Bruno de Oliveira Carreirão*
Dizem que o FONAJE é um fórum criado para aprovar enunciados interpretativos da Lei nº 9.099/95 e tentar padronizar os procedimentos em todo o território nacional. Na prática, o FONAJE é praticamente um poder constituinte paralelo, que edita enunciados que, dada a forma como são mencionados nas decisões, são aparentemente mais vinculantes que qualquer súmula de tribunal superior e, muitas vezes, absolutamente contrários à Lei nº 9.099/95 e, principalmente, ao Código de Processo Civil.
O Enunciado nº 20[1], por exemplo, estabelece que o comparecimento pessoal da parte nas audiências é obrigatório, mesmo que a Lei nº 9099/95 não faça essa exigência e o CPC permita à parte ser representada por procurador com poderes especiais para transigir.
Quando foi aprovado o Código de Processo Civil de 2015, o FONAJE tratou de se reunir para criar enunciados explicando porque o novo código não deveria ser aplicado ao Juizados Especiais. Daí surgiram enunciados esdrúxulos, como o Enunciado nº 165[2], que prevê que os prazos processuais nos juizados deveriam continuar sendo contados em dias corridos, mesmo sem nenhuma lei vigente prevendo a contagem dessa forma – a justificativa era principiológica, com base no princípio da celeridade (sim, porque é um fim de semana a mais no prazo que faz o processo demorar tanto, não é mesmo?). Esse enunciado, inclusive, ainda não foi cancelado, mesmo após a aprovação da Lei nº 13.728/18, que acresceu à Lei nº 9.099/95 o art. 12-A, que prevê expressamente a contagem em dias úteis no âmbito dos Juizados…
Aliás, a tal principiologia do “microssistema” dos Juizados é motivo para se ignorar diversas normas – inclusive constitucionais! O Enunciado nº 162[3], por exemplo, prevê que não é aplicável aos Juizados Especiais o art. 489 do CPC (aquele que prevê que a sentença deve ser fundamentada – o que, além de óbvio, decorre da própria Constituição Federal), por não se adequar as princípios norteadores do JEC. Ou seja, o processo é célere porque o juiz não fundamenta direito a decisão, mesmo que o cartório demore 3 meses só para juntar uma petição.
O FONAJE virou uma espécie de ideologia e o objetivo dos “fonajistas” parece ser manter uma suposta pureza dos Juizados Especiais contra uma “contaminação” do Código de Processo Civil e preencher as lacunas da Lei nº 9.099/95 por suas próprias vontades e caprichos.
Essa bagunça toda tem relação com o tema da coluna do mês passado: a insegurança jurídica. Os Juizados Especiais são um mar de insegurança jurídica, porque a Lei nº 9.099/95 é uma obra de ficção.
Pirâmide de Kelsen segundo o FONAJE
Uma mera folha de papel
Tudo começou quando, em 1995, o Congresso Nacional aprovou uma lei absolutamente incompatível com a realidade da prática forense: a Lei nº 9.099/95, que criou um procedimento que deveria ser realizado em uma única audiência (de conciliação, instrução e julgamento), que deveria ser realizada 15 após o protocolo da petição inicial e na qual já deveria ser proferida a sentença. É óbvio que isso nunca aconteceu.
A Lei nº 9.099/95 sempre foi uma “mera folha de papel”, como diria Lassalle[4], e, por isso, cada juiz de cada Juizado passou a tentar compatibilizá-la à realidade, o que fez com que cada Juizado tivesse o seu próprio procedimento. A insegurança jurídica que isso tudo gerou é evidente.
Como a lei foi pensada para uma realidade inexistente, ela se tornou evidentemente insuficiente para regular o que acontecia no mundo real. Por exemplo: cabe agravo no JEC? Essa questão não precisaria ser respondida se o procedimento fosse realizado em uma única audiência, pois sequer seriam proferidas decisões interlocutórias e muito menos seriam necessárias tutelas de urgência.
Daí surgiram as mais exóticas teorias, que ora consideravam que o Código de Processo Civil teria aplicação subsidiária, ora rejeitavam a aplicação do CPC por completo, por se tratarem os Juizados Especiais de um “microssistema” próprio.
Foi para dirimir essas controvérsias que foi criado em 1997 o Fórum Permanente de Coordenadores de Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, posteriormente rebatizado como FONAJE. O problema é que o FONAJE, ao invés de limitar-se a interpretar a lei, passou a criar suas próprias normas e, o que veio para esclarecer, confundiu ainda mais.
CPC/2015: Uma oportunidade perdida
É preciso reconhecer algo: os Juizados Especiais Cíveis falharam. Um procedimento que deveria ser simples e célere se arrasta por anos da mesma maneira que os processos das varas cíveis. Foi aberta uma grande porta para as mais diversas ações aventureiras, aproveitando-se do manto da gratuidade de custas em primeiro grau para tentar a sorte em litígios envolvendo valores consideráveis – é bom lembrar que o teto de 40 salários mínimos foi pensado em 1995, quando o salário mínimo era de R$ 100,00.
A própria existência do FONAJE é prova de que a Lei nº 9.099/95 não foi capaz de alcançar os seus objetivos e que os Juizados Especiais Cíveis precisam ser repensados. O problema é que não cabe aos juízes nem ao FONAJE repensar a lei.
Quando foi debatido o projeto que se transformou no Código de Processo Civil de 2015, pouco se falou sobre os Juizados Especiais. Perdeu-se a oportunidade de abandonar uma lei que nunca funcionou e trazer para dentro do código o procedimento dos Juizados, adequando-o à realidade e reduzindo consideravelmente a insegurança jurídica. Era o momento de repensar a função dos Juizados Especiais – e, por exemplo, se faz sentido uma ação de quase R$ 40.000,00 ser isenta de custas em primeiro grau.
Houve, na verdade, um movimento inverso: foi importada para o procedimento comum a infeliz prática de eficácia duvidosa da audiência de conciliação obrigatória no início do processo – tema que poderia render (e provavelmente em breve renderá) um texto só sobre ele. O CPC/2015 fez mudanças apenas tímidas na Lei nº 9.099/95, das quais não posso deixar de destacar uma louvável: a mudança da regra bizarra de que os embargos de declaração apenas suspendiam o prazo recursal.
De todo modo, se a Lei nº 9.099/95 precisa ser repensada e atualizada, os enunciados contra legem do FONAJE com certeza não são a via adequada para esse fim. Os Juizados Especiais Cíveis falharam e o FONAJE apenas contribui para que continuem falhando cada vez mais.
* Advogado, mestre em direito e eternamente inconformado em ter que explicar para os clientes que eles são obrigados a ir a audiências inúteis de 2 minutos por causa do maldito Enunciado nº 20 do FONAJE.
[1] ENUNCIADO 20 – O comparecimento pessoal da parte às audiências é obrigatório. A pessoa jurídica poderá ser representada por preposto.
[2] ENUNCIADO 165 – Nos Juizados Especiais Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua.
[3] ENUNCIADO 162 – Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95.
[4] LASSALLE, Ferdinand. O Que é uma Constituição? Belo Horizonte: Líder, 2002.