A polêmica[1] do juiz de garantias
Juiz de garantias[2] é a causa do impasse ocorre entre o atual Presidente do STF (Luiz Fux) e o Ministro Gilmar Mendes que tem travado o julgamento que decidirá sobre a implementação desse juiz no país.
O Presidente do STF havia marcado a análise do tema para o dia 25 de novembro, porém, retirou de pauta, em face da falta de acordo com o colega sobre a mudança regimental que torna obrigatória a remessa de decisões monocráticas ao Plenário do STF.
Oficialmente, o Presidente da Suprema Corte afirmou que o adiamento do julgamento porque o Congresso está em discussões avançadas para finalmente aprovar prazos maiores para instituição do novo modelo de condução das investigações criminais no Brasil.
Porém, os líderes do Poder Legislativo, criticam ativamente o fato, de o Ministro demorar em exarar sua decisão individual e, não a submeter ao Plenário e, ainda, pressionam o STF em desemperrar a respeito do tema, o quanto antes.
O juiz das garantias fora aprovado pelo Congresso Nacional ainda em 2019, determinando a divisão da responsabilidade de processos criminais em dois juízes, a saber: um que autoriza diligências da investigação e, outro juiz, efetivamente julga o réu.
O tema é enaltecido pelos adeptos do garantismo do direito, que costumam prezar pelas garantias individuais dos investigados, mas sofre grande resistência entre os magistrados. O Presidente do STF suspendeu a instituição do modelo em janeiro de 2020 e até hoje, não levou o tema para devida análise do colegiado.
Em paralelo, o Supremo Tribunal havia iniciado o debate sobre uma mudança regimental para que as decisões individuais sejam automaticamente remetidas ao Plenário. E, Ministro Fux pretendia aprovar essa medida e usá-la como uma das bandeiras de sua gestão à frente da Suprema Corte.
Em mais de uma vez, afirmou que a alteração iria reinstitucionalizar o STF, que passaria ser uníssono e deixaria de ser composto por onze ilhas, com ordens individuais, em franca profusão nunca analisada em conjunto pela Corte.
Lembremos que Presidente do STF suspendeu a instituição do referido modelo em janeiro de 2020[3], e até agora, ainda não levou para análise do colegiado. E, e, no mesmo ano os ministros proferiram mais de mil e setecentas decisões monocráticas. E, pelo novo modelo, estas seriam automaticamente submetidas ao Plenário da Suprema Corte.
O Ministro Gilmar Mendes era favorável à mudança, porém, condicionou a aprovação da nova regra ao estabelecimento de uma regra de transição que obrigasse o julgamento do Plenário das monocráticas que já estão em vigência. O que forçaria a Presidência da Suprema Corte suspender o juiz das garantias o que é francamente defendido nos bastidores.
O Presidente do STF inclusive pautou o tema para decisão como sinalização apta a destravar a emenda regimental que extingue a monocratização na corte, porém, as divergências quanto as regras para a remessa obrigatória das decisões individuais para encaminhá-las ao plenário, o levaram a retirar o tema da pauta.
O busilis mais agudo é a resistência de Ministro Gilmar Mendes em acatar que as decisões proferidas em Habeas Corpus também sejam enviadas automaticamente ao Plenário do STF. Isso porque, existe forte resistência garantista da Corte em analisar processos que tratam da liberdade dos investigados, uma das principais garantias constitucionais vigentes.
Acredita-se que a retirada do tema juiz das garantias da pauta cedeu à pressão feita por entidades que representam a magistratura e são contrárias a dividir a responsabilidade de processos criminais em dois juízes. E, o Ministro Fux, como juiz de carreira mostra-se sensível às demandas da categoria.
E, a dificuldade patente entre os Ministros Fux e Gilmar Mendes é outro fator motivador para o impasse sobre o julgamento desses dois temas. Já ocorreu desentendimento públicos e mesmo internos, e mesmo um suposto acordo entre os dois ministros é sempre visto com certa desconfiança e baixa credibilidade.
Enfim, a aprovação do juiz das garantias no Congresso Nacional foi realmente cercada de muitas controvérsias, tanto que fora alvo de crítica, do então Ministro da Justiça, Sergio Moro que argumentava o acúmulo de trabalho para os magistrados.
Nessa época, quem era o Presidente do STF era o Ministro Dias Toffoli que defendi ser possível a redistribuição dos processos, sem haver necessidade de novas contratações e, ainda, sem sobrecarregar os juízes. E, os defensores da proposta afirmavam que o objetivo era conferir maior imparcialidade aos julgamentos, corroborando a opinião dos integrantes da força-tarefa Lava Jato em Curitiba.
Lembremos que a imparcialidade[4] é decorrência lógica do devido processo legal e do Estado Democrático de Direito. Constituindo, indubitavelmente, uma das mais relevantes garantias do devido processo criminal. Em que pese haver inexistência de expressa previsão do direito ao julgamento por juiz imparcial na Constituição Federal brasileira vigente, isso não significa, que esta não o assegura. Em síntese, não há como negar que a imparcialidade do juiz seja uma garantia constitucional implícita.
A lei passou a viger logo após trinta dias de sua publicação oficial, o que foi considerado insuficiente para o Judiciário se adaptar. E, nos bastidores do Congresso Nacional surgiram a discussão do Pacote Anticrime que reconhece que o Congresso brasileiro errou ao não estabelecer um prazo adequado para implantação do juiz de garantias.
Articulou-se que o prazo fosse de um quinquênio a partir de 2019, quanto o texto foi sancionado. E, em defesa da mudança, defendida pela parte do Congresso Nacional contrária à Operação Lava-Jato, deputados decidiram inclui o juiz de garantias com prazo de cinco anos a partir de 2019 dentro do novo CPP que está também sendo debatido por grupo de trabalho da Câmara dos Deputados Federais.
Havendo intenção de revogar os dispositivos que disciplinam o referido instituto. Porém, o fator eleições de 2022 começou a influenciar as discussões. E, uma saída costurada entre Legislativo e Judiciário envolverei modulação dos efeitos para dizer que o juiz de garantias é constitucional e, sua validade fixada a partir de determinada data.
Tal solução poderá sair em setembro de 2022, quando a Ministra Rosa Weber assumirá a Presidência do STF. E, poderá então pautar o julgamento, de forma a fortalecer o Supremo Tribunal Federal na relação com os demais Poderes da república brasileira. Manifestou-se oficialmente a Suprema Corte que ainda não há previsão para julgamento de emenda regimental sobre as decisões monocráticas.
O novo Código de Processo Penal (CPP) introduz a figura do juiz das garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado (art.14).
Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de inquérito e profere a sentença, porque foi o primeiro a tomar conhecimento do fato (art. 73, parágrafo único do CPP). Com as mudanças, caberá ao juiz das garantias atuar na fase da investigação e ao juiz do processo julgar o caso – este tendo ampla liberdade em relação ao material colhido na fase de investigação.
A novidade gerou alguns estranhamentos e, consequentemente, surgiram argumentos favoráveis ??e desfavoráveis. Entre os argumentos favoráveis, está a imparcialidade nas decisões finais, uma vez que dois juízes irão analisar o mesmo caso.
A divisão de tarefas também é um argumento para seus defensores. Com a chegada de mais um juiz, o outro poderia analisar melhor o que lhe é direcionado. Evitar uma figura heroica de juiz em alguns casos é outro fator considerado benéfico.
Entre os argumentos contra está a dificuldade de resolver os casos mais complexos, uma vez que a avaliação de dois juízes pode prolongar o andamento desses casos. Vale ressaltar que entre aqueles contra esta, consta o ex-ministro Sérgio Moro.
Segundo Rubens R.R. Casara, o juiz das garantias pode ser definido como sendo responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela de liberdades públicas, isto é, das inviolabilidades pessoais/liberdades individuais frente à opressão estatal, na fase pré-processual. (In: CASARA, Rubens R. R. Juiz das Garantias: entre uma missão de liberdade e o contexto de repressão. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (Org.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 170.).
No direito comparado, no CPP Português, no artigo 17, há a previsão da competência do juiz de instrução, que não se confunde com a do juiz do julgamento. Aliás, o artigo 40 do mesmo diploma legal lusitano, apesar das controvérsias, reza que nenhum juiz pode participar no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado, e posteriormente, mantido a prisão preventiva do arguido.
O juiz das garantias teve suspensa sua eficácia por meio de decisão liminar do Ministro Dias Toffoli, proferida em 15.01.2021, em sede de Medida Cautelar na ADI 6298/2019, julgamento ad referendum do Tribunal Pleno.
Em sentido contrário, lembremos que a reforma italiana de 1989 extinguiu a figura do giudice instruttore, ou juiz de instrução, o qual é substituído per le indagini preliminarei, juiz para investigações preliminares, que, por sua vez, não se confunde com órgão próprio de julgamento do caso concreto.
A propósito, o art. 34.2-bis do CPP Italiano traz regra expressa de incompatibilidade judicial, in verbis: “il giudice che nel medesimo procedimento ha esercitato funzioni di giudice per le indagini preliminari non può emettere il decreto penale di condanna, né tenere l’udienza preliminare; inoltre, anche fuori dei casi previsti dal comma 2, non può partecipare al giudizio”.[5]
Importante destacar a pesquisa do professor alemão Bernd Schünemann na teoria da dissonância cognitiva com cinquenta e oito juízes criminais e promotores de diferentes regiões da Alemanha. A pesquisa visava aferir se a cumulação de papéis, por parte do magistrado que, a partir da ciência integral dos autos da investigação preliminar, e decidindo pela admissibilidade da acusação, depois passava a presidir a audiência de instrução e, ao final, proferir sentença, resultava em comprometimento da objetividade do órgão julgador.
Os resultados mostraram que o conhecimento de autos da investigação preliminar tendencialmente incriminadores, conduz o julgador a condenar o acusado, ainda que a audiência seja ambivalente, o que sugeriria uma absolvição, com base in dubio pro reo.
Os juízes cientes do conhecimento dos autos não apreenderam, nem armazenaram corretamente o conteúdo defensivo presenta na audiência de instrução e julgamento, porque eles só se atinham as informações incriminadoras, já conhecidas e redundantes em razão da prévia leitura dos autos. Portanto, as informações processados em sua totalidade traduz distorção em favor da imagem constante dos autos, de modo que o julgador tem maior dificuldade em perceber e armazenar resultados probatórios dissonantes do que os consonantes.
De qualquer maneira, a eficácia do juiz de garantias dependerá de emenda regimental do STF e, implica, necessariamente, em muitas polêmicas. Esperemos cenas dos próximos capítulos, da novela criminalista brasileira.
Referências
AMB reitera contrariedade ao Juiz de Garantias em Audiência Pública. Disponível em: https://www.amb.com.br/amb-reitera-contrariedade-ao-juiz-de-garantias-em-audiencia-publica/ Acesso em 5.12.2021.
CASARA, Rubens R. R. Juiz das Garantias: entre uma missão de liberdade e o contexto de repressão. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (Org.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 170.
Conselho Nacional de Justiça. A Implantação do Juiz das Garantias no Judiciário Brasileiro. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/06/Estudo-GT-Juiz-das-Garantias-1.pdf Acesso em 5.12.2021.
GUIMARÃES, Rodrigo R. Chemin; RIBEIRO, Sarah. A introdução do juiz das garantias no Brasil e o inquérito policial eletrônico. Disponível em: http://www.ibraspp.com.br/revista/index.php/RBDPP/article/view/329 Acesso em 5.12.2021.
MACHADO, Leonardo Marcondes. Juiz das garantias: a nova gramática da Justiça Criminal brasileira. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-21/academia-policia-juiz-garantias-gramatica-justica-criminal Acesso em 5.12.2021.
RIBEIRO, Paulo Victor Freire. O Juízo de Garantias, Definição, Regramento, Consequências. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r31801.pdf Acesso em 5.12.2021.
SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito(…), p. 211.
[1] Na França, discute-se até hoje se o Le juge des libertés et de la détention pode, após encerrado o inquérito, atuar nas fases posteriores e sentenciar o processo. A lei criada no Brasil veda essa possibilidade, o que é apontado pelas entidades que a questionam como algo que torna inviável a sua instituição.[6] No entanto, para quem defende a instituição legal do juiz de garantias, a exemplo da OAB, se argumenta que a implantação do normativo só cria dificuldades iniciais apenas do ponto de vista administrativo e que em curto espaço de tempo se aplaina na estrutura jurídica do país e que sua efetivação não exige a criação de novos cargos, apenas a regulamentação das distintas atribuições jurisdicionais entre os magistrados com competência criminal
[2] A função foi instituída pela lei francesa da presunção de inocência, de 15 de junho de 2000. O Código de Processo Penal define as regras de sua nomeação: O juiz das liberdades e da detenção é um juiz de direito em posição de presidente, primeiro vice-presidente ou vice-presidente. É designado pelo presidente do tribunal de primeiro grau (tribunal de grand instance). Entre as atribuições do JLD, estão: Durante a fase de inquérito, decidir sobre prisão provisória, liberdade provisória, prisão domiciliar e monitoramento eletrônico; Determinar a indisponibilidade de bens em casos de crime organizado; Ordenar a internação psiquiátrica compulsória de uma pessoa investigada, bem como determinar sua liberdade.
[3] No Brasil, o juiz das garantias foi instituído pela Lei 13.964, sancionada em 24 de dezembro de 2019, no entanto, a criação foi suspensa pelo ministro do STF, Luiz Fux, através de uma liminar em 19 de janeiro de 2020. Um dos problemas indicados pelo ministro, para fundamentar a suspensão, diz respeito ao impacto financeiro que poderá ser causado nas contas públicas, o que feriria o novo regime fiscal da União, instituído pela Emenda Constitucional 95/2016.
[4] Imparcialidade, não significa, no entanto, neutralidade. É impossível exigir-se que o juiz, enquanto ser humano, dispa-se de todas as suas convicções pessoais de forma a fazer com que estas não influenciem no seu convencimento. É inadmissível, pois, pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideias, que não seja uma compreensão do mundo, uma visão da realidade. In: ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário. Crise, Acertos e Desacertos. Tradução de Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995).
[5] Segundo Ferrajoli, o CPP de 1989 adotou o sistema acusatório, configurando o novo processo como relação trigonal entre juiz, acusação e defesa, em antítese ao processo do Código Rocco que era baseado, na fase instrutória, na confusão entre juiz e acusação e, na relação inquisidor e inquirido. A regra é que o juiz que atue na fase de investigação está impedido de atuar na fase processual. Afirma Aury Lopes que o juiz que atuou na investigação preliminar italiana, ainda que só tenha decretado a prisão cautelar está prevento, ou seja, a imparcialidade resta comprometida e, por isso, não pode julgar.