Reexame de Sentença e Apelação Cível. Ação Ordinária de Indenização. Servidor temporário. Inconstitucionalidade da legislação estadual. Contrato administrativo. Possibilidade de rescisão. Conveniência da administração.
Fernando Machado da Silva Lima*
EGRÉGIA XXXXXXXX CÂMARA CÍVEL ISOLADA
PROCESSO : XXXXXXX
RECURSO: REEXAME DE SENTENÇA E APELAÇÃO CÍVEL
SENTENCIANTE: JUÍZO DE DIREITO DA XXª VARA CÍVEL DA COMARCA DA CAPITAL
SENTENCIADO/APELADO: XXXXXXXXXXX
SENTENCIADO/APELANTE: ESTADO DO PARÁ
RELATORA: EXMA. DESA. XXXXXXXXXXXXXXXX
PROCURADORA DE JUSTIÇA: XXXXXXXXXX
Ilustre Desembargadora Relatora:
Trata o presente do Reexame de Sentença e Apelação Cível nos Autos da Ação Ordinária de Indenização ajuizada contra o Estado do Pará por XXXXXXXXXXX, ex-servidor público temporário da Assembléia Legislativa do Estado do Pará.
Em síntese, os autos informam que:
1. XXXXXXXXXXXX ajuizou (fls.
2. O Estado do Pará apresentou Contestação (fls.
4. Ouvido sobre as Contestações, o Autor respondeu (fls. 109), dizendo que as razões da contestação em nada alteram os fundamentos da Inicial. Disse que não há necessidade de audiência e pediu o julgamento antecipado da lide.
5. O Ministério Público opinou (fls. 111-129), pela 1ª Promotoria de Justiça de Proteção dos Direitos Constitucionais e do Patrimônio Público. Relatou o processo. Citou Hely Lopes Meirelles. Citou a mesma legislação estadual já anteriormente referida. Citou jurisprudência. Citou opiniões da Ilustre Desembargadora Climenie Bernadette de Araújo Pontes e do culto Procurador de Justiça Luiz Ismaelino Valente, a respeito da admissibilidade jurídica da rescisão unilateral do contrato de trabalho do servidor temporário. A respeito do pedido de indenização referente à metade do tempo restante de contrato, disse que não é possível aplicar a norma federal. Citou doutrina. Quanto aos resíduos inflacionários, disse que também não tem direito o Autor. Citou jurisprudência e doutrina. Quanto ao pedido genérico, concordou com a Contestação, ressalvando porém o referente às férias proporcionais. Citou jurisprudência.
7. XXXXXXXX apelou (fls. 146-156). Insistiu na possibilidade de aplicação da legislação federal. Disse que o Autor teria direito à indenização prevista no § 2º do art. 12 da Lei 8745/93. Disse que a decisão contrariou também o art. 37 da Constituição Federal. Citou legislação trabalhista. Disse que a respeito de contrato temporário de trabalho, sempre se admitiu a aplicação da lei federal no âmbito estadual. Citou doutrina. Citou o art. 462 do Código de Processo Civil, para dizer que deve ser aplicado o § 5º do art. 169 da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional no. 19/98. Insistiu na questão do expurgo inflacionário. Citou o art. 24 da Constituição Federal. Disse que as normas estaduais não se podem sobrepor às normas gerais. Citou doutrina. Quanto às férias, disse que o cálculo constante da Sentença é incorreto, porque o recorrente quando foi dispensado já havia trabalhado 14 (quatorze) meses do prazo bienal de prorrogação do seu contrato.
8. O Estado do Pará apresentou Contra-Razões (fls. 164-169). Preliminarmente, alegou a falta de habilitação da advogada que subscreve o Recurso, pelo que não deve ser conhecida a Apelação. No mérito, aborda inicialmente o aspecto da discricionariedade da dispensa do servidor temporário. Citou a mesma legislação. Citou doutrina. Citou jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. Disse que descabe a aplicação da lei federal 8745/93. Disse que não cabem os pleitos alusivos aos planos econômicos. Nada falou a respeito do cálculo da proporcionalidade das férias, que o Apelante impugnou. Pediu a manutenção da Sentença.
9. Distribuído este Processo à Colenda Segunda Câmara Cível Isolada, veio a esta Procuradoria, para exame e parecer.
É o relatório. Esta Procuradoria passa a opinar:
Para Georges Scelle, o Federalismo se caracteriza juridicamente por duas leis: a primeira, a Lei de Participação e Colaboração das unidades membros ou das coletividades associadas, na constituição dos órgãos e agências federais e na elaboração das próprias decisões desses órgãos e agências federais. A segunda, a lei de autonomia, porque o que há no regime federativo não é subordinação. É cooperação, coordenação. Se houvesse subordinação, o regime não seria federal. Essas unidades seriam vassalas ou coloniais, em relação ao poder central. Sem autonomia, não há regime federal.
Essa autonomia significa auto-organização, auto-governo e auto-administração.
Auto-organização, porque cada Estado baixa sua própria constituição, que ele elabora e não a recebe do poder central, respeitando evidentemente os princípios fundamentais consagrados na Constituição Federal.
Auto-governo, no sentido de que cada Estado elege os seus órgãos de direção, Executivo e Legislativo.
Auto-administração, porque cada Estado-membro da Federação executa suas próprias leis, sem interferência do poder central.
A matéria está disciplinada no art. 25 da vigente Constituição Federal, verbis:
Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
O § 1º do mesmo art. 25 consagra o princípio da competência residual:
São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
No exercício de sua autonomia, o Estado do Pará editou as normas citadas, pertinentes à hipótese vertente, como a Lei 5378/89, a Lei Complementar no. 07/91 e a Lei Complementar no. 19/94. Tudo indica que as prorrogações dos contratos desses servidores temporários foram feitas ao arrepio da norma constante do inciso IX do art. 37 da vigente Constituição Federal, que exige necessidade temporária de excepcional interesse público, e serviram apenas para burlar a exigência do concurso público (Constituição Federal, art. 37, II), conforme doutrina que citaremos a seguir, do mestre Adilson Dallari.
A Mma. Juíza a quo afirma, às fls. 143, que
A administração pública, na qual se integra o Estado do Pará, enquanto pessoa jurídica de Direito Público Interno, no exercício de seu poder discricionário, pode não somente contratar, prorrogar e rescindir unilateralmente os contratos celebrados com os servidores temporários, antes mesmo do termo final nele prefixado, (grifamos) uma vez que essa função pública tem natureza transitória e não gera efetividade na função.
Cita, a seguir, decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado, no sentido de que o contrato temporário não gera direito à efetividade na função. Afirma, a seguir, que o princípio pacta sunt servanda não vigora, quando num dos polos figura a administração pública, em razão de que o interesse público sempre deve sobrepor-se ao interesse privado do contratante.
Esta Procuradoria diverge, em absoluto, desse entendimento da Ilustre Magistrada. A alegação é dessas, que o mesmo é expor que refutar, porque o fato de que o contrato seja temporário não significa que, uma vez assinado pela administração, não possua qualquer valor jurídico, e possa ser solenemente ignorado. Perguntaríamos, então: de que serve o contrato, afinal, se em relação a ele, não se aplica o tradicional princípio originário do Direito Romano?
A respeito do contrato administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello enfatiza o aspecto do equilíbrio econômico-financeiro, isto é, da relação de igualdade formada, de um lado, pelas obrigações assumidas pelo contratante no momento do ajuste e, de outro lado, pela compensação econômica que lhe corresponderá. Afirma ele que essa equação econômico-financeira é intangível e que a doutrina é unânime a respeito. Leciona o Autor:
Enquanto o particular procura o lucro, o Poder Público busca a satisfação de uma utilidade coletiva. Calha, pois, à Administração atuar em seus contratos com absoluta lisura e integral respeito aos interesses econômicos legítimos de seu contratante, pois não lhe assiste minimizá-los em ordem a colher benefícios econômicos suplementares ao previsto e hauridos em detrimento da outra parte. (grifamos) Para tanto, o que importa, obviamente, não é a aparência de um respeito ao valor contido na equação econômico-financeira, mas o real acatamento dele. De nada vale homenagear a forma, quando se agrava o conteúdo. O que as partes colimam em um ajuste não é a satisfação de fórmulas ou de fantasias, mas um resultado real, uma realidade efetiva que se determina pelo espírito da avença; vale dizer, pelo conteúdo verdadeiro do convencionado….O que preside os contratos em geral e o chamado contrato administrativo em particular é o reverencial respeito à intenção das partes, absorvidas em sua verdadeira substância, tal como surdiram no momento do ajuste. Daí que o equilíbrio concertado nesta ocasião é sobreposse relevante.
Ocorre que, pelo termo aditivo cuja cópia está às fls. 22 dos Autos, foi prorrogado até 31.12.95 o prazo de vigência do contrato de prestação de serviços do Apelante. Porém esse contrato, de 01.04.89 (fls. 11-12), exatamente por se tratar de contrato temporário, destinado originariamente apenas à prestação de serviços durante a elaboração da Constituição do Estado, dispõe claramente, em sua cláusula terceira, que poderá ser rescindido a qualquer tempo, por qualquer das partes, que notificará a outra com antecedência mínima de 5 (cinco) dias.
Não se trata, portanto, de negar a validade do princípio pacta sunt servanda, para a administração, porque o contrato é claro, e basta que seja cumprido.
Realmente, o contrato não poderia ter sido prorrogado, como acabou sendo, por quatro anos, conforme afirmado pela douta Procuradoria Geral do Estado, às fls. 53:
Como observa Celso Antonio Bandeira de Mello, ao comentar precisamente o inciso IX do art. 37 da Carta Magna de
No dizer de Adilson Dallari, também citado pela Douta Procuradoria, tal prática
serviria apenas, mais uma vez, para contornar a exigência de concurso público, do controle que deve ser exercido pelo Poder Legislativo, da qualidade dos serviços prestados à população e, por último, arruinando as finanças públicas e o controle orçamentário.
É juridicamente absurdo, porém, que o erro da administração seja invocado para negar eventuais direitos ao contratante temporário, hoje Apelante, porque a este não era dado examinar a legalidade , a conveniência administrativa ou a oportunidade daquele ato do qual resultou sua contratação, nem muito menos, daqueles que prorrogaram seu prazo de vigência.
Outra não é a opinião de Amaro Cavalcanti:
Em se tratando, por exemplo, de danos resultantes da inexecução de obrigações convencionais, ou de quaisquer outros atos dos quais resulte lucro para o Estado, a responsabilidade de indenização por parte deste é tida não como exceção, mas como regra irrecusável segundo os princípios gerais do direito. Com efeito, em relação aos casos ditos de “enrichessement sans cause”, bastaria a simples idéia da justiça, para combater a irresponsabilidade do Estado. – “Lucrum ex delictis sperare, impium est” – (Cod. De reb. cred.); – “Ex qua persona quis lucrum capit, ejus factum praestare debet” (Dig. Liv. 50, tít. 17, 149); – “Non debet quis lucrari ex alieno damno” (Ibidem, liv. 4º, tít. 3º, 28)….Em uma palavra, ao Estado, cuja missão institucional é declarar a lei, executá-la e aplicá-la, pelos seus órgãos distintos, não seria lícito pôr-se fora do alcance dos princípios gerais do direito comum, aliás, por ele próprio estabelecidos para o fim de regular os atos e fatos da ordem jurídica, e como condição, para que nela predomine a regra de justiça. Pois é manifesto que se a ele próprio não pudessem ser igualmente aplicáveis os princípios desse direito, também impossível seria a efetividade constante da justiça.
Assim, o que ocorre é que o Estado-Assembléia Legislativa, contratou o Apelante e irregularmente autorizou a assinatura dos aditivos, e agora, para contestar suas pretensões, simplesmente vem a juízo alegar que ele próprio, o Estado, agiu irregularmente e, por isso, não deve pagar. O Direito, que é antes de tudo bom senso, não pode dar guarida a tal pretensão. As normas administrativas são voltadas para dentro da própria administração, impondo deveres ao administrador da coisa pública e não ao particular, a quem, por óbvio, não cabe fiscalizar quando contrata com a administração pública, se esta agiu ou não dentro da lei, mesmo porque os atos da autoridade pública nascem com a presunção de legitimidade e legalidade.
Esta Procuradoria não concorda, assim, com a interpretação de que a transitoriedade da função autoriza a administração, em decorrência de seu poder discricionário, a rescindir unilateralmente o contrato, mesmo na sua vigência. A discricionariedade deve ser restrita, apenas, ao exame da conveniência e oportunidade da prorrogação do prazo de vigência desse contrato. Ocorre que se o próprio contrato dispõe, como no caso do Apelante, em sua cláusula terceira (fls. 11), que pode ser rescindido a qualquer tempo, caberá à administração decidir a respeito, tendo em vista a ocorrência, ou não, de necessidade temporária de excepcional interesse público.
Quanto ao pedido de fls. 137, para que sejam aplicadas ao caso sub judice as disposições do art. 169, §§ 3º e 5º da Constituição Federal, também não pode ser aceito. Primeiro, porque o § 3º prevê apenas que, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, serão exonerados os servidores não estáveis, tratando-se, conseqüentemente, de norma de eficácia contida, dependente da edição de lei complementar. Segundo, porque o Apelante já havia sido exonerado, há muito, e mesmo que se pretendesse aplicar retroativamente a disposição do § 5o, que prevê que
o servidor que perder o cargo na forma do parágrafo anterior fará jus a indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço, isso não teria cabimento, porque o § referido, o 4o, trata apenas do servidor estável.
Esta Procuradoria aceita a preliminar de falta de habilitação da advogada que subscreve o Apelo (fls. 164-165), tendo em vista as várias irregularidades apontadas pela Douta Procuradoria Geral do Estado em relação ao documento de fls. 135, pertinente ao substabelecimento de poderes.
Ex positis, este Órgão Ministerial manifesta-se pelo não conhecimento da Apelação e pela manutenção da sentença de primeiro grau.
É O PARECER.
Belém, novembro de 1999
* Professor de Direito Constitucional da Unama
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