Visão Liberal

As Benevolentes

“O genocídio moderno é um processo infligido à massas, pelas massas e para as massas”.

Jonathan Littell

O livro “As Benevolentes”, de Jonathan Littell, chegou ao Brasil em 2006 pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva. Recebeu inúmeras resenhas nos meios
de comunicação, todas laudatórias. Não há nada a reparar nesse grande romance de quase 900 páginas. Os superlativos abundam nas resenhas, com justa
razão. A melhor que li foi a do escritor Jessé de Almeida Primo, publicada na revista Dicta&Contradicta, que lhe convido a consultar, caro leitor.

O que me absorveu no romance é que o autor foi movido pela paixão que me move com o tema do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Tenho mergulhado nas
raízes o niilismo do século XX, que teve no nazismo um apogeu. Não é possível compreender a catástrofe moral sem buscar suas raízes primeiras e até
onde a minha vista pode alcançar elas estão na Reforma e no Renascimento, momentos do advento do “homem revolucionário” no mundo. Este homem deu as
costas para Deus e protagonizou a rebelião fáustica: na literatura sobre esse fascinante personagem é que podemos colher a pista sobre a origem e sobre
o seu fugaz triunfo nos regimes totalitários.

O homem fáustico teve em Goethe o seu poeta maior. Este alemão antecipou a sua psicologia, sua fome de glória e de terror. Em Goethe está delineada a
epopéia nazista. Hitler está contido no Euforion, esse ser inflado incapaz de amar e pronto para maltratar e estuprar quem estivesse pela frente.
Goethe descreu sua gênese pelo casamento do Fausto com Helena, essa forma plástica e poética de excluir qualquer influência de Roma e do cristianismo
da Europa onde, por um milênio e meio, a fé cristã triunfou. É uma refinada forma de dizer que o Deus de Moisés e Cristo estava morto. É de Goethe que
teremos o cântico mais soturno a Mefistófeles, ele que exaltará a negação como motor da história, idéia depois apropriada por Karl Marx para edificar a
mais sangrenta ideologia de todos os tempos.

Jonathan Littell tem portanto razões de sobra para ter recriado sua terrificante história com forma de tragédia grega. Não há dúvida que muito honrou
Thomas Mann, esse maior discípulo de Goethe e o mais anti-goethiano dos romancistas, ao menos no seu Doutor Fausto. Este livro é uma das evidentes
inspirações de Littell, pois nele está o diagnóstico do drama da modernidade: o doutor que vende a alma ao diabo em troca dos prazeres mundanos e do
poder. O personagem de Littell é doutor em Direito, recrutado para ser um oficial da SS, ou seja, um carrasco matador dos supostos inimigos do regimes.
Por primeiro os judeus, não sem antes ter começado pelos loucos, velhos e inválidos alemães. O objetivo último era matar todos que eram da seita
judaica, ou seja, o cristianismo. Na verdade, o racismo serviu de veículo para a sanha assassina contra toda a humanidade. O ódio demoníaco contra a
humanidade estampado com todas as letras.

O personagem principal, o doutor Maximiliano Aue, é uma síntese da deformação moral dos tempos. Incestuoso, homossexual, amoral, falta-lhe o menor
resquício de sentimento de culpa, embora tenha consigo esmerada formação humanista. Até a última ação do livro ele mata, por oportunismo e por
necessidade. E por instinto. Até seu único amigo é sacrificado covardemente, por motivo torpe.

Terminado o livro eu fui rever o filme A Queda – As Últimas Horas de Hitler, aclamado filme do diretor alemão Oliver Hirschbiegel, a recriação mais
realista e espantosa de como tudo se passou ao final. O que mais me espanta é que a elite intelectual e militar se curvou ao demagogo, sacrificando seu
discernimento e sua vontade, cumprindo sem constrangimento as ordens insensatas da hedionda figura de Hitler. Max Aue faz uma longa explanação de como
a vontade do Chefe torna-se a única fonte do Direito. Aqui o lapso mental a justificar a quebra da moralidade.

A irmã incestuosa de Max Aue é psicóloga, formada diretamente por Karl Jung. Outro símbolo aqui presente. Jung é aquele que tentou ver a psicologia
individual como passível de redenção pela Sombra, pelo mal. O psicólogo suíço é também filho dileto de Goethe. É outra maneira de afirmar o mal como o
motor da história. A minha conclusão é contrária a Goethe e a todos os seus filhos: do mal só pode vir o mal, dele não há redenção. Esta só pode vir de
Deus. A “obra” macabra do nazismo é a prova mais contundente dessa realidade. A mente revolucionária afirma essa sandice porque deu as costas para
Deus. Se este morreu, ou não existe, assume o seu lugar o triunfante Mefistófeles, o “demônio do Norte”. Jung, como Goethe, como Nietzsche: são todos
adoradores do Negador. E estavam errados, pela graça de Deus.

O livro foi escrito originalmente em francês e Littell provoca grande efeito nos leitores ao manter em alemão os títulos das patentes militares. Dá um
tom “alemão” ao livro em qualquer língua. Foi um recurso fantástico descoberto pelo autor.

Algumas passagem do livro são nauseantes, sobretudo aquelas em que cruamente são descritas as pulsões homossexuais do personagem, assim como os
assassinatos surpreendentes, como o da sua mãe e padastro. A narrativa dos massacres de judeus até chegar aos campos de concentração é também terrível
e é preciso estômago forte para agüentá-la. Lembrando que não é mera ficção, mas um relato fiel dos acontecimentos.

Em suma, Jonathan Littell consegue na obra descrever a loucura de um indivíduo isolado delirando em consonância com a delírio coletivo de todo um povo.
Um feito além do literário, uma síntese da psicologia e da antropologia, usando dos símbolos para executar uma narrativa artística. Embora
auto-evidentes, apenas o leitor atento poderá perceber a grande sofisticação do seu uso na narrativa. Por isso o livro é uma obra-prima, talvez a
primeira publicada como romance no século XXI.

Não é possível acabar a leitura indiferente. O livro renovou meu interesse pelo tema. Agora é preciso revisitar Goethe e Thomas Mann à luz de Littell.
Compreender “As Benevolentes” é literalmente compreender a modernidade e seu mergulhos nas trevas demoníacas. As massas, desamparadas de Deus, encarnam
o Beemoth bíblico. São lobos sedentos de sangue humano.

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias
coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor
da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. As Benevolentes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/visao-liberal/as-benevolentes/ Acesso em: 10 mar. 2025