O artigo 3º do PL 166/10 está assim enunciado:
“Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, ressalvados os litígios voluntariamente submetidos à solução arbitral, na forma da lei”.
A redação repete o princípio insculpido no artigo 5º, inciso XXXV da Carta de 1988, com a ressalva da arbitragem, que não é disciplinada no Projeto, e continua regulada pela Lei nº 9.307/96.
A arbitragem consiste na solução do conflito por meio de um terceiro, escolhi do pelas partes, com poder de decisão, segundo normas e procedimentos aceitos por livre e espontânea vontade das partes (Ver o nosso Teoria Geral do Processo, 3a edição, cap 25)
Nas palavras do saudoso Desembargador Cláudio Viana de Lima (Arbitragem: a solução. Rio de Janeiro: Forense, 1994), ” é a prática alternativa, extra judiciária, de pacificação de conflitos de interesses envolvendo os direitos patrimoniais e disponíveis, fundada no consenso, princípio universal da autonomia e da vontade, através da atuação de terceiro, ou de terceiros, estranhos ao conflito, mais de confiança e escolha das partes em divergência”.
Como se vê, a arbitragem é um procedimento fora da jurisdição; ela não se coloca nem abaixo nem acima, mas ao lado; é um procedimento paraestatal.
A arbitragem, como se costuma dizer, é um degrau a mais em relação à mediação, especificamente à mediação ativa, pois o árbitro, além de ouvir as versões das partes, além de tentar uma solução consensuada, além de interagir com essas partes, deverá proferir uma decisão de natureza impositiva, caso uma alternativa conciliatória não seja alcançada.
Vemos, então, que a crucial diferença entre a postura do árbitro e a postura do mediador é que o árbitro tem efetivamente o poder de decidir, ao passo que o media dor tem um limite: ele pode sugerir, ele pode admoestar as partes, ele pode tentar facilitar aquele acordo, mas ele não pode decidir aquela controvérsia.
Qual seria a distinção entre a função do árbitro e a do juiz togado?
É certo que o legislador quis transferir ao árbitro praticamente todos os poderes que o juiz de direito detém. O legislador, na Lei nº 9.307/96, chega mesmo a afirmar textualmente, no artigo 18, que o árbitro é juiz de fato e de direito e a sentença que ele proferir não fica sujeita a recurso ou à homologação pelo Poder Judiciário.
Esse dispositivo está em perfeita consonância com o artigo 475-N, inciso IV, do Código de Processo Civil, que diz ser a sentença arbitral um título executivo judicial.
Ou seja: por força imperativa de Lei, um título que originalmente não é oriundo de um processo jurisdicional, passa a ser tratado e equiparado a uma sentença.
Assim se vê que o legislador deixa claro que tudo aquilo que foi examinado e decidido no procedimento arbitral recebe o mesmo tratamento das matérias que foram exami na das e decididas num procedimento jurisdicional.
Uma vez aberto o processo de execução elas não podem ser argüi das pela parte inconformada.
Mas, volte mos ao ponto inicial do raciocínio, ou seja, o quantum de poder do juiz e do árbitro.
Uma das características principais da jurisdição é a coercibilidade.
O juiz, no exercício de seu mister, tem o poder de tor nar coercíveis suas decisões, caso não sejam cumpri das voluntariamente. Ele julga e impõe sua decisão.
O árbitro, assim como o juiz, julga. Ele exerce a cognição, avalia a prova, ouve as partes, determina providências, enfim, preside aquele processo. Contudo, não tem ele o poder de fazer valer suas decisões.
Em outras palavras, se uma decisão do árbitro não é voluntariamente adimplida, não pode ele, de ofício, tomar providências concretas para assegurar a eficácia concreta do provimento dele emanado. A parte interessada tem que recorrer ao Judiciário (há posições no sentido de que a legitimidade seria do árbitro, porém não vamos entrar nessa questão aqui). O fato é que o legislador, que teve lá suas boas razões, não quis transferir a coertio ao árbitro.
É bem verdade que se, de um lado a opção legislativa representa um problema à efetivação da decisão arbitral, por outro, mantém o sistema de freios e contrapesos e a própria harmonia entre as funções do Estado, impedindo a transferência de uma providência cogente, imperativa, a um particular, sem uma forma adequada de controle pelos demais poderes constituídos, o que acabaria por vulnerar o próprio Estado Democrático de Direito.
A Arbitragem, apesar de já fazer parte de nosso ordenamento desde o Código Comercial de 1850, teve sua sistematização modernizada pela referida Lei nº 9307/93.
Alguns pontos dessa Lei foram questionados em argüição incidental de inconstitucionalidade nos autos de homologação de sentença estrangeira, que tramitou pelo STF por mais de cinco anos. Após intensos debates, o Pretório decidiu, por maioria, pela constitucionalidade desses dispositivos, garantindo a efetividade da arbitragem no ordenamento brasileiro. Assim ficou redigida a ementa do julgado (SE 5.206-Espanha (AgRg), Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. em 12.12.2001. Informativo nº 254 do STF):
“Concluído o julgamento de agravo regimental em sentença estrangeira em que se discutia incidentalmente a constitucionalidade da Lei 9.307/96 – Lei de Arbitragem (v. Informativos 71, 211, 221 e 226). O Tribunal, por maio ria, declarouconstitucional a Lei 9.307/96, por considerar que a manifestação de vonta de da parte na cláusula com promissória no momento da celebração do contrato e a permissão dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar compromisso não ofendem o art. 5º, XXXV, da CF (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”). Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, relator, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, que, ao tempo em que emprestavam validade constitucional ao compromisso arbitral quando as partes de uma lide atual renunciam à via judicial e escolhem a alternativa da arbitragem para a solução do litígio, entendiam inconstitucionais a pré via manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória – dada a indeterminação de seu objeto – e a possibilidade de a outra parte, havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, recorrer ao Poder Judiciário para compelir a parte recalcitrante a firmar o compromisso, e, conseqüentemente, declaravam, por violação ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário, a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei 9.307/96: 1) o parágrafo único do art. 6º; 2) o art. 7º e seus parágrafos; 3) no art. 41, as novas redações atribuídas ao art. 267, VII, e art. 301, inciso IX, do Código de Processo Civil; 4) e do art. 42. O Tribunal, por unanimidade, proveu o agravo regimental para homologar a sentença arbitral”.
O ponto central da discussão dizia respeito à autonomia da cláusula compromissória, ou seja, o pacto de arbitragem, feito antes do surgimento do litígio. Pela letra da Lei, declarada constitucional pelo STF, ainda que por maioria, a recusa em cumprir a cláusula daria ensejo ao ajuizamento de demanda especial, com o objetivo de obter em juízo o suprimento judicial da vontade não manifestada (realização da arbitragem).
Discutiu-se se não se trataria de uma mera cláusula de conteúdo obrigacional, que deveria resolver-se em perdas e danos apenas, não ensejando a obrigatoriedade da utilização da solução arbitral em detrimento da solução jurisdicional, sobretudo diante dos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Carta de 1988.
Contudo, prevaleceu o entendimento de que a livre manifestação de vontade, a previsibilidade das conseqüências do ato e a existência de uma Lei clara sobre a matéria seriam suficientes para afastar qual quer alegação de inconstitucionalidade.
A questão foi ainda discutida sob o ângulo da autonomia da sentença arbitral e a desnecessidade de sua homologação pelo Poder Judiciário, na forma do artigo 31 da Lei nº 9.307/96.
Os principais argumentos utilizados para questionar a inconstitucionalidade eram os seguintes:
a. impossibilidade de alguém ser processa do ou sentencia do, senão pela autoridade competente (art. 5º, LIII, CF);
b. subtração do juiz natural das partes (art. 5º, XXXVIII, CF);
c. subtração do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) e
d. acesso às vias recursais (art. 5º, LV, CF).
A tese da inconstitucionalidade, mesmo antes de ser derrota da no seio do Supremo Tribunal Federal, já era minoritária em sede doutrinária.
Joel Dias Figueira Júnior (Manual de Arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997), já enumerava os seguintes fundamentos para o reconhecimento da constitucionalidade dos dispositivos legais:
a. O acesso à jurisdição esta tal não deixa de estar garanti do às par tes. Pelo contrário, está expressamente permitido no art. 33. Caberá à parte interessada demandar ao Judiciário a anulação da sentença arbitral ou interpor embargos à execução (art. 33, § 3º, da Lei nº 9.307/96 c/c art. 741 do CPC), sempre que haja ocorrido nulidade (art. 32) ou alguma das circunstâncias do art. 20, §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.307/96);
b. A execução forçada da sentença somente se dá através da provocação da jurisdição estatal, por que decisão é título executivo judicial, conforme art. 584, III, do CPC c/c art. 41 da Lei nº 9.307/96; (Atente-se ao fato de que hoje o art. 584 encontra-se revoga do pela Lei 11.232/05. A norma passou a estar contida no artigo 475-N do CPC).
c. A efetivação das tutelas de urgência acautelatórias, antecipatórias e inibitórias ou coercitivas somente poderão ser efetiva das pelos juízes togados, pois falta aos árbitros a executio.
d. Surgindo questão que verse sobre direi tos indisponíveis, o árbitro deverá suspender o procedimento arbitral, remetendo as partes às vias ordinárias até que se resolva a questão (art. 25 e parágrafo único);
e. Caberá ao Poder judiciário decidir a respeito da instauração do juízo arbitral quando houver cláusula compromissória e resistência de um dos litigantes em cumpri-la (art. 7º);
f. Os laudos arbitrais estrangeiros estarão sempre sujei tos à homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 35, observado o disposto na Emenda Constitucional nº 45/04 que transferiu essa competência do STF para o STJ).
Como última observação ao artigo 3º do Projeto, devemos dizer que não apenas a arbitragem, mas também a mediação (art. 134 do Projeto), desde que observados os requisitos objetivos e subjetivos, na modalidade prévia e extrajudicial, pode ser utilizada como mecanismo de solução alternativa de conflitos, sem que haja qualquer comprometimento da Garantia Constitucional.
Comentaremos a mediação e a conciliação quando chegarmos ao referido art. 134. Por enquanto, remetemos o leitor ao nosso Teoria Geral da Mediação, Lumen Juris, 2007.
* Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Promotor de Justiça no RJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ e na UNESA