja natureza é de verdadeira cláusula pétrea. Ora, se há razões para condicionar ao art.
Conjure-se, por fim, o fundamento calcado na redação do art. 14, § 9º, da CF, pelo fato de o mesmo prever, desde a Emenda nº 04/94, a possibilidade de instituição de inelegibilidades fundadas na “probidade administrativa” e na “moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato”, o que afastaria qualquer argumento de surpresa pelos atingidos pela LC nº 135/10. Ora, é evidente que a Constituição, ela mesma, não previa de modo concreto e específico quais seriam as hipóteses de inelegibilidade – o que foi engendrado pela LC nº 135/10 –, mas apenas seu fundamento último na moralidade administrativa. E é justamente a instituição das novas hipóteses concretas de inelegibilidade que provoca a alteração substancial no processo eleitoral, que, por conta disso, não pode se furtar à incidência do art. 16 da Constituição.
A mesma conclusão é colhida na doutrina de José Afonso da Silva, ao assentar que a ratio essendi do art. 16 da CRFB visa a evitar casuísmos e alterações nas regras do “jogo eleitoral” já iniciado (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, p. 237).
Um outro aspecto de sumo relevo deve ser destacado, como o foi, nos julgamentos anteriores acerca do tema, pelos eminentes Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, qual o da violação bifronte, pelo acórdão recorrido, do art. 16 e da garantia da segurança jurídica inerente e necessária à estabilidade do regime democrático, e que se vê surpreendida – e essa é a palavra, “surpresa” – com a criação de novas inelegibilidades, in itinere, durante o jogo democrático.
Deveras, repita-se, a iniciativa popular foi mais do que salutar, mas não pode ser efetivada em dissonância com as garantias constitucionais. É que segurança jurídica e surpresa não combinam, resolvendo-se os conflitos e as tensões sempre em prol do primeiro valor.
Um cidadão ou um candidato não podem saber que algo é proibido como os cães, para utilizar a metáfora de Bentham, ao assentar que os cachorros só sabem o que é proibido quando um taco de beisebol lhes toca o focinho (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Exposição de motivos do PL 166 – O novo código de processo civil.)
Essa quaestio júris da surpresa em confronto com a segurança jurídica, e que hoje integra os valores na novel Constituição póspositivista de 1988, é retratada com a precisão dos doutrinadores germânicos nas digressões acerca da Proteção da Confiança ou na versão anglo-saxônica da “Proteção da confiança legítima”. E é sob este enfoque que também se evidencia que os efeitos imediatos da Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010, infringem o princípio da proteção da confiança, princípio difundido no Direito germânico e que, mais recentemente, ganha espaço no cenário jurídico brasileiro.
A confiança é tão relevante que, além de contribuir para a duração de um sistema político, na sua ausência qualquer sociedade entra
Segundo JOHANNES BEERMANN, o pensamento em torno do princípio da proteção da confiança já estava presente no Direito em 896 (BEERMANN, Johannes. Verwirkung und vertrauensschutz im steuerrecht, Münster/New York: Waxmann, 1991, p. 5.) Naquele ano, o tema foi descortinado por conta da morte e julgamento do Papa Formoso. Após seu falecimento, o novo Papa Estevão VI determinou que o corpo do referido pontífice fosse desenterrado para que, em seguida, pudesse ser submetido a um julgamento. Ao final desse concílio cadavérico, o Papa Formoso, já falecido, foi condenado pelas acusações formuladas e, por conta disso, seu corpo foi despido de suas vestes, teve dedos da mão direita decepados e foi excomungado. Essas medidas fizeram com que sua nomeação como Papa perdesse os efeitos de forma ex tunc. Todos os atos por ele praticados (ordenações de Padres e Bispos, consagrações etc.) tiveram de ser desconsiderados. Na época, a despeito de ter sido declarada a ineficácia dos atos papais desde a sua origem, as sérias conseqüências advindas dessa medida levaram os estudiosos do Direito Canônico a refletirem sobre a necessidade de preservação da confiança depositada nos atos praticados pelo Papa Formoso e por aqueles indevidamente por ele consagrados (Ibidem, p. 5.)
As idéias que gravitam em torno do princípio da proteção da confiança começaram a se desenvolver mais intensamente na Alemanha a partir do início dos anos cinquenta, momento do pós-guerra em que o Estado social alemão passou a desempenhar um rol mais amplo de atribuições (OSSENBÜHL, Fritz. Vertrauensschutz im sozialen Rechtsstaat, Die Öffentliche Verwaltung. Zeitschrift für Verwaltungsrecht und Verwaltungspolitik. Heft 1-2, Stuttgart: W. Kohlhammer GmbH, Januar 1972, p. 26, e BULLINGER, Martin; Hagen; WÜRTENBERG, Thomas (Org.) et al. Vertrauensschuz im deutschen Verwaltungsrecht in historisch-kritischer Sicht – Mit einem Reformvorschlag. In: Wahrnehmungs- und Betätigungsformen des Vertrauens im deutschfranzösischen Vergleich, Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 136.). Atualmente, a necessidade de proteção da confiança se dissemina em um ambiente de crescente demanda por segurança e estabilidade em um mundo de rápidas e freqüentes alterações, em que o indivíduo depende, cada vez mais, das decisões e normas estatais (KISKER, Gunter; PÜTTNER, Günter. Vertrauensschutz im Verwaltungsrecht. Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer (VVDStRL), Berlin/New York, Heft 32, Walter de Gruyter, 1974, p. 208). Sem embargo de ainda não possuir uma posição de destaque em nosso ordenamento, o princípio da proteção da confiança poderá servir no Brasil, da mesma forma que em outros países, para garantir, com critérios mais firmes, nítidos e objetivos, a preservação futura de expectativas legítimas de particulares oriundas de comportamentos estatais.
Trata-se de um princípio que, no dizer de ANNA LEISNER-EGENSPERGER, leva em consideração a confiança do cidadão na continuidade de uma decisão ou de um comportamento estatal (LEISNER-EGENSPERGER, Anna. Kontinuität als Verfassungsprinzip: unter besonderer Berücksichtigung des Steuerrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 2002, p. 459). E, consoante pontifica FRITZ OSSENBÜHL, em tradução livre do alemão:
“a ‘proteção da confiança’ significa, no sentido jurídico, a defesa de posições jurídicas do cidadão em sua relação com o Estado. Ela representa a observância das expectativas de comportamentos pelas instâncias estatais, independentemente de se tratar do Legislador, do Executivo ou do Judiciário”. (No original: „‚Vetrauensschutz’ im Rechtsinne meint die Verteidigung von Rechtspositionen des Bürgers gegenüber dem Staat, meint die Honorierung von Verhaltenserwartugen gegenüber staatlichen Instanzen, gleichgültig ob Gesetzgebung, Verwaltung oder Rechtsprechung”. OSSENBÜHL, Fritz. Vertrauensschutz im sozialen Rechtsstaat. Die Öffentliche Verwaltung. Zeitschrift für Verwaltungsrecht und Verwaltungspolitik. Heft 1-2, Stuttgart: W. Kohlhammer GmbH, Januar 1972, p. 25.)
O princípio da proteção da confiança é um instituto que, na visão de WALTER SCHMIDT, foi desenvolvido para a tutela de posições jurídicas dos cidadãos contra mudanças de curso (Verteidigung Von Rechtspositionen des Bürgers gegen Kursänderung) (SCHMIDT, Walter. Vertrauensschutz im öffentlichen Recht. Juristische Schulung. Zeitschrift für Studium und Ausbildung. 13º ano. München e Frankfurt: C. H. Beck, 1973, p. 529.). Aliás, conforme adverte AULIS AARNIO, uma das funções mais importantes das normas jurídicas é a criação de uma estabilidade nas relações sociais (AARNIO, Aulis. The Rational as Reasonable. A Treatise on Legal Justification. Dordrecht-Boston-Lancaster-Tokyo: D. Reidel Publishing Company, 1987, p. 7.).
Na avaliação do antropólogo ERNST-JOACHIM LAMPE, a segurança e a possibilidade de preservação dos próprios interesses individuais situam-se dentre as necessidades fundamentais do seres humanos (LAMPE, Ernst-Joachim. Grenzen des Rechtspositivismus. Eine rechtsanthropologische Untersuchung. Berlin: Duncker & Humblot GmbH, 1988, p. 198.). Com a mesma preocupação, WINFRIED BRUGGER salienta, em sua consagrada obra “A Cruz Antropológica da Decisão na Política e no Direito” (Das anthropologische Kreuz der Entscheidung in Politik und Recht) que, por tocarem diretamente na essência da natureza humana, a violação contínua dessas necessidades por demasiado tempo certamente encontrará, em algum momento da história, uma forte resistência dos prejudicados (BRUGGER, Winfried. Das anthropologische Kreuz der Entscheidung in Politik und Recht. Baden-Baden: Nomos, 2005, p. 16.).
Continuidade do Direito não representa sua petrificação, mas, conforme rememora a professora da Universidade alemã de Jena ANNA LEISNER-EGENSPERGER, uma mudança com consistência e constância (LEISNER-EGENSPERGER, Anna. Kontinuität als Verfassungsprinzip: unter besonderer Berücksichtigung des Steuerrechts. Tübingen: Mohr Siebeck, 2002, p. 1, 469.). A continuidade pressupõe um processo dinâmico de unificação em que desaparecem os obstáculos entre os eventos; elementos que estavam separados se fundem em um “todo” (zu einem Ganzen verschmolzen) e deixa de existir qualquer ruptura entre eles (Ibidem, p. 43 e 113.). Nesse contexto, a pretensão de continuidade do ordenamento deve, segundo LEISNER-EGENSPERGER, pressupor um desenvolvimento constante do Direito desprovido de modificações abruptas e incoerentes (Ibidem, p. 158.). Sua evolução merece ser conduzida de forma a superar a estagnação, mas sem que ocorram mudanças súbitas e inesperadas (para KIRCHHOF, a continuidade significaria um progresso contínuo, bem dimensionado e conseqüente. Segundo ele, o princípio da proteção da confiança também representaria uma autêntica manifestação subjetiva da garantia objetiva de continuidade. KIRCHHOF, Paul. Kontinuität und Vertrauensschutz bei Änderungen der Rechtsprechung. DStR (Deutsches Steuerrecht), 27º Ano, Heft 9, München e Frankfurt am Main: C. H. Beck, 1989, p. 266).
A ampliação das atividades estatais faz crescer uma exigência por parte dos cidadãos de maior constância e estabilidade das decisões que lhes afetam. É cediço, inclusive, que um cidadão não consegue planejar sua vida se o Estado não atuar de forma estável e consistente. Mudança e constância são, dessa forma, duas expressões que constantemente colidem no mundo pós-moderno em que vivemos.
Segundo a avaliação de WÜRTENBERG e de JEANNEROD, “a proteção da confiança depositada na continuidade das normas jurídicas possibilita o desenvolvimento do direito fundamental de liberdade” (No original: „Der Schutz des Vertrauens in den Bestand rechtlicher Regelungen ermöglicht die Entfaltung grundrechtlicher Freiheit”. WÜRTENBERGER, Thomas; JEANNEROD, Dominique; WÜRTENBERGER, Thomas (Org.) et al. Vertrauen in den Gesetzgeber in Frankreich und in Deutschland. In: Wahrnehmungs- und Betätigungsformen des Vertrauens im deutsch französischen Vergleich. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 153). A crença na estabilidade do ordenamento é, inclusive, fundamental para a autodeterminação do indivíduo (Selbstbestimmung über den eigenen Lebensentwurf und seinen Vollzug) (MUCKEL, Stefan. Kriterien des verfassungsrechtlichen Vertrauensschutzes bei Gesetzesänderungen. Berlin: Duncker & Humblot, 1989, p. 105.). E, como adverte INGO SARLET, apenas em um ambiente em que haja um mínimo de respeito às expectativas legítimas dos particulares é que os direitos fundamentais conseguem receber uma adequada tutela. (SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/wwwroot/01de2006/proibicao_ingo_wlfgang_sarlett.pdf>. Acesso em 19 de novembro de 2006, p. 7. Para um maior aprofundamento sobre o tema dos direitos fundamentais, merece consulta a obra SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. Em sentido similar, DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 214). É através, portanto, da confiabilidade no ordenamento que o indivíduo tem condições de planejar sua própria vida e de praticar atos que materializem esse planejamento. Isso vai, inclusive, conferir efetividade ao direito fundamental de desenvolvimento da personalidade. Por essa razão, o poder deve ser exercido de forma previsível e calculável.
O princípio da proteção da confiança é responsável pela criação de uma relação de tensão (Spannungsverhältnis) entre os valores estabilidade e tradição de um lado e flexibilidade e capacidade de inovação do outro (Segundo GÖTZ, expectativas legítimas encontram-se numa constante relação de tensão – tense relationship – com o dinamismo demandado pelo Estado contemporâneo. GÖTZ, Volkmar; RIEDEL, Eibe (Org.). Protection of Legitimate Expectations. In: German reports on Public Law. Presented to the XV. International congress on Comparative Law. Bristol, 26 July to 1 August 1998. Baden-Baden: Nomos, 1998, p. 134). O resultado desse conflito é que possibilitará, consoante lição de KYRILL-A SCWARZ, a existência de um Estado que, sem desconsiderar o passado, tenha condições de razoável e eficazmente se adaptar ao futuro (SCHWARZ, Kyrill-A.. Vertrauensschutz als Verfassungsprinzip. Eine Analyse des nationalen Rechts des Gemeinschaftsrechts und der Beziehungen zwischen beiden Rechtskreisen. Studien und Materialen zur Verfassungsgerichtsbarkeit. Baden-Baden: Nomos, 2002, p. 28.).
Um Estado Democrático de Direito deve, conforme predicam KLAUS STERN e FUHRMANNS, assegurar aos seus cidadãos, dentre outros valores, a segurança jurídica (STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland. Band I. Grundbegriffe und Grundlagen des Staatsrechts, Strukturprinzipien der Verfassung. 2., völlig neubearbeitete Auflage. München: C. H. Beck, 1984, p. 781; FUHRMANNS, Achim. Vertrauensschutz im deutschen und österreichischen öffentlichen Recht. Eine rechtsvergleichende Untersuchung unter Berücksichtigung des Vertrauensschutzes im Europäischen Gemeinschaftsrecht. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Justus Liebig de Giessen, 2004. Disponível em: <http://geb.uni-giessen.de/geb/ volltexte/2005/2209/>. Acesso em: 18 de novembro de 2006, p. 66.). GOMES CANOTILHO também defende o mesmo. Para ele, o Estado de Direito deve proporcionar segurança e confiança às pessoas. Segundo o jurista português:
“As pessoas – os indivíduos e as pessoas colectivas – têm o direito de poder confiar que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas ou em actos jurídicos editados pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico. (…) A segurança e a confiança recortam-se (…) como dimensões indeclináveis da paz jurídica”. (CANOTILHO, J.J. Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos nº 7. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 73-74.)
Dessa forma, a autonomia de um indivíduo apenas é assegurada se ele puder planejar e tiver condições de prever, com uma determinada dose de certeza, o âmbito de suas responsabilidades e as conseqüências de suas ações (SCHØNBERG, Søren. Legitimate Expectations in Administrative Law. Oxford: Oxford Press, 2000, p. 12.).
Todo indivíduo deve ter, como destaca WINFRIED BRUGGER, a possibilidade de fixar suas metas e objetivos e de formular um plano individual de vida. (BRUGGER, Winfried. Menschenwürde, Menschenrechte, Grundrechte. Baden-Baden: Nomos, 1997, p. 49.) Consoante sustenta VALTER SHUENQUENER DE ARAUJO, em sua obra sobre o Princípio da Proteção da Confiança:
“devemos ser os principais responsáveis pelas vantagens e desvantagens que surgirem como conseqüências de nossas opções, o que obriga o Estado a respeitar nossas preferências, mormente se elas estiverem dentro de uma moldura normativa autorizada pela ordem jurídica. O princípio da proteção da confiança deve, por exemplo, impedir intervenções estatais que façam desabar projetos de vida já iniciados. (…) A sociedade não pode apenas olhar para o presente e criar, através do Estado, normas que esvaziem por completo os planos individuais planejados no passado. As aspirações de mudança surgidas no seio popular e materializadas por atos estatais também merecem ser contidas na exata extensão em que vierem a ofender expectativas legítimas de particulares. (…) O princípio da proteção da confiança precisa consagrar a possibilidade de defesa de determinadas posições jurídicas do cidadão diante de mudanças de curso inesperadas promovidas pelo Legislativo, Judiciário e pelo Executivo. Ele tem como propósitos específicos preservar a posição jurídica alcançada pelo particular e, ainda, assegurar uma continuidade das normas do ordenamento. Trata-se de um instituto que impõe freios contra um excessivo dinamismo do Estado que seja capaz de descortejar a confiança dos administrados. Serve como uma justa medida para confinar o poder das autoridades estatais e prevenir violações dos interesses de particulares que atuaram com esteio na confiança.” (ARAUJO, Valter Shuenquener de. O Princípio da Proteção da Confiança. Uma Nova Forma de Tutela do Cidadão Diante do Estado. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.)
No âmbito do Poder Judiciário, o Plenário desta Corte já teve a oportunidade de fazer uso do princípio da proteção da confiança e reconheceu, por exemplo, em Mandado de Segurança da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, MS nº 24.268-0/MG, julgado em 05/02/2004, que o tema da confiança e da segurança jurídica tem assento constitucional no princípio do Estado de Direito. Também foi afirmado que a segurança jurídica consiste em um dos subprincípios do Estado de Direito nos seguintes precedentes: STF. Segunda Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. Questão de Ordem na Petição (MC) nº 2.900/RS. Data do julg.: 27/05/03. D.J.U: 01/08/03, p. 6 do relatório; STF. Plenário. Rel. Min. Ellen Gracie. Rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes. MS nº 24.268-MG. Data do julg. 05/02/04. DJU: 17/09/04.
Perfilho, destarte, o entendimento de que o ordenamento jurídico deve, através do princípio da proteção da confiança, proteger o indivíduo contra alterações súbitas e injustas em sua esfera patrimonial e de liberdade, e deve fazer irradiar um direito de reação contra um comportamento descontínuo e contraditório do Estado (BURMEISTER, Joachim. Vertrauensschutz im Rechtsstaat. Tese (Habilitationsschrift) apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Colônia na Alemanha, 1974, p. 124. Com o mesmo entendimento, JUDITH MARTINS-COSTA. COSTA, Judith Martins. Princípio da Segurança Jurídica na relação entre o Estado e os Cidadãos: a segurança como crédito de confiança. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero27/artigo14.pdf>. Acesso em 16 de novembro de 2006, p. 4).
Na hipótese versada nos autos, o princípio da proteção da confiança desempenhará um relevante papel. Estamos diante de um dispositivo constitucional, o art. 16, que prevê, numa leitura de clareza cristalina, a necessidade de uma nova regra legal capaz de alterar o processo eleitoral apenas produzir efeitos após um ano de sua vigência. Como corolário do dispositivo, todo e qualquer candidato não esperava ser afetado pelas mudanças encartadas na LC nº 135/10 em relação às eleições de 2010. Nesse contexto, a aplicação imediata da novel lei agride o princípio da proteção da confiança, dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica, tornando incerto o que certo, instável o que o texto constitucional buscou preservar.
A ampliação da legitimidade da Lei da Ficha Limpa, decorrente do fato de o projeto ser oriundo de uma iniciativa popular, também não pode fazer sucumbir princípios basilares do Direito. É que os milhares de votos alcançados pelos parlamentares eleitos, e a serem prejudicados com a aplicação imediata da Lei Complementar nº 135, servem como um mecanismo compensatório para fazer frente aos votos obtidos no projeto de iniciativa popular, que buscou afastar do cenário político todas as autoridades punidas por órgãos colegiados. Por conta disso, a projeção para eleições futuras dos comandos da lei impugnada não representa, de maneira alguma, uma antidemocrática posição contramajoritatória de nossa Corte rumo à preservação de direitos historicamente assegurados pelos diversos ordenamentos jurídicos mundiais.
Há, na realidade, um nítido embate entre o anseio de parcela da população brasileira de aplicação das regras da LC nº 135 às eleições de 2010, e, de outro lado, a vontade de parcela substancial de cidadãos que elegeram os candidatos a serem prejudicados com o eventual efeito imediato da Lei da Ficha Limpa. Esta última vontade fica, ainda, aliada às expectativas legítimas dos candidatos de não serem surpreendidos com uma alteração súbita e inesperada no processo eleitoral brasileiro. Fazendo uso do método de concordância prática, que impõe uma relação de precedência condicionada dos valores em jogo e o aproveitamento máximo dos bens submetidos a uma ponderação, resta forçoso concluir que a LC nº 135/2010 não deve produzir efeitos, conforme redação do art. 16 de nossa Carta Magna, antes do decurso de um ano de sua vigência. Foi isso o que Constituinte pretendeu de forma inquestionável.
Um dispositivo legal não pode, por razões sabidamente conhecidas, contrariar regras expressas do texto constitucional. Lembro que, na Odisséia de Homero, Ulisses apenas se salvou do canto das sereias após colocar cera nos ouvidos e se amarrar ao mastro de sua embarcação. Foi dessa forma que a racionalidade triunfou sobre o mito (A respeito dessa metáfora, utilizada originalmente no constitucionalismo norte-americano por Jon Elster na obra Ulysses and the sirens, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, conferir, no direito brasileiro, VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça – um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, São Paulo: Ed. Malheiros, 1999, p. 20 e segs.). A tentação é grande, mas deve ser resistida, sob pena de grave comprometimento de valores mais elevados assegurados pelo texto constitucional de nossa pátria. As vozes de uma parcela da população brasileira, que clamam, de forma contrária ao que admite o art. 16 de nossa Constituição, pela punição, já nas eleições de 2010, de políticos condenados por órgãos colegiados, devem ser ouvidas, respeitadas, mas não encontram embasamento no ordenamento jurídico brasileiro e nem mesmo nas civilizações democráticas do mundo ocidental. Na longa caminhada, o canto das sereias leva, apenas, ao sacrifício nas profundezas escuras do mar.
As novidades trazidas pela LC nº 135/10 introduzem profundas mudanças no processo eleitoral brasileiro, impedindo que políticos condenados por decisão de órgão colegiado sejam eleitos. Há, reitero, alteração no processo eleitoral. E, por essa razão, a aplicação da Lei às eleições de 2010 colide frontalmente com a regra contida no art. 16 de nossa Constituição no sentido de que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.
Numa análise das condições apresentadas por VALTER SHUENQUENER DE ARAUJO para o manejo do princípio da proteção da confiança em um caso concreto, é forçoso concluir que todas elas estão presentes na hipótese dos autos. Segundo o referido autor, o emprego do princípio da proteção depende da presença: i) da base da confiança, ii) da existência subjetiva da confiança, iii) do exercício da confiança através de atos concretos e iv) do comportamento estatal que frustre a confiança. O artigo 16 da Carta de 88 é a Vertrauensgrundlage, isto é, a base da confiança, o ato estatal que dá origem a uma expectativa legítima, no sentido da impossibilidade de surgimento de uma nova lei capaz de frustrar, subitamente, o processo eleitoral antes de decorrido um ano da sua vigência. Essa regra foi internalizada pelos pretendentes a mandatos eletivos e a LC nº 135 não poderia esvaziar a existência subjetiva da confiança. Ademais, os pretendentes a cargos políticos se comportaram acreditando que a regra do art. 16 impediria mudanças súbitas, tal como a perpetrada pelas alterações introduzidas pela LC nº 135 no nosso ordenamento.
Sob outro enfoque, o art. 16 da Carta de 88 materializou o que KLAUS-DIETER BORCHARDT denomina de proteção por meio de disposições de transição (Verpflichtung zum Erlass Von Übergangsregelungen) (BORCHARDT, Klaus-Dieter. Der Grundsatz dês Vertrauensschutzes im Europäischen Gemeinschaftsrecht. Schriftenreihe EUROPA-FORSCHUNG. Band 15. Kehl-Strassburg- Arlington: N. P. Engel, 1988, p. 59). Com o mesmo entendimento, por exemplo, SCHMEHL. SCHMEHL, Arndt. Die verfassungsrechtlichen Rahmenbedingungen des Bestands- und Vertrauensschutzes bei Genehmigungen unter Änderungsvorbehalt. DVBl (Deutsches Verwaltungsblatt), Ano 114. Köln e Berlin: Carl Heymanns, janeiro de 1999, p. 23.). Cuida-se de um dispositivo constitucional que, ao deslocar, para um momento futuro, os efeitos de uma nova lei capaz de interferir no processo eleitoral, amortece os efeitos da nova norma, viabilizando a coesão social e a tutela da confiança que os indivíduos depositaram no Estado brasileiro.
Nesse contexto, a interpretação favorável à incidência imediata da LC nº 135 para as eleições de 2010 configura um didático exemplo de comportamento que frustra a confiança do cidadão depositada no Estado, um modo de proceder que viola uma expectativa legítima dos candidatos a cargos políticos. Por tudo o que foi dito, a observância do princípio da proteção da confiança, princípio que tem seu fundamento jurídico na cadeia de derivação (Herleitungskette) segurança jurídica-Estado de Direito, impõe o deslocamento dos efeitos desfavoráveis aos cidadãos da LC nº 135 para as eleições que se verificarem após um ano da sua vigência. É dessa maneira que o povo brasileiro terá a sua vontade respeitada. E nunca é tarde para rememorarmos que, na visão de Friedrich Müller, o povo se apresenta,
Estas razões, Senhor Presidente, que nos conduzem a concluir que as disposições da LC nº 135/10 não podem escapar do comando do art. 16 da Constituição Federal. A Ficha Limpa é a lei do futuro, é a aspiração legítima da nação brasileira, mas não pode ser um desejo saciado no presente, em homenagem à Constituição Brasileira, que garante a liberdade para respirarmos o ar que respiramos, que protege a nossa família desde o berço dos nossos filhos até o túmulo dos nossos antepassados.
Enfim, Senhor Presidente, hoje a Corte Suprema tem a possibilidade de definir, num só momento mágico da jurisdição constitucional, a vida e a esperança dos eleitores brasileiros.
Ex positis, dou provimento ao recurso, aplicando ao decisum o regime jurídico do art. 543-B do CPC, acompanhando o Relator, Ministro Gilmar Mendes, a fim de que, consoante uma interpretação conforme, in casu, da alínea ‘l’ do inc. I do art. 1º da Lei Complementar nº 64/90 (redação atribuída pela LC nº 135/10), seja necessariamente observado o disposto no art. 16 da CF na aplicação temporal da cognominada “Lei da Ficha Limpa”.
*acórdão pendente de publicação
Inovações Legislativas
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – Alteração – Prisão Processual Cautelar – Fiança – Liberdade provisória
Lei nº 12.403, de 4.5.2011 – Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências. Publicada no DOU, Seção 1,p. 1-3, em 5.5.2011.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) – Expediente – Regulamentação
Resolução nº 130/CNJ, de 28 de abril de 2011 – Acrescenta aos §§ 3º e 4º ao art. 1º da Resolução nº 88, de 8 de setembro de 2009. Publicada no DJe/CNJ, nº 77, p. 2 em 2.5.2011.
Secretaria de Documentação – SDO
Coordenadoria de Jurisprudência Comparada e Divulgação de Julgados – CJCD