“Art. 6º Ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, observando sempre os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência”.
Segundo o entendimento tradicional, o juiz primeiro interpreta e depois aplica a lei.
Lenio Streck desconstrói esse raciocínio (Verdade e Consenso, 3ª edição, Lumen Juris). A atividade hermenêutica é muito mais complexa do que se pensa, e as etapas não podem ser simplesmente separadas, como se fossem atividades estanques, ou seja, é incorreto afirmar que quando uma começa a outra necessariamente terá encerrado.
Na verdade, a atividade da interpretação acaba ocorrendo concomitantemente com a aplicação. Contudo, como o objetivo aqui é apenas comentar o texto do Projeto, não vamos nos aprofundar nessa questão.
Interpretar a norma significa determinar seu conteúdo e alcance. A bem da verdade, como lembra Humberto Ávila (Teoria dos Princípios, Malheiros, SP), a norma não é o objeto, mas sim o resultado da interpretação, o sentido construído a partir da interpretação sistemática de textos normativos.
Há diversos métodos de interpretação da norma jurídica que também podem ser estendidos à norma processual. Assim, de maneira resumida, podemos classificá-los em:
a) Literal ou gramatical: como o próprio nome já diz, leva em consideração o significado literal das palavras que formam a norma. O intérprete utiliza-se, tão-somente, de sua sintaxe. Em virtude de sua precariedade, consiste em pressuposto interpretativo mais que um método propriamente dito.
b) Sistemático: a norma é interpretada em conformidade com as demais regras do ordenamento jurídico, que devem compor um sistema lógico e coerente. Um dos aspectos mais importantes desse método reside na relação entre a Constituição e as leis infraconstitucionais. A coerência do sistema estabelece-se a partir da Constituição. Isso significa que a interpretação da lei infraconstitucional está condicionada pela intepretação da Constituição, como veremos a seguir.
c) Histórico: a norma é interpretada em consonância com os seus antecedentes históricos, resgatando as causas que a determinaram.
d) Teleológico: objetiva buscar o fim social da norma, a “mens legis”, conforme determina o art. 5º, LICC. Diante de duas interpretações possíveis, o intérprete deve optar por aquela que melhor atenda às necessidades da sociedade.
e) Comparativo: baseia-se na comparação com os ordenamentos estrangeiros, buscando no direito comparado subsídios à interpretação da norma.
Tais métodos, de forma isolada, são insuficientes para permitir a completa e adequada exegese da norma, sendo necessária, portanto, a sua utilização em conjunto.
Conforme o resultado alcançado, a atividade interpretativa pode ser classificada em:
a) declarativa – atribuindo à norma o significado de sua expressão literal;
b) restritiva – limitando a aplicação da lei a um âmbito mais estrito, quando o legislador disse mais do que pretendia;
c) extensiva – conferindo-se uma interpretação mais ampla que a obtida pelo seu teor literal, hipótese em que o legislador expressou menos do que pretendia;
d) ab-rogante – quando conclui pela inaplicabilidade da norma, em razão de incompatibilida de absoluta com outra regra ou princípio geral do ordenamento.
Além dos métodos de interpretação, não podemos esquecer os chamados meios de integração. Com o advento do Código francês de Napoleão, em 1804, institui-se a importante regra de que o magistrado não mais poderia se eximir de aplicar o direito, sob o fundamento de lacuna na lei. Tal norma foi seguida pela maioria dos códigos modernos, sendo também positivada em nosso ordenamento.
Dessa forma, o art. 126 do atual CPC, preceitua a vedação ao non liquet, isto é, proíbe que o juiz alegue lacuna legal como fator de impedimento à prolação da decisão.
Para tanto, há de se valer dos meios legais de colmatagem de lacunas, previstos no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, a saber: a analogia (utiliza-se de regra jurídica prevista para hipótese semelhante), os costumes (que são fontes da lei) e os princípios gerais do Direito (princípios decorrentes do próprio ordenamento jurídico).
Ressalte-se, por fim, que interpretação e integração têm funções comunicantes e complementares, voltadas à revelação do direito. Ambas possuem caráter criador e permitem o contato direto entre as regras de direito e a vida social.
Ocorre que, tendo como premissa o neoconsitucionalismo, tais métodos e resultados, ainda que auxiliados pelos meios de integração, não podem mais ser avaliados independentemente do Texto Constitucional.
Dessa forma, Luis Roberto Barroso, em artigo publicado em Migalhas (Transformações da Interpretação Constitucional nos Países de Tradição Romano-Germânica, em http://www.migalhas.com.br, edição de 27 de fevereiro de 2010, a partir de conferência proferida em Poitiers, França), afirma que a interpretação constitucional necessita de outros parâmetros, a saber:
1. a superioridade hierárquica (nenhuma norma infraconstitucional pode existir validamente se for incompatível com uma norma constitucional);
2. a natureza aberta da linguagem (ordem pública, igualdade perante a lei, dignidade da pessoa humana, razoabilidade-proporcionalidade, moralidade);
3. o conteúdo específico (organização dos Poderes, definição de direitos fundamentais e normas programáticas, estabelecendo princípios ou indicando fins públicos);
4. o caráter político (a constituição é o documento que faz a interface entre a política e o direito, entre o poder constituinte e o poder constituído).
Ainda de acordo com Barroso (Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil), tais peculiaridades levaram ao desenvolvimento de princípios específicos para a interpretação constitucional, que funcionam como premissas conceituais da interpretação constitucional. Tais princípios são os seguintes:
(i) Princípio da supremacia da Constituição;
(ii) Princípio da presunção de constitucionalidade das leis;
(iii) Princípio da interpretação conforme a Constituição, o qual é operacionalizado por meio de três grandes mecanismos:
a) Adequação do sentido da norma infraconstitucional à Constituição;
b) Declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, o que significa a declaração de inconstitucionalidade de um sentido possível da norma, ou mais tecnicamente, de uma norma extraída de determinado enunciado normativo; e
c) Declaração da não-incidência da norma infraconstitucional a determinada situação de fato, sem declaração de inconstitucionalidade.
(iv) Princípio da unidade;
(v) Princípio da razoabilidade-proporcionalidade;
(vi) Princípio da efetividade.
Esses parâmetros hoje devem ser observados por todos os ramos do direito, inclusive o direito processual (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional – o modelo constitucional do processo civil brasileiro), sob pena de se violar as garantias constitucionais básicas e, com isso, inviabilizar o processo justo (Comoglio, Ferri e Taruffo, Il Giusto Processo).
Completando esse raciocínio, no modelo tradicional, ou seja, positivista, o papel do juiz era o de tão somente descobrir e revelar a solução contida na norma; em outras palavras, como ressalta Barroso (Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática), formulava juízos de fato e não de valor.
Agora, no modelo pós-positivista, o magistrado deve estar preparado para constatar que a solução não está integralmente na norma, o que demanda um papel criativo na formulação da solução para o problema. Ele se torna, assim, co-participante do papel de produção do direito, mediante integração, com suas próprias valorações e escolhas, das cláusulas abertas constantes do sistema jurídico.
Em razão dessa nova postura, como adverte Marinoni (O Precedente na Dimensão da Igualdade, disponível em http://www.professormarinoni.com.br) é fundamental que o juiz fundamente adequadamente suas decisões.
Esta fundamentação deve ser analítica (Eduardo Campi, Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo), ou seja, o julgador deve expor não apenas o fundamento de sua decisão, mas o que costumamos chamar do fundamento do fundamento, ou seja, as razões que levaram o juiz a fazer aquela interpretação, a optar por aquele caminho, quando tinha outras alternativas. O motivo pelo qual aquela providência lhe pareceu mais apropriada do que as demais, diante do caso concreto.
Voltando ao texto de Barroso (Transformações da Interpretação Constitucional nos Países de Tradição Romano-Germânica), a necessidade da adoção de Princípios na atividade hermenêutica se faz necessária justamente em razão dessa “discricionariedade” do intérprete. Isto torna toda a atividade mais complexa e os fenômenos mais comuns são:
(a) o emprego de cláusulas gerais pelo Constituinte, sob a forma de princípios jurídicos indeterminados, aliado ao fato da força normativa dos próprios princípios, que passam a ser aplicados diretamente ao caso, independentemente de norma infraconstitucional (Marinoni, Teoria Geral do Processo, cap. 1).
(b) a colisão de normas constitucionais
(c) a ponderação, entendida como técnica utilizada nos casos em que a subsunção não é suficiente. Será necessária para resolver os chamados “casos difíceis” nas hipóteses que envolvam ou a colisão de normas constitucionais ou quando se verificar um “desacordo moral razoável”.
(d) argumentação jurídica: na medida em que a decisão judicial para a envolver uma atividade criadora do Direito, o juiz precisa demonstrar que a solução dada por ela ao caso concreto é a que realiza de maneira mais adequada a vontade constitucional.
Nessa linha de raciocínio, é de se observar que o próprio artigo 6º do Projeto do CPC determina que o magistrado, ao aplicar a lei, observe sempre os Princípios da
(a) dignidade da pessoa humana,
(b) razoabilidade,
(c) legalidade,
(d) impessoalidade,
(e) moralidade,
(f) publicidade; e
(g) eficiência
Parece uma tentativa de positivar princípios que tornem mais clara toda essa complexa atividade do juiz.
* Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Promotor de Justiça no RJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ e na UNESA. Acesse: http://humbertodalla.blogspot.com/