Visão Liberal

Goethe e a Modernidade

A leitura do livro DINHEIRO E MAGIA (Rio de Janeiro, Zahar, 2011), de autoria de Christoph Binswanger e com prefácio e posfácio de Gustavo Franco, traz
para a reflexão do leitor a atualidade do Fausto de Goethe. Estou convencido de que é impossível a correta interpretação dos fatos candentes da
atualidade, como a própria crise econômica, sem uma revisão atenta da obra do poeta alemão.  Binswanger fez uma abordagem muito original e interessante
da problemática econômica no Fausto, dando destaque especialmente à questão da moeda. Ele se perdeu, todavia, por dois motivos.

Em primeiro lugar, por não perceber que a metáfora alquímica tem sido usada desde a antiguidade para expressão da ânsia da rebelião do homem contra
Deus, da criatura contra o criador. Toda a prática alquímica é o registro desse inconformismo da criatura limitada pela sua condição.  Goethe registrou
o momento em que a mentalidade revolucionária (alquímica) alcançou o apogeu (e o poder) na modernidade. Alquimia é uma variante sofisticada do
satanismo. O poeta alemão pode, a seu tempo, usar de toda franqueza permitida para os que conseguem compreender sua linguagem. A Arcádia perseguida por
Fausto nada mais é do que o real transformado pela mente revolucionária, o recriar de Canaã com outro nome e o maná transformado em leite e mel. É o
delírio revolucionário supremo.

Em segundo lugar, ao corretamente associar a moeda fiduciária de curso forçado com o ouro alquímico Binswanger deixou de notar que esse salto
revolucionário é produto dos governantes e não dos empresários. Daí que o autor, assim como Gustavo Franco, identificar o homem fáustico com o
empresário, quando na verdade Fausto é a encarnação do governante. Só o governante, usando o poder de Estado, tem meios para “aperfeiçoar” a criação. A
modernidade é o momento histórico em que o Estado se eleva à condição divina, o substituto de Deus. Os empresários, assim como toda a gente, foram
escravizados pelo Estado moderno. O protótipo do homem fáustico é Lênin (e seus assemelhados), que quis criar o Homem Novo a partir da revolução, ele
que foi precedido por Robespierre.

A confusão talvez tenha origem no fato de o Ocidente estar sob processo revolucionário desde a II Guerra Mundial, em doses homeopática. O pós-guerra
conheceu o triunfo da social-democracia, essa revolução sem ruptura que prometeu a distribuição de renda e o bem-estar social a todos, em troca do uso
da moeda fiduciária e do endividamento público para pagar a sua obra alquímica de enriquecimento geral sem contrapartida de trabalho. No momento
estamos vendo que essa visão de Estado levou à grande crise que se instalou em toda parte e ninguém sabe como desatar o nó da crise. O fato é que
governos estão cortando o orçamento e desfazendo as promessas da social-democracia, mas há uma perigosa rebelião das massas acontecendo, seja pela
queda de governos, seja pelas greves gerais de protestos que se sucedem. A ameaça de ruptura política está no ar e o fedor dos anos Trinta do século
passado está em toda parte.

No Fausto de Goethe o papel-moeda é introduzido como pilhéria mefistofélica e a narrativa deságua na crise financeira. Goethe na verdade ridicularizou
o instrumento como farsa satânica. Lord Keynes é que transformará a pilhéria em coisa séria, depois da crise dos anos Trinta. O inglês, sim, é que foi
o teórico apologeta do homemfáustico, que se propôs a superar a crise e alcançar a prosperidade pelo uso do truque mefistofélico da emissão de moeda
sem lastro.

Importante observar que Binswanger passa ao largo das profundas questões trazidas pelo esteticismo inaugurado por Goethe, de profundas raízes racistas.
A Noite deWalpurgis Clássica é um canto que une a Alemanha com Esparta, uma associação que pretende colocar os germânicos como raça superior, abolindo,
com a licença poética de saltos milenares, a herança de Roma e do cristianismo para a Europa e a civilização. Um truque, como também é o truque de unir
Fausto com o fantasma de Helena. Na obscura cena do intercurso de ambos está apenas Mefistófeles travestido de fórquias. Ora, Fausto teve na verdade um
intercurso homossexual com Mefistófeles e disso nasceu Eufórion, uma personalidade doentia, inflada, que descreve antecipadamente a psicologia
alucinada de Hitler. Fausto é o cântico do delírio alemão e sua perdição. Veremos que apenas Thomas Mann, no seu Doutor Fausto, é que fará o acerto
literário dessa alucinação toda.

A mente revolucionária faz do dinheiro o bilhete de entrada na Segunda Realidade. A moeda, junto com o sistema jurídico descolado do Direito Natural,
molda a alucinada pseudo realidade que já havia sido notada por Cervantes no Dom Quixote. Interessante notar que Dom Quixote é o último cavaleiro
cristão, dando lugar a essa sinistra figura da modernidade, que é o Fausto, o doutor.

O poema de Goethe concentra toda a rebelião contra Deus: aceita a tese da predestinação de Calvino e a igualdade trazida pela Reforma e seu livre exame
das Escrituras, depois tomada como a base das revoluções, desde a Revolução Francesa. A modernidade pretende abolir por primeiro a hierarquia natural,
a começar pela instituída pelo mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas”. Goethe é o poeta desse delírio.

Os tempos que vivemos são os de acerto de conta com a modernidade. O que virá não sabemos. Ler Goethe ? e Binswanger ? é a trilha para que não sejamos
surpreendidos com os grandes fatos que estão por acontecer.

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias
coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor
da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. Goethe e a Modernidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/visao-liberal/goethe-e-a-modernidade/ Acesso em: 10 mar. 2025