ADEL EL TASSE[1]
Não há sensível discussão sobre a natureza dos processos administrativos disciplinares, pois, ao regular parte do exercício do poder punitivo do Estado, é certo que possuem características próprias do processo penal, afinal, não é a opção legislativa em estruturar determinada manifestação do poder punitivo em um ou outro ramo do direito que desnatura sua essência.
As manifestações punitivas experimentadas no âmbito administrativo disciplinar podem se constituir em algumas das mais gravosas punições manifestadas pelo Estado brasileiro, como, por exemplo, a punição de demissão, na medida em que priva a pessoa dos meios mínimos de subsistência, importando indireta perda dos recursos canalizados para o sistema próprio de previdência, entre outras consequências de gravidade ímpar.
Em um paralelo, basta verificar que o próprio Direito Penal prevê a pena de proibição do exercício de cargo público, mas de forma temporária, somente chegando ao nível extremo de estabelecer a perda definitiva do cargo público, na condenação à pena privativa de liberdade superior a 4 (quatro) anos ou, quando o crime for praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública, sendo a pena superior a 1 (um) ano.
Em outras palavras, as consequências da punição administrativo-disciplinar podem ser de gravidade equivalente ou até mesmo superior às experimentadas por alguém condenado pela prática crime no âmbito penal, o que faz, insustentável o afastamento dos direitos e garantias limitadores do poder punitivo, do âmbito administrativo disciplinar.
Há que se ter claro que ao serem disciplinadas garantias processuais em favor do acusado no processo penal, estas se estendem de forma linear ao processo administrativo disciplinar, por ser ele também, como já referido, manifestação do poder punitivo, com possibilidade de sua presença em grau elevado.
Nesse sentido, equívoco recorrente é o de negar o direito de recurso para as pessoas processadas no âmbito administrativo disciplinar, pois, referido expediente confronta diretamente com o sentido axiológico da Constituição Federal e com o item h do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José – Costa Rica).
Dois momentos são particularmente problemáticos em relação aos recursos no âmbito administrativo disciplinar, um quando diante de ato decisório praticado na etapa de instrução e, outro, quando há o julgamento de mérito, por agente que possui competência delegada.
A despeito de forma tendência hermenêutica na Administração Pública brasileira, inclusive pelos órgãos disciplinares da Advocacia Pública, no sentido de que em ambas as hipóteses é incabível recurso, a verdade é ser referida exegese insustentável, sob ótica constitucional, da hierarquia das normas e do modelo democrático de Estado.
O primeiro ponto é a evidente confusão que se tem feito entre atos instrutórios e atos decisórios praticados durante a instrução. Quando o recurso é negado contra atos como o indiciamento e diferentes decisões praticadas durante a instrução, em regra, o argumento utilizado é o não cabimento de recurso contra ato instrutório, retórica de puro caráter sofístico, pois, produz confusão entre ato instrutório e ato decisório na etapa de instrução processual, para, ao final, cercear direitos do acusado.
Os atos instrutórios, conforme lecionam CINTRA, DINAMARCO e GRINOVER, no clássico, Teoria Geral do Processo, são atos que tem o objetivo de trazer provas ao processo, por exemplo, juntada de documento; a colheita de depoimentos ou a realização de inspeções. Por outro lado, na etapa de instrução podem ser praticados atos decisórios, quando eles não objetivam a constituição da prova do processo, mas produzem consequências para as partes.
Em verdade, nada mais ultrapassado que pensar não existirem atos decisórios na etapa de instrução, quando diante de um momento no qual o processo penal debate e se descortina para o juiz de garantias, que, em breves considerações, justamente visa, em uma etapa estritamente instrutória, preservar no conteúdo decisório, as garantias do acusado.
Assim, havendo, no processo administrativo disciplinar, atos decisórios na etapa de instrução, não pode ser negada a possibilidade de reavaliação recursal da matéria, na medida em que, há possibilidade de geração de prejuízos para o acusado, por exemplo, os que surgem da negativa da produção de determinada prova ou mesmo da lavratura de termo de indiciamento.
Quanto ao ato de julgamento, ao final do processo, por vezes a autoridade julgadora atua com poderes delegados da autoridade superior e nestes casos, de forma absolutamente equivocada e inconstitucional, tem havido entendimento de que não cabe recurso algum da decisão, pois, o ato praticado já seria por delegação da própria autoridade a quem caberia o julgamento do recurso.
Ocorre que, o princípio do duplo grau de jurisdição deve ser entendido em viés constitucional mais generalizante, na medida em que fixa, em matéria processual, uma das balizas do próprio estágio civilizatório da humanidade, a ponto de estar expressamente previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como, em todos os documentos internacionais de preservação humanitária.
Assim, um processo somente encontra respaldo constitucional, dentro do atual estágio civilizatório, se a pessoa tem a possibilidade de, ao menos uma vez, recorrer da decisão que lhe seja desfavorável.
Esse conteúdo é tão importante que no julgamento da Ação Penal 470 (mensalão), o Supremo Tribunal Federal com acurado cuidado de preservação das bases constitucionais, concedeu natureza recursal aos embargos apresentados, justamente por ser o pleno do Pretório Excelso, a primeira e última instância de julgamento, o que implicaria ausência de possibilidade recursal, algo inaceitável dentro do arcabouço legislativo existente e do atual estágio civilizatório.
Tentar construir a hermenêutica, no âmbito administrativo disciplinar, de que a existência de uma portaria a delegar poderes de julgamento, está a impedir a habilitação da via recursal, equivale, em uma imagem retirada do pensamento popular, ao “cão abanar o próprio o rabo”, pois, deixada de lado a roupagem que esconde a verdade, o que está sendo afirmado é somente ser a Constituição Federal e os documentos internacionais de Direitos Humanos válidos, se estiverem em acordo com as Portarias editadas pelos detentores de cargo de comando e chefia no serviço público brasileiro.
Com efeito, as construções interpretativas negativas do acesso recursal aos acusados no processo administrativo disciplinar, são insustentáveis, pois inconstitucionais e confrontantes com os pactos e tratados de Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário, escondendo sob a retórica de que deseja impedir intervenções nos trabalhos processantes, forte espírito autoritário, lastreado no conceito da infalibilidade humana e de que pequenos grupos ou corporações devam ter controle absoluto sobre o poder punitivo internamente habilitado no Estado brasileiro.
Nessa toada, vale relembrar que no atual cenário global, os recursos, nos diferentes processos, são garantias da sua própria validade, a partir justamente da premissa da falibilidade humana e do aprimoramento decisório, com a crescente racionalização, quando há reanálise da matéria debatida em âmbito recursal.
Apenas em tiranias não existem recursos, pois, então, a vontade de quem tem poder é absoluta, em consequência, não há porque ser aprimorada ou racionalizada. Fora disso há democracias e estas aprimoram-se continuamente, racionalizando os conflitos, evoluindo nas decisões e filtrando o máximo possível as manifestações do poder punitivo, independente do âmbito em que se apresentem.
[1]Mestre e Doutor em Direito Penal. Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais. Autor de livros e artigos publicados em livros, revistas e periódicos.