Giovani Favoreto Brocardo, Hernane Elesbão Wiese, Marcel Damato Belli *
Relato do caso
Valter Falavigna fez um consórcio com a Volkswagen para comprar um Gol. Ele vende o carro para Gilmar, mas tinha uma dívida de 623,06 reais, devido a inadimplemento das parcelas.
Gilmar, ao comprar o carro, “compra”, também, a dívida, pois ao se transferir um contrato, transfere-se também o pólo passivo dele (por exemplo: dívidas).
Gilmar, então, ingressa com uma ação no Tribunal de Justiça para que a dívida seja revertida para Valter. Todavia, o TJ não provém o recurso, alegando os ensinamentos da célebre Maria Helena Diniz, que fazendo alusão ao brilhante Silvio Rodrigues, diz que:
“A cessão de contrato é, segundo Silvio Rodrigues, a transferência da inteira posição ativa e passiva, do conjunto de direitos e obrigações de que é titular uma pessoa, derivados de contrato bilateral já ultimado, mas de execução ainda não concluída.” (in Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações 2. Vol. 17 . ed. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 440)
Tipo de obrigação
Obrigação de dar (pecuniária).
Identificação dos sujeitos
Cedida: Consórcio Nacional Volkswagen
Cedido: Valter Falavigna
Cessionário: Gilmar Marno Matte
Tipo de contrato
Assunção de dívida por delegação liberatória.
características da transmissão
Transmissão gratuita, total, convencional, pro soluto.
decisão anexada
Assunção de dívida. Quota de consórcio. Art. 299 do CC/2002(sem correspondência no CC/1916). Ao celebrar o instrumento particular de cessão da quota de grupo de consórcio, não foi transferido apenas o veículo, mas todos os direitos e obrigações que exsurgem da relação contratual, englobando, deste modo, a assunção de todas as dívidas. Assim diante a existência de saldo devedor decorrente de atraso no adimplemento das parcelas causado pelo cedente, é lícito à cedida negar ao cessionário o fornecimento de carta de liberação do veículo negociado. O v. acórdão abaixo reproduzido, além de colacionar as lições de Maria Helena Diniz, Silvio de Salvo Venosa e inúmeros precedentes jurisprudenciais, inclusive do Colendo Superior Tribunal de Justiça, advertiu: “..que o demandante deveria ter sido diligente e investigar sobre a existência ou não de débitos, antes de celebrar aludido negócio, não tendo agora a possibilidade de isentar-se do dever de quitar os importes decorrentes do pagamento atrasado das prestações, mesmo que vencidas em data anterior ao da concretização do aludido ajuste, pois lhe foram transmitidos todas os direitos e deveres decorrentes do contrato sub examine”.
Decisão
Acórdão: Agravo de Instrumento n. 2001.020022-8, de Joaçaba.
Relator: Des. Gastaldi Buzzi.
Data da decisão: 06.05.2004.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de agravo de instrumento n. 2001.020022-8, de Joaçaba (1ª Vara Cível), em que é agravante GILMAR MARINO MATTE, sendo agravado CONSÓRCIO NACIONAL VOLKSWAGEN:
ACORDAM, em Terceira Câmara Comercial, por votação unânime, conhecer do recurso, negando-lhe provimento. Custas na forma da lei.
I – RELATÓRIO:
Gilmar Marno Matte ingressou com ação de indenização por ato ilícito com pedido de cominação de multa e liminar contra o Consórcio Nacional Volkswagem, afirmando ter adquirido de Valter Falavigna, o automóvel VW/ Gol CL 1.8, cor branca, ano 1994, placas LXM 6577, o qual se encontrava vinculado ao réu, mencionando que toda a negociação foi intermediada pela empresa Auto Elite Ltda, concessionária Volkswagem, representante da requerida, tendo havido, em 15.12.1995, a transferência do veículo, bem como das quotas do grupo de consórcio, mediante cessão em que a demandada firmou na condição de anuente.
Asseverou que na data de 24.07.1996, a ré, desconsiderando a transferência do plano, já realizada em favor do autor, transmitiu o consórcio do automóvel, cedendo seus direitos ao Banco Itaú S.A, o qual ingressou (em 17.02.1997), com ação de busca e apreensão contra o vendedor do bem, Valter Falavigna, restando apreendido o veículo que se encontrava em poder do recorrente, o qual, posteriormente, veio a ser manutenido na posse do carro em razão da procedência da ação de embargos de terceiro que ajuizara.
Alegou que já efetuou o pagamento de todas as parcelas do consórcio, não conseguindo obter a carta de liberação, vez que a ré faz menção ao fato de existir um débito de R$ 627,06, relativo a encargos moratórios, decorrentes de pagamentos feitos em atraso pelo anterior proprietário da quota de consórcio, Valter Falavigna.
Mencionou que se algum valor fosse devido pelo consorciado anterior, à requerida caberia impedir a cessão e transferência de direitos ao agravante, o que não fez, tendo inclusive expressamente consentido para a celebração de referido negócio obrigacional (fls.20), pugnando, ao final, pela concessão de tutela antecipada para que seja afastado o gravame que impede a liberação do veículo, a qual foi negada (fls.57).
Irresignado com o interlocutório que não lhe concedeu a tutela antecipada pleiteada, o autor ingressou com agravo de instrumento, buscando a reforma do aludido decisum, reeditando as alegações tecidas na inicial da ação originária, solicitando que seja conferido efeito suspensivo ativo ao recurso, no que foi atendido (fls.62-63), determinando, este egrégio Tribunal, que a empresa agravada, no prazo de (05) cinco dias, fornecesse ao recorrente a competente carta de liberação, sob pena pagar multa diária fixada em R$ 500,00 (quinhentos reais).
Inconformado com a decisão que conferiu os efeitos almejados pelo recorrente, o agravado interpôs agravo inominado, com fulcro no art. 557, § 1º do CPC, aludindo que o relator não poderia ter deferido de plano o pedido postulado pelo agravante, inexistindo qualquer súmula ou jurisprudência dos Tribunais Superiores a lastrar referido provimento, pleiteando, desta forma, a cassação da decisão monocrática deferida nesta Corte de Justiça.
Foi dado parcial provimento ao agravo inominado (fls.92-94), apenas para declarar que referida decisão não poderia ter sido proferida singularmente, mantendo-se, contudo, a concessão do efeito ativo almejado.
O agravado deixou transcorrer in albis o prazo para oferecimento de resposta.
É o relatório.
II – VOTO
Cuida-se de agravo em que o recorrente se insurgiu contra interlocutório preferido em primeiro grau de jurisdição, que negou a liminar pleiteada.
Verifica-se dos autos que o agravante adquiriu o bem em comento através de contrato de cessão e transferência de quota de consórcio (fls.20), realizado com o cedente, Valter Falavigna, com expressa anuência da agravada (consórcio), tendo sido celebrado referido negócio jurídico através de documento lavrado pela própria recorrida, sendo que, após o agravante ter efetuado a quitação de todas as parcelas, foi-lhe negada a liberação do veículo, sob a afirmação de ter o cedente efetuado alguns pagamentos em atraso, encontrando-se, desta forma, um saldo devedor na quantia de R$ 627,06 (seiscentos e vinte e sete reais e seis centavos), decorrente da aplicação de encargos moratórios.
Insurgiu-se o autor contra tal ato, afirmando que era dever da agravada ter se precavido quando consentiu com a cessão de crédito, mencionando que aludido débito é de responsabilidade exclusiva do cedente.
Razão não assiste ao agravante, vez que no contrato de cessão e transferência de quota de consórcio não consta qualquer estipulação de que o cessionário apenas assumiria a responsabilidade pelas prestações vincendas.
Doutrina e jurisprudência denominam o negócio jurídico entabulado entre as partes como cessão de contrato, porquanto refere a transferência ocorrida em contrato bilateral já concluído, com execução ainda não ultimada, por intermédio do qual, é transmitida a responsabilidade do conjunto de direitos e deveres de titularidade do cedente.
Assim, o contrato-base é transferido, e com ele a totalidade dos direitos e deveres dele decorrentes e não apenas o objeto imediato do ajuste.
Maria Helena Diniz, fazendo alusão aos ensinamentos de Silvio Rodrigues, escreve sobre o tema:
“A cessão de contrato é, segundo Silvio Rodrigues, a transferência da inteira posição ativa e passiva, do conjunto de direitos e obrigações de que é titular uma pessoa, derivados de contrato bilateral já ultimado, mas de execução ainda não concluída.” (in Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações 2. Vol. 17 . ed. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 440).
Neste norte, quando da cessão da quota de grupo de consórcio, em não havendo qualquer cláusula isentando o autor de adimplir com possíveis débitos decorrentes das prestações vencidas, despiciendo falar em irresponsabilidade deste em adimplir com os encargos moratórios decorrentes do pagamento atrasado de parcelas, pois ao ter celebrado o ajuste acima mencionado, não lhe foi transferido apenas o veículo, mas todos os direitos e obrigações que exsurgem da relação contratual, englobado, deste modo, a assunção de todas as dívidas.
Ademais, vale mencionar que o demandante deveria ter sido diligente e investigar sobre a existência ou não de débitos, antes de celebrar aludido negócio, não tendo agora a possibilidade de isentar-se do dever de quitar os importes decorrentes do pagamento atrasado das prestações, mesmo que vencidas em data anterior ao da concretização do aludido ajuste, pois lhe foram transmitidos todas os direitos e deveres decorrentes do contrato sub examine.
Silvio de Salvo Venosa com proficiência leciona sobre o tema, preferindo chamar-lhe de “cessão de posição contratual”, analisemos:
“Preferimos falar “cessão de posição contratual”, porque não é o contrato que é cedido, mas os direitos e deveres emergentes da posição de contratante (cf. Antônio da Silva Cabral, 1987: 66 ss). Quem transfere sua posição contratual a um terceiro não transfere unicamente o bem de vida almejado em referido contrato, mas transfere também ( e talvez o que é mais valioso que o próprio objeto imediato do contrato) toda aquela gama de esforços iniciais, a marchas e contramarchas das primeiras tratativas e, por vezes, um verdadeiro “know-how” que aquele contrato custou. Por isso, vemos na transferência da posição contratual um “plus” em relação ao próprio objeto do contrato, um valor agregado; quiçá, certo privilégio pelo acesso a determinado bem, que só a posição de contratante, em determinada situação, confere. […]
A cessão de posição contratual, de fato, tem como objeto (e é no objeto que devemos procurar a distinção) a substituição de uma das partes no contrato, que objetivamente permanecerá o mesmo. Há uma posição jurídica global que é transferida. Isso nos faz lembrar o que pode conter uma relação contratual: complexo de direitos, de deveres, débitos, créditos, bem como outras situações progressivamente desenvolvidas que tornam o todo unitário. Pode ser dito, sem a intenção de confundir, que a transferência de posição contratual insere o cessionário na confusão ordenada do conteúdo contratual, nem sempre perceptível no primeiro impacto da cessão, de vez que, por vezes, emergirão direitos e obrigações para a nova posição assumida, nem sequer imaginados no objeto original da cessão. […] Assim, a cessão de todos os créditos e de todas as pretensões presentes e futuras e a assunção de todas as dívidas não esgotam o conteúdo jurídico do tema em estudo.”(in Direito civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2001.p. 301/314)
Maria Helena Diniz também ensina:
“A cessão de contrato possibilita a circulação do contrato em sua integralidade, permitindo que um estranho ingresse na relação contratual, substituindo um dos contratantes primitivos, assumindo todos os seus direitos e deveres. […] o contrato-base é transferido, transmitindo-se ao cessionário todos os direitos e deveres dele decorrentes.” (in Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações 2. Vol. 17 . ed. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 440)
Do Superior Tribuna de Justiça convém elencar:
“A celebração entre as partes de cessão de posição contratual, que englobou créditos e débitos, com participação da arrendadora, da anterior arrendatária e de sua sucessora no contrato, é lícita, pois o ordenamento jurídico não coíbe a cessão de contrato que pode englobar ou não todos os direitos e obrigações pretéritos, presentes ou futuros, inclusive eventual saldo credor remanescente da totalidade de operações entre as partes envolvidas.
A cessão de direitos e obrigações oriundos de contrato, bem como os referentes a fundo de resgate de valor residual, e seus respectivos aditamentos, implica a transferência de um complexo de direitos, de deveres, débitos e créditos, motivo pelo qual se confere legitimidade ao cessionário de contrato (cessão de posição contratual) para discutir a validade de cláusulas contratuais com reflexo, inclusive, em prestações pretéritas já extintas.” (Resp 356.383 – SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado, 05 de fevereiro de 2002)
Desta egrégia Corte de Justiça elenca-se:
“Formalizada a cessão de contrato de financiamento, com a anuência da entidade financeira, é injustificável a continuidade do lançamento do valor das prestações do saldo devedor à débito do cedente, impondo-se a concessão de provimento judicial para fazer cessar tal procedimento e impedir iniciativas tendentes a criar restrições de crédito.” (Agravo de Instrumento n. 2001.025824-2, de Jaraguá do Sul. Rel. Des. Newton Janke)
Do corpo deste último aresto retira-se que “com a assinatura por todas as partes interessadas, a cessão contratual estava apta produzir todos os seus efeitos, especialmente o de desobrigar o agravante do pagamento das prestações do saldo devedor.”, assim, despiciendo falar que o cedente haverá de responsabilizar-se pelos débitos contratuais que faltam ser adimplidos.
Sobre a matéria já decidiu o tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“CONSÓRCIO. AQUISIÇÃO VEÍCULO DIVERSO. PREÇO. CESSÃO DE DIREITOS. DISCUSSÃO VALORES PAGOS. – Consórcio. Aquisição de bem distinto daquele referido no plano consorcial. Pretensão de coadunar as prestações a serem ofertadas no consórcio ao preço do veículo recebido. Impossibilidade. Tendo a autora adquirido bem, através de cessão de transferência de direitos e obrigações, aderindo, em substituição a terceiro, a todas as obrigações, incluídas nestas as prestações devidas, encontra-se devedora do lá pactuado, pouco importando o fato de ter optado e recebido bem diverso, posto que permitido pela legislação vigente. Sentença mantida. Apelo improvido. (TARS – AC 192.145.738 – 9ª CCiv. Rel. Juiz Breno Moreira Mussi – J. 08.09.1992)
E ainda:
“AÇÃO MONITÓRIA – CONSÓRCIO – Cobrança de parcelas em atraso. Cessão de direitos operada. Motivo que elide a responsabilidade do devedor originário. A demandante indiligente em seus negócios não tem o direito de exigir o pagamento de parcelas devidas de um consorciado que transferiu seus direitos a uma terceira pessoa e nem chegou a receber o bem consortil. Apelo improvido. (TJRS – AC 598192425 – RS – 14ª C.Cív. – Rel. Des. Aymore Roque Pottes de Mello – J. 08.10.1998)
A título de argumentação vale apontar que o Código Civil de 1.916 não disciplinou sobre a cessão de contrato, contudo, o novo Código Civil (Lei 10.406/2002), ao versar sobre a matéria disciplinou-a sob o título de “assunção de dívida” preconizando, no art. 299 “caput”, que:
“É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor ignorava.”
Ante o exposto, é conhecido o recurso, e negado provimento, revertendo-se os efeitos do efeito suspensivo ativo concedido.
III – DECISÃO
Ante o exposto, é conhecido o recurso, e negado provimento, revertendo-se os efeitos do efeito suspensivo ativo concedido.
Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Desembargador Fernando Carioni.
Florianópolis, 6 de maio de 2004.
Alcides Aguiar
PRESIDENTE COM VOTO
Marco Aurélio Gastaldi Buzzi
RELATOR.
* Acadêmicos de Direito da UFSC.
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EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA PARA A RECORRIDA FORNECER CARTA DE LIBERAÇÃO DO VEÍCULO NEGOCIADO – LIMINAR NÃO CONCEDIDA – CESSÃO DE CONTRATO QUE ENGLOBA A TOTALIDADE DOS DIREITOS E OBRIGAÇÕES – AUTOR QUE FIGURA COMO CESSIONÁRIO EM AJUSTE DE TRANSFERÊNCIA DE QUOTA DE CONSÓRCIO – PAGAMENTO DE TODAS AS PRESTAÇÕES – EXISTÊNCIA DE SALDO DEVEDOR DECORRENTE DO ATRASO DO ADIMPLEMENTO DAS PARCELAS CAUSADO PELO CEDENTE – DEVER DO RECORRENTE EM ARCAR COM O PAGAMENTO DO ALUDIDO QUANTUM – RECURSO NÃO PROVIDO.