Reexame de Sentença E Apelação Cível. Ação Ordinária de Cobrança. Contrato particular de empreitada. Obra pública. Contrato administrativo. Falta de processo licitatório. Obrigação da administração e não do particular.
Fernando Machado da Silva Lima*
EGRÉGIA XXXXXXXXXX CÂMARA CÍVEL ISOLADA
PROCESSO : XXXXXXX
RECURSO: REEXAME DE SENTENÇA E APELAÇÃO CÍVEL
SENTENCIANTE: JUÍZO DE DIREITO DA XXXXX VARA CÍVEL DA COMARCA DE BRAGANÇA
SENTENCIADO/APELANTE:MUNICÍPIO DE BRAGANÇA
SENTENCIADO/APELADO: XXXXXXXXXXX
RELATORA: EXMA. DESA. XXXXXXXXXXX
PROCURADORA DE JUSTIÇA: XXXXXXXXXXX
Ilustre Desembargadora Relatora:
Trata o presente da Ação Ordinária de Cobrança ajuizada por XXXXXXXX Construções Ltda. contra o Município de Bragança, em decorrência de Contrato Particular de Empreitada firmado para a construção, na Vila de Caratateua, de um cais de arrimo com cortina de retenção e um trapiche.
Em síntese, os autos informam que:
1. XXXXXXXXConstruções Ltda. ajuizou (fls.
2. A Impetrante, ora Apelada, alega, em sua exordial, a assinatura de contrato, anexado às fls.
3. Junta vistoria ad perpetuam rei memoriam e demais documentos comprobatórios do alegado.
4. O Município de Bragança apresentou Contestação (fls.
5. Em sua Réplica, de fls.
6. Às fls. 32, vem a Autora requerer seja dado prosseguimento ao feito, parado por mais de um ano.
7. Às fls. 36, o Município pede a nomeação de perito, a oitiva do sócio gerente da Autora, e a expedição de ofício ao Tribunal de Contas dos Municípios.
8. Às fls. 38 verso, o representante do Ministério Público requer seja determinado à Autora que comprove que o procedimento licitatório citado às fls. 8 foi efetuado.
9. Designada audiência para o dia 04.02.98 (fls. 39), foi finalmente realizada em 10.06.98 (fls. 55). O Município formulou quesitos para a prova pericial (fls. 56).
10. Em seu laudo de fls. 60, o perito concluiu que a obra foi realizada de acordo com o contrato, tendo sido encontradas diferenças apenas nas dimensões. Disse que os valores do contrato estão relativamente de acordo com os padrões da época. Juntou fotos.
11. Designada audiência para 12.08.98 (fls. 63), foi finalmente realizada em 24.02.99 (fls. 68). O advogado da Prefeitura diz que não pode negar a existência da obra, mas que o contrato está eivado de vícios, é nulo de pleno direito e assim o Município não pode pagar o débito. Pede a improcedência.
12. O MM. Juiz decide (fls.
13. O Município apela, às fls.
14. Em suas Contra-Razões (fls.
15. Distribuído o processo, veio a esta Procuradoria para exame.
É o relatório. Esta Procuradoria passa a opinar:
Pelo que consta dos Autos, não há mais o que discutir a respeito da materialidade da obra. A Apelada a concluiu, conforme alegado, e o valor previsto era o valor normal, na época, para uma obra desse tipo.
Também não resta dúvida de que a Prefeitura não pagou pelo trabalho realizado.
Hoje, as licitações são regidas pela Lei no. 8.666/93. Mas em
Esta Procuradoria também diverge, em absoluto, do alegado pela Prefeitura, às fls. 77-78, de que teria havido favorecimento no ato da contratação da Apelada. A alegação é dessas, que o mesmo é expor que refutar, porque se favorecimento houvesse, com certeza a Prefeitura teria ao menos pago o serviço, efetuado há mais de sete anos, ao em vez de pretender se beneficiar da obra realizada, sem a correspondente contraprestação.
A respeito do contrato administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello enfatiza o aspecto do equilíbrio econômico-financeiro, isto é, da relação de igualdade formada, de um lado, pelas obrigações assumidas pelo contratante no momento do ajuste e, de outro lado, pela compensação econômica que lhe corresponderá. Afirma ele que essa equação econômico-financeira é intangível e que a doutrina é unânime a respeito. Leciona o Autor:
Enquanto o particular procura o lucro, o Poder Público busca a satisfação de uma utilidade coletiva. Calha, pois, à Administração atuar em seus contratos com absoluta lisura e integral respeito aos interesses econômicos legítimos de seu contratante, pois não lhe assiste minimizá-los em ordem a colher benefícios econômicos suplementares ao previsto e hauridos em detrimento da outra parte. Para tanto, o que importa, obviamente, não é a aparência de um respeito ao valor contido na equação econômico-financeira, mas o real acatamento dele. De nada vale homenagear a forma, quando se agrava o conteúdo. O que as partes colimam em um ajuste não é a satisfação de fórmulas ou de fantasias, mas um resultado real, uma realidade efetiva que se determina pelo espírito da avença; vale dizer, pelo conteúdo verdadeiro do convencionado….O que preside os contratos em geral e o chamado contrato administrativo em particular é o reverencial respeito à intenção das partes, absorvidas em sua verdadeira substância, tal como surdiram no momento do ajuste. Daí que o equilíbrio concertado nesta ocasião é sobreposse relevante.
A obra pública é um fato administrativo, derivado sempre de um ato administrativo de quem ordena sua execução. O vício que possa causar a nulidade desse ato não poderá ser imputado, evidentemente, ao particular, ou à empresa contratada para a realização da obra pública. Assim, se a obra foi realizada, e o Município dela se beneficiou, tem a empresa construtora o direito de reivindicar o pagamento.
O documento público, tal como o contrato celebrado entre a Prefeitura Municipal de Bragança e a XXXXXXXXConstruções Ltda., em papel timbrado, com a assinatura do Sr. Antonio Pereira Barros, Prefeito Municipal, reconhecida em Cartório, é um documento com força probatória, representativo de um fato, destinando-se a conservá-lo para futuramente prová-lo.
A forma especial ou solene, estabelecida como requisito para a validade de determinados negócios jurídicos, visando a garantia da autenticidade desses negócios, facilitando sua prova e assegurando a livre manifestação da vontade das partes, não pode levar ao absurdo de invalidar o ato jurídico para fazer com que o Município deixe de pagar pela obra com a qual se beneficiou. Caberia, somente, a responsabilização administrativa do funcionário que indevidamente tivesse autorizado a obra, o que não ocorre na hipótese vertente, porque ficou comprovado nos Autos que o Município se beneficiou com a realização da obra objeto do contrato inquinado de nulidade.
Assim, a falta do processo licitatório ou do processo de dispensa da licitação, que tudo indica decorrer de culpa exclusiva da Prefeitura, não a pode eximir de adimplir com o pactuado, posto que a falta da assinatura de uma testemunha não impediu que o objeto daquele contrato, conforme sobejamente comprovado nos Autos, isto é, a construção do cais e do muro de arrimo, fosse concluído.
Outra não é a opinião de Amaro Cavalcanti:
Em se tratando, por exemplo, de danos resultantes da inexecução de obrigações convencionais, ou de quaisquer outros atos dos quais resulte lucro para o Estado, a responsabilidade de indenização por parte deste é tida não como exceção, mas como regra irrecusável segundo os princípios gerais do direito. Com efeito, em relação aos casos ditos de “enrichessement sans cause”, bastaria a simples idéia da justiça, para combater a irresponsabilidade do Estado. – “Lucrum ex delictis sperare, impium est” – (Cod. De reb. cred.); – “Ex qua persona quis lucrum capit, ejus factum praestare debet” (Dig. Liv. 50, tít. 17, 149); – “Non debet quis lucrari ex alieno damno” (Ibidem, liv. 4º, tít. 3º, 28)….Em uma palavra, ao Estado, cuja missão institucional é declarar a lei, executá-la e aplicá-la, pelos seus órgãos distintos, não seria lícito pôr-se fora do alcance dos princípios gerais do direito comum, aliás, por ele próprio estabelecidos para o fim de regular os atos e fatos da ordem jurídica, e como condição, para que nela predomine a regra de justiça. Pois é manifesto que se a ele próprio não pudessem ser igualmente aplicáveis os princípios desse direito, também impossível seria a efetividade constante da justiça.
O MM. Juiz de Direito Dr. José Torquato Araújo de Alencar, em sua Douta Decisão de fls. 70-72, afirma com propriedade que
…o Município, infringindo normas administrativas, teria contratado a obra. Para não pagar pela sua construção, simplesmente vem a juízo alegar que ele próprio agiu irregularmente e, por isso, não deve pagar. O Direito, que é antes de tudo bom senso, não pode dar guarida a tal pretensão. As normas administrativas concernentes ao procedimento licitatório são voltadas para dentro da própria administração, impondo deveres ao administrador da coisa pública e não ao particular, a quem, por óbvio, não cabe fiscalizar quando contrata com a administração pública, se esta agiu ou não dentro da lei, mesmo porque os atos da autoridade pública nascem com a presunção de legitimidade e legalidade.
E considerando-se que os vários ramos do Direito não constituem compartimentos estanques, mas são partes de um único sistema, pelo cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico, cabe, no mesmo sentido, a citação do art. 15 do Código Civil :
As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.
Diverso não tem sido o entendimento jurisprudencial, como se observa pelo Acórdão da Colenda Segunda Câmara Cível, cuja Ementa é transcrita às fls. 84 dos Autos, e que decidiu a favor do particular, dizendo que este não pode sofrer prejuízo no fornecimento de material para a Municipalidade, por negligência do Prefeito na formalização de despesa comprovadamente procedida.
Ex positis, esta Procuradoria de Justiça opina pelo conhecimento da Apelação e pelo seu improvimento, para que seja mantida in totum a respeitável Sentença a quo, por seus próprios fundamentos.
É O PARECER
Belém, novembro de 1999.
Procuradora de Justiça
* Professor de Direito Constitucional da Unama
Home page: www.profpito.com
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.