Bruno de Oliveira Carreirão*
Esse certamente não era um assunto que eu gostaria de abordar como o primeiro deste ano aqui na coluna, mas a tragédia ocorrida em Blumenau/SC na semana passada me atingiu em cheio e me deixou profundamente revoltado – principalmente depois que tomei conhecimento de que o autor do crime já teve diversas passagens pela polícia, desde 2016, por motivos que vão desde a posse de drogas até o fato de ter esfaqueado seu padrasto (!)[1].
Um colunista aqui de Santa Catarina, em um texto intitulado “Perdão, crianças”[2] – cuja leitura recomendo –, tocou em um ponto fundamental: de alguma forma nós falhamos, pois não conseguimos proteger essas crianças. O sujeito deu todos os indicativos de que era perigoso e o Estado teve diversas oportunidades de segregá-lo para evitar que cometesse mais crimes, mas, mesmo assim, ele estava livre para cometer a atrocidade que cometeu.
Por evidente, não conheço os inquéritos ou ações penais em desfavor do autor do crime – cujo nome sequer sei e prefiro continuar não sabendo – e, portanto, não sei as razões que levaram ele a continuar em liberdade. O que sei é que, independentemente do motivo, é uma tremenda falha de segurança pública permitir a livre circulação de um sujeito que deu todas as mostras de ser um perigo para a sociedade.
E é por isso que já no título deste texto eu peço desculpas aos meus amigos e colegas criminalistas, pois sei que vou defender aqui algo que é frontalmente contrário a boa parte de suas convicções profissionais. Nosso sistema de justiça criminal é completamente ineficaz e isso tem muito a ver com as nossas normas de processo penal.
Enquanto o nosso processo civil evoluiu, encampando ideias como a instrumentalidade das formas, falta de nulidade quando não há prejuízo (o famoso pas de nullité sans grief) e a primazia do julgamento de mérito, o nosso processo penal permanece agarrado a uma concepção arcaica, em que qualquer micro irregularidade processual anula um processo inteiro, em que provas cabais precisam ser desconsideradas por conta da “teoria dos frutos da árvore envenenada” e em um sistema de prescrição que, diferentemente do que ocorre com a prescrição intercorrente no direito civil, permite que o mero decurso do tempo fulmine a pretensão, mesmo que a acusação esteja dando andamento regular ao processo – o que é incompatível com a realidade do Poder Judiciário brasileiro, cuja sobrecarga inviabiliza a celeridade.
Sempre que há o cometimento de um crime bárbaro com o ocorrido na última semana, uma reação sempre previsível é o surgimento de proposições legislativas visando o endurecimento de penas por parlamentares oportunistas. No entanto, de nada adianta aumentar as penas, se as normas processuais que favorecem a impunidade permanecem as mesmas e impedem que as penas, majoradas ou não, sejam devidamente cumpridas.
São inúmeros os exemplos de crimes que ocorrem no Brasil, com fartas provas, mas que deixam de ser punidos por questões técnicas processuais. Há exemplos até mesmo no mais alto escalão da República – vocês sabem a quem me refiro. O triunfo da impunidade é notório neste bananal de imoralidades que chamamos de país.
É necessário rever nossas normas de direito processual penal, com abordagem mais racional para as nulidades, com maior aproveitamento dos atos processuais, e um sistema de prescrição mais compatível com a realidade da prática forense. O que vimos nos últimos anos, porém, foi justamente um movimento contrário, com a flexibilização das prisões cautelares, a criação do instituto do “juiz de garantias” – por enquanto, ainda suspenso por decisão do STF – e as audiências de custódia. São todas medidas que tornam a justiça criminal menos efetiva e que servem ao propósito de plantar possíveis nulidades para serem eventualmente colhidas em momento oportuno.
Não ignoro e nem discordo que o direito penal deve ser a ultima ratio e nem estou defendendo a instituição de um estado policialesco. No entanto, o maior problema, hoje, não é uma hipertrofia do aparato punitivo do Estado, mas justamente o contrário: a falta de segurança pública e a sensação de impunidade. Que me perdoem meus amigos e colegas processualistas, mas eficácia para a justiça criminal é fundamental.
* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e tem cada vez menos paciência com a ineficiência da justiça criminal brasileira.
[1] “Autor de atentado em creche de Blumenau (SC) tinha sete passagens pela polícia: de ataque com faca a posse de cocaína”: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/04/autor-de-atentado-em-creche-de-blumenau-sc-tinha-sete-passagens-pela-policia-de-ataque-com-faca-a-posse-de-cocaina.ghtml
[2] “Perdão, crianças”: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/anderson-silva/perdao-criancas