Pitacos de um Advogado Rabugento

A censura tem muitos nomes

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Bruno de Oliveira Carreirão*

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Os atos mais autoritários sempre são precedidos das justificativas retóricas mais nobres. Foi em nome de valores tidos por superiores, como democracia, moralidade, bons costumes, justiça social e bem-estar geral, que se cometeram as maiores atrocidades da humanidade.

O censor nunca vai classificar seu próprio autoritarismo como censura. Sempre haverá uma justificativa virtuosa para denominar o ato, como “proteção da integridade”, “garantia da ordem pública” ou – como parece ser a favorita da vez – “combate à desinformação”. Porém, como diria Julieta no clássico de William Shakespeare: “Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume”[1].

A escalada para o momento atual era previsível. Escrevi aqui na coluna, em momento anterior, sobre os abusos cometidos pelo Poder Judiciário no famigerado Inquérito das Fake News e sobre os perigos de o Estado pretender ter o monopólio da verdade[2] – para resumir, basta dizer que talvez a pandemia da COVID-19 pudesse ter sido evitada se o médico que descobriu o vírus e tentou alertar as autoridades não tivesse sido censurado e encarcerado pelo Governo Chinês.

A situação se reveste de ainda maior gravidade em um contexto eleitoral, quando o Tribunal Superior Eleitoral parece se esforçar para convencer a opinião pública de que adotou um dos candidatos em disputa e está tomando medidas para tentar garantir a sua vitória. Depois de meses com campanhas educativas atestando a lisura do processo eleitoral e a segurança das urnas eletrônicas, é no mínimo irônico que a mesma Justiça Eleitoral esteja fornecendo munição em larga escala para aqueles eventualmente descontentes com o resultado das eleições e interessados em questionar a sua validade.

Os casos aberrantes que demonstram a atual sanha autoritária do TSE são muitos, mas alguns exemplos são especialmente ilustrativos. Um dos mais anedóticos foi a decisão que suspendeu a veiculação de propaganda eleitoral que continha trecho de entrevista com o Min. Marco Aurélio Mello, em que ele afirmou que o Supremo Tribunal Federal jamais inocentou Luiz Inácio Lula da Silva de suas acusações criminais, tendo apenas anulado os processos e determinado o seu retorno a instância inferior[3]. Ou seja: para o TSE, a opinião jurídica a respeito de um julgamento de um ex-ministro do STF, que inclusive participou do próprio julgamento, é “desinformação”.

Outra decisão exótica foi a determinação de remoção de vídeo que retrata fatos que os próprios ministros admitiram como verdadeiros, mas que poderiam levar a “falsa conclusão”[4]. No julgamento, inclusive, foi criado um novo conceito que, de tão ridículo, parece ser ele próprio uma fake news: “desinformação de segunda geração”. Assim, o TSE decidiu que pode tutelar a inteligência alheia, ao escolher a quais conclusões se pode chegar a respeito dos fatos.

Para demonstrar sua onipotência, o TSE até mesmo adotou a futurologia como suas razões de decidir. Nesta semana, o tribunal proibiu a veiculação de um documentário que ainda sequer foi lançado e cujo conteúdo ainda é desconhecido, por considerá-lo como peça de propaganda eleitoral irregular. Trechos citados em matéria da Gazeta do Povo[5] do voto do Min. Ricardo Lewandowki dão o tom da antevisão da Justiça Eleitoral:

Em seu voto, Lewandowski disse que “situações excepcionais exigem medidas excepcionais” e que a decisão é “heterodoxa, mas compatível com a situação que vivemos”. Ele citou a ação do PT segundo a qual existiria um “ecossistema de desinformação” para “atacar” Lula na campanha. “Já se está se antevendo que essas veiculações têm caráter de ilícito eleitoral. E ninguém aqui é ingênuo, somos juízes que não têm venda sobre os olhos. Estamos todos cientes que essas atitudes que agridem a legislação eleitoral vão se repetir”, afirmou.

Mais grave ainda foi a decisão que restringiu a cobertura das eleições de um veículo jornalístico inteiro, ao proibir que assuntos relacionados às condenações criminais do candidato Luiz Inácio Lula da Silva sejam abordados[6]. Assim, a pretexto de combater desinformação pretérita, até mesmo os futuros eventuais comentários dos jornalistas da emissora a respeito do assunto estão vetados. Apesar de o título deste texto afirmar que a censura tem vários nomes, seria exigida criatividade extraordinária para classificar essa decisão com outro nome que não seja censura prévia.

Para coroar a cruzada censória, o Tribunal Superior Eleitoral acaba de aprovar, por singela resolução, a possibilidade de remover conteúdos considerados desinformativos de ofício, sem qualquer provocação[7]. Provavelmente satisfeito com os resultados obtidos no Inquérito das Fake News – do qual o atual Presidente do TSE, sem nenhuma coincidência, é o relator –, o Min. Alexandre de Moraes quer repetir a experiência de concentrar as funções de acusar, processar, julgar e executar, que daria inveja a qualquer obra de ficção distópica[8].

O que infelizmente não me surpreende é que toda essa saga autoritária da Justiça Eleitoral ocorra sob os mais efusivos aplausos dos juristas ditos garantistas e defensores da democracia que, satisfeitos diante da sistemática sabotagem judicial ao adversário do candidato de sua predileção, comparecem às redes sociais e à mídia com os mais mirabolantes malabarismos argumentativos para tentar justificar a censura. Afinal, quando o inimigo eleito é caracterizado como “fascista”, “nazista”, “desumano”, dentre outros adjetivos hiperbólicos, não há limites para a “batalha”, pois se pretende heroica – mesmo que em prejuízo da própria coerência intelectual.

Por isso, não me surpreende que alguns dos direitos fundamentais mais caros ao Estado Democrático de Direito, como a liberdade de expressão e liberdade de imprensa, sejam sumariamente sacrificados em nome de um “bem maior”. Como já escrevi por aqui anteriormente, no Brasil, a liberdade de expressão não é princípio, mas sim instrumento de guerra política[9]. O relevante não é o conteúdo do discurso, mas sim quem é seu emissor. Sendo um inimigo, a censura é considerada válida – mas, claro, sempre com outro nome.



* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e, por enquanto, ainda não foi alvo de censura.



[1] SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. 2ª Edição. São Paulo: LL Library, 2015, p. 40.

[2] “Não queremos um Ministério da Verdade!”:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337983-nao-queremos-um-ministerio-da-verdade

[3] “TSE censura fala de Marco Aurélio em programa de Bolsonaro”:  https://oantagonista.uol.com.br/brasil/tse-censura-fala-de-marco-aurelio-em-programa-de-bolsonaro/

[4] “TSE manda remover conteúdo do Brasil Paralelo com desinformações contra Lula!”:  https://www.jota.info/eleicoes/tse-manda-remover-conteudo-do-brasil-paralelo-com-desinformacoes-contra-lula-13102022

[5] “TSE confirma veto a documentário da Brasil Paralelo e ministros negam censura”:  https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/tse-confirma-veto-a-documentario-da-brasil-paralelo-e-ministros-negam-censura/

[6] “TSE restringe cobertura eleitoral de emissora de TV”:  https://www.cnnbrasil.com.br/politica/tse-restringe-cobertura-eleitoral-de-emissora-de-tv/

[7] “TSE aprova resolução para dar mais efetividade ao combate à desinformação no processo eleitoral”:  https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/tse-aprova-resolucao-para-dar-mais-efetividade-ao-combate-a-desinformacao-no-processo-eleitoral

[8] A referência sempre pertinente é a de Judge Dredd, personagem dos quadrinhos que, em um futuro pós-apocalíptico, acumula as funções de autoridade policial, juiz e executor.

[9] “Admitam: vocês não gostam de liberdade de expressão”:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337712-admitam-voces-nao-gostam-de-liberdade-de-expressao

 
 
 
 

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. A censura tem muitos nomes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/a-censura-tem-muitos-nomes/ Acesso em: 21 nov. 2024