MASS SOCIETY AND HYPER-CONSUMERISM: AN ANALYSIS OF CONSIGNED LOAN AND BRAZILIAN CONSUMER OVER-INDEBTEDNESS
Taisi Copetti[1]
Resumo: O presente artigo busca analisar os empréstimos consignados e o superendividamento do consumidor brasileiro sob a ótica da sociedade de massa e hiperconsumo. Para tanto, em um primeiro momento abordar-se-á a formação da sociedade de consumo e posterior sociedade de hiperconsumo, delineando o crescimento econômico e apresentando críticas através de teóricos como Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman. Após, será apresentado os aspectos inerentes ao crédito, sua concessão facilitada no Brasil e, consequentemente, sobre o superendividamento dos consumidores brasileiros. Por fim, será abordada a modalidade de empréstimo consignado, com o enfoque em demonstrar que o superendividamento não consiste em um problema meramente particular, mas, ao contrário, diz respeito a um problema coletivo que merece atenção do âmbito jurídico. O método utilizado foi o indutivo. A conclusão irá apurar as proposições estudadas.
Palavras-chave: Sociedade de massa; Hiperconsumo; Superendividamento; Empréstimo consignado; Consumidor brasileiro.
Abstract: This article seeks to analyze payroll loans and over-indebtedness of the Brazilian consumer from the perspective of mass society and hyper-consumption. To do so, at first, the formation of the consumer society and subsequent hyper-consumerism society will be addressed, outlining economic growth and presenting criticisms through theorists such as Gilles Lipovetsky and Zygmunt Bauman. Afterwards, aspects inherent to credit will be presented, its easy concession in Brazil and, consequently, on the over-indebtedness of Brazilian consumers. Finally, the payroll loan modality will be addressed, with the focus on demonstrating that over-indebtedness is not merely a particular problem, but, on the contrary, concerns a collective problem that deserves attention from the legal scope. The method used was inductive. The conclusion will determine the propositions studied.
Key-words: Mass society; Hyper-consumerism; Over-indebtedness; Payroll loan; Brazilian consumer.
1 INTRODUÇÃO
Por que os seres humanos consomem mais do que precisam? Esta talvez tenha sido a principal indagação da autora ao pensar no tema “sociedade de massa e hiperconsumo”. Certamente não há somente uma resposta. Uma delas pode ser que muitas das escolhas humanas de consumo são baseadas em impulso. Outro motivo são os bombardeamentos de anúncios e marketing que criam uma necessidade onde não existe. Por fim, às vezes consumimos mais do que precisamos, porque estamos tristes, ansiosos ou aborrecidos e procuramos em objetos o caminho para lidarmos com esses sentimentos.
Para além desses possíveis motivos, fato é que o consumo mudou a forma como o ser humano vive em sociedade. Assim, através dos diversos fenômenos causados por ele, o presente artigo realizará uma análise acerca dos empréstimos consignados e o superendividamento do consumidor brasileiro, sob a ótica da sociedade de massa e do hiperconsumo.
Para isso, o presente estudo está dividido em três partes. A primeira parte visa apresentar a formação da sociedade de consumo e posterior sociedade de hiperconsumo, delineando o crescimento econômico e apresentando críticas através de teóricos como Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman à incessante busca pelo lucro e, consequente, incentivo ao consumo.
A segunda parte buscará apresentar os aspectos inerentes ao crédito, sua concessão facilitada no Brasil e como isso, por consequência, leva ao superendividamento dos consumidores, fenômeno que tem se propagado intensamente nos últimos anos.
Por fim, a terceira sessão apresenta a modalidade de empréstimo consignado, com o enfoque em demonstrar que o superendividamento não consiste em um problema meramente particular, mas, ao contrário, diz respeito a um problema coletivo, porquanto acomete diversos atores, tanto do âmbito público, quanto do âmbito privado, que necessitam de atenção jurídica.
O presente trabalho é fruto dos estudos realizados na Disciplina Sociedade de Massa e Hiperconsumo ministrado pela Profª Drª Carolina Bahia, junto ao mestrado do Programa de Pós-Graduação de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O método utilizado para a realização da pesquisa foi o indutivo, por meio de revisão bibliográfica de livros, artigos científicos e teses.
2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA SOCIEDADE DE MASSA E HIPERCONSUMO E SEUS IMPACTOS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
O presente tópico propõe apresentar, brevemente, a formação da sociedade de consumo e posterior sociedade de hiperconsumo, delineando o crescimento econômico e apresentando críticas através de teóricos como Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman à incessante busca pelo lucro e, consequente, incentivo ao consumo. Nesse sentido, cumpre destacar que o presente trabalho não busca esgotar o assunto, mas sim realizar recortes das principais características sociais que moldaram a atual formação da sociedade em que estamos inseridos.
Inicialmente, pode-se destacar a Revolução Industrial como sendo o divisor de águas para a economia industrial. Em resumo, tratou-se de um conjunto de inovações tecnológicas que ocorreu na Europa entre o século XVIII e o século XIX, que transformou a economia europeia majoritariamente agrária em uma economia industrial. Estas inovações tecnológicas permitiram às fábricas produzir em massa e mais rapidamente, o que resultou em um aumento do consumo (STELZER, 2018).
Ao longo do século XIX, o aumento do consumo foi acompanhado pelo aumento da produção, o que resultou um crescimento econômico generalizado. Este crescimento econômico, vale dizer, teve um custo ambiental significativo, pois as fábricas liberavam, como hoje, enormes quantidades de poluentes para a atmosfera, águas e solos.
Nesse cenário, o crescimento econômico veio acompanhado de uma gigante perspectiva materialista, na qual a ideia de que todos os problemas humanos seriam resolvidos por meio de um volume ilimitado de bens materiais (BRASIL, 2021).
O consumo de massa, todavia, é um fenômeno recente, que surge com as mudanças provocadas pelo capitalismo sendo construído e fortalecido diariamente em meio ao cenário que aspira um crescimento econômico infinito (BRASIL, 2021). A formação do mercado de massa é resultado da concentração de produção, do surgimento de novas técnicas de propaganda e das técnicas de fabricação de produtos em massa. O consumo de massa é, portanto, promovido por grandes empresas com interesse na venda de grandes quantidades de produtos, mas não só, é promovido também pela construção social e cultural da própria sociedade.
Nas palavras de Ana Larissa da Silva Brasil (p. 33, 2021):
Atualmente, a oferta de crédito expandiu e proporcionou a compra de diversos produtos, inserindo cada dia mais os consumidores no mercado e aproximando o relacionamento objetos do consumo. Similarmente, as tecnologias de informação propiciaram avanços nas relações de consumo, através de sites e aplicativos, tornaram possível adquirir produtos e serviços que nem sempre estariam disponíveis próximo à localidade em que residem.
Além disso, é preciso refletir sobre os aspectos subjetivos do consumo. Nesse sentido, Bauman (2008), em sua obra “Vida para consumo”,aborda as implicações que o consumismo descontrolado exerce sobre as pessoas, afetando suas subjetividades.
O que Bauman apresentará nesta obra é como as relações humanas, a partir do que ele chama de “sociedade de consumidores”, se constitui. Nesse sentido, a sociedade dos consumidores se distingue por uma reconstrução das relações humanas a partir das relações entres os consumidores e os objetos de consumo. Ou seja, para o autor, o consumo regulamenta as ações sociais, políticas e cotidianas, transformando a sociedade contemporânea em algo singular (BAUMAN, 2008).
Nesse sentir, o sujeito, único capaz de atuar no campo das possibilidades pré-constituídas pelo mercado, se torna o ponto central da ideia trazida por Bauman: o indivíduo enquanto mercadoria. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maioria daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. Para o autor, a principal característica da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias (BAUMAN, 2008).
O autor também afirma que o consumismo associado à felicidade não está ligado necessariamente à satisfação, visto que esse discurso intensifica os desejos de consumo, fazendo com que o uso e substituição dos objetos ocorra de fora obsoleta. O autor afirma, então, que o consumismo fortalece a obsolescência programada (BAUMAN, 2008).
A obsolescência programada é um conceito utilizado para descrever uma estratégia de marketing utilizada pelas empresas para impulsionar as vendas de um determinado produto. A ideia é projetar um produto de tal forma, que seja impossível de ser reparado. Portanto, quando algo dele quebrar, o consumidor será obrigado a comprar um novo.
Nessa linha de pensamento, a propaganda, sendo um conjunto de técnicas que visam influenciar as pessoas a comprar certos produtos, mostra-se como uma ferramenta importante para estimular o consumo de massa.
Assim, seguindo a lógica do desejo de consumo trazido por Bauman, pode-se dizer que a propaganda cria desejos nas pessoas, fazendo-as acreditar que certos produtos vão satisfazer esses desejos. As pessoas passam a desejar produtos que antes não desejavam, porque foram induzidas a acreditar que esses produtos irão satisfazer certas necessidades. Ou seja, o consumo de massa cria novas necessidades nas pessoas.
Desse modo, a sociedade de consumo passa a ser uma sociedade de hiperconsumo. Essa passagem é traçada por Gilles Lipovetsky em sua obra “A felicidade paradoxal”:
Aparentemente, nada ou quase nada mudou: continuamos nos mover na sociedade do supermercado e da publicidade, do automóvel e da televisão. No entanto, a contar das duas últimas décadas, surgiu um novo “ismo” que pós fim à boa e velha sociedade de consumo, transformando tanto a organização da oferta quanto as práticas cotidianas e o universo mental do consumismo moderno: a própria revolução do consumo foi revoluciona- “estabeleceu-se uma nova fase do capitalismo de consumo: ela não é mais que a sociedade de hiperconsumo (p. 12, 2007).
Para o autor, a felicidade como valor que, dada a sua universalidade, não pode ser apreendida pela cultura, é o que a cultura faz com o indivíduo para que este, ao contrário, sinta-se feliz. Como o individualismo é o valor mais importante da cultura atual, a felicidade surge como valor mais importante, como objetivo principal do indivíduo na sociedade atual (LIPOVETSKY, 2007).
Esta cultura do individualismo é caracterizada por três modos de pensar que Lipovetsky (2007) identifica como individualismo ético, estético e existencial. O individualismo ético surge com a Revolução burguesa, com a Declaração dos Direitos do Homem, que coloca o indivíduo como centro da sociedade. A partir disso, surge a ideia do indivíduo ser o agente ético, o único responsável pelas suas escolhas e por seus atos.
O individualismo estético, surge com a modernidade, com a ideia de que o indivíduo é autor da sua obra de arte: a sua vida. A partir disso, surge a ideia de que a felicidade é uma obra de arte. Por fim, o individualismo existencial é o individualismo que surge com o pós-modernismo, com a ideia de que o indivíduo é o ator principal da sua existência, o seu único responsável pelo sucesso ou pelo fracasso. A partir disso, surge a ideia de que a felicidade é um projeto de vida (LIPOVETSKY, 2007).
Neste contexto, Lipovetsky (2007) caracteriza a felicidade como um projeto de vida, como um projeto estético, como uma obra de arte, que depende de uma escolha individual, depende do indivíduo. A felicidade é, assim, um “projeto de vida”, que depende inteiramente da liberdade do indivíduo. A liberdade do indivíduo é a liberdade de escolher a sua felicidade, a liberdade de escolher o seu projeto de vida, a liberdade de escolher o que quer ser.
Contudo, a própria ideia de liberdade em uma sociedade de hiperconsumo parece utópica, visto que
A sociedade de hiperconsumo potencializa a necessidade por destacar-se quanto aos hábitos de consumo, no entanto, fica evidente o consumo baseado em estilos de vida. Esses são propiciados por marcas que se especializam cada vez mais em publicidade que atinja público específico e até mesmo, arrebanhar mais seguidores desse estilo de vida, como é o caso de influenciadores digitais que atualmente são responsáveis por propagarem esse consumo com base em marcas, rotinas, o culto ao individualismo hedonista (BRASIL, p. 42, 2021).
Assim, vê-se que a transformação de uma sociedade de consumo para uma sociedade de hiperconsumo potencializou comportamentos individualistas dos seres humanos, que, o colocando como premissa para alcançar a felicidade, passaram a ser, mesmo sem saber, diretamente influenciados pela publicidade.
Dados de um estudo realizado pelo Ministério da Saúde[2] em 2016, revelam que o Brasil é o segundo país do mundo com o maior índice de hiperconsumo. Segundo a pesquisa, quase metade da população brasileira (48,3%) é considerada hiperconsumidora.
Os dados também indicam que o hiperconsumo é mais frequente entre as mulheres (50,5%) do que entre os homens (46,2%). Além disso, a pesquisa mostrou que o hiperconsumo é mais comum entre os jovens de 15 a 24 anos (63,7%), entre os adultos de 25 a 39 anos (51,2%) e entre os mais velhos de 45 a 59 anos (48,6%).
A pesquisa também revelou que os hiperconsumidores brasileiros gastam mais de uma vez o que ganham, são mais propensos a endividamento e possuem maior dificuldade para poupar. Além disso, os hiperconsumidores tendem a ter menor disponibilidade para a realização de atividades educativas, culturais ou esportivas.
Concluiu-se da pesquisa, portanto, que o hiperconsumo é um problema sério e preocupante no Brasil, que afeta principalmente mulheres, jovens e adultos. Esse comportamento pode ter diversas consequências negativas, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade em sua totalidade.
Algumas das principais consequências do hiperconsumo são: 1) endividamento; 2) problemas de saúde, o estresse causado pelo hiperconsumo pode levar às pessoas a sofrerem de diversos problemas de saúde, como ansiedade, depressão e até mesmo doenças cardíacas; 3) impacto ambiental, o excesso de consumo leva à produção de grandes quantidades de resíduos; 4) desigualdade social, o hiperconsumo tende a aumentar as desigualdades sociais, uma vez que aqueles que têm mais dinheiro podem comprar mais produtos e serviços do que aqueles que têm menos.
Para uma sociedade de consumo existir é necessário haver mais do que somente a existência de produtos para serem consumidos. É preciso que as pessoas possuam condições de comprá-los, ou seja, é preciso haver renda para se consumir, e é nesse momento que entra o crédito que, juntamente com a publicidade e a obsolescência programada, formam os três pilares da sociedade de consumo. Dessa forma, a próxima sessão buscará apresentar os aspectos inerentes ao crédito, sua concessão facilitada no Brasil e, consequentemente, o superendividamento da população.
3 CONCESSÃO FACILITADA AO CRÉDITO E O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO
Considerando, então, as mudanças ocorridas no mercado de consumo, a influência realizada pelo mercado publicitário e a falta de renda em determinados casos, é possível constatar que os consumidores acabam contando com o crédito para satisfazerem suas necessidades e desejos. A democratização do crédito, como será apresentado nesta sessão, não teve apenas consequências positivas, visto que sua utilização exacerbada é atualmente a causa de grande parte dos casos de superendividamento dos consumidores brasileiros.
Inicialmente, cumpre esclarecer que operações de crédito são aquelas operações que permitem aos consumidores a imediata prestação, cujo valor será restituído posteriormente. O aspecto primordial para a distinção entre uma operação de crédito e uma operação à vista é o transcurso do tempo (JEAN CALAIS-AULOY apud LIMA, 2014).
Com o consumo de massa, mais pessoas tiveram acesso a bens duráveis. Com efeito, “houve a difusão do crédito e assim, ampliou o poder de compra dos consumidores que antes economizavam por anos para adquirir esses bens, fazendo com que as demandas se tornassem urgentes e necessárias” (BRASIL, p. 61, 2021).
Sem dúvidas, o surgimento dos mecanismos de crédito para os consumidores mostrou-se uma solução para muitas famílias que se viam impossibilitadas de adquirir determinados bens, sejam eles essenciais à sua existência ou não.
Todavia, quando contratado em um momento de estabilidade financeira, o crédito constitui-se um importante elemento para a ascensão social, contudo, a utilização do crédito de forma descontrolada pode ocasionar o endividamento excessivo, o que, por sua vez, pode levar à inadimplência (COSTA, 2002).
No Brasil, a concessão de crédito é facilitada e o superendividamento é uma realidade. Segundo o Serasa Experian[3], o número de inadimplentes cresceu 9,4% em 2017, chegando a 60,2 milhões de pessoas. A inadimplência no cartão de crédito subiu para 35,8%, representando um aumento de 2,1 pontos percentuais em relação a 2016. O número de pessoas com dívidas em atraso também cresceu, chegando a 21,8 milhões de brasileiros. A facilidade de obter crédito é uma das principais causas do aumento da inadimplência. Segundo o estudo, o número de solicitações de crédito aumentou 12% em 2017, enquanto o número de aprovações cresceu apenas 9%. Além disso, as taxas de juros também cresceram, dificultando o pagamento das dívidas.
Dessa forma, pode-se afirmar que o hiperconsumo e o superendividamento são dois dos principais problemas enfrentados pelas pessoas no mundo moderno. O superendividamento é o resultado de uma situação em que as pessoas tomam empréstimos para pagar dívidas existentes, o que acaba criando uma espiral de endividamento que é difícil de escapar. Já o hiperconsumo é o consumo excessivo de bens e serviços, muitas vezes por meio de crédito, o que também leva à dívida. Ambos os problemas são agravados pelo fato de que as pessoas tendem a comprar coisas que não podem pagar no presente com o dinheiro que não tem no futuro. Isso acaba criando uma bolha de endividamento que, quando estoura, pode causar sérios problemas financeiros para as pessoas.
4 EMPRÉSTIMO CONSIGNADO E A NECESSIDADE DE UM TRATAMENTO JURÍDICO ESPECIAL
Os contratos de crédito consignado foram introduzidos no Brasil pela Lei nº 10.820/2003, que permitiu o pagamento mediante desconto direto na remuneração de empregados celetistas, aposentados e pensionistas, possibilitando o acesso de muitos consumidores ao mercado, com taxas de juros menores do que as demais modalidades, além de serem legalmente previstas. Tal lei representou um avanço nas relações sociais, pois teoricamente permitiu o acesso de grande parte da população ao crédito pessoal com juros mais baixos, melhorando os índices sociais por conta do consequente crescimento econômico.
Atualmente, o empréstimo consignado é um contrato de concessão de crédito muito realizado. Tal modalidade de empréstimo é bastante atrativa e oferecida especialmente para os idosos. Ao adotar o pagamento através de descontos diretos em folha de pagamento, reduziu-se os riscos de inadimplência:
[…] a institucionalização dos empréstimos com consignação em folha de pagamento, teve por objetivo permitir que as instituições financeiras ofertassem crédito de forma mais simplificada e segura aos empregados, pensionistas e aposentados, de modo a proporcionar-lhes a oportunidade de acesso mais fácil e barato a recursos financeiros, com prazos de pagamento mais elásticos. (WALD, 2020, p. 299).
Ressalta-se que para caracterizar-se as consignações em folha de pagamento, é necessária a prévia e expressa autorização do mutuário à instituição financeira, bem como a concordância de seu empregador ou da previdência em realizar a retenção e o repasse dos valores devidos à instituição.
Quando criada, a Lei nº 10.820/03 previa que o valor da prestação poderia comprometer até 30% da remuneração do mutuário, mas, em 2015 houve uma alteração na redação dada pela Lei nº 13.172/15, que permitiu descontos de até 35%:
§ 1o O desconto mencionado neste artigo também poderá incidir sobre verbas rescisórias devidas pelo empregador, se assim previsto no respectivo contrato de empréstimo, financiamento, cartão de crédito ou arrendamento mercantil, até o limite de 35% (trinta e cinco por cento), sendo 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente para:
I – a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito; ou
II – a utilização com a finalidade de saque por meio do cartão de crédito. (BRASIL, 2003).
O empréstimo consignado é uma modalidade de empréstimo bastante utilizada pelos consumidores. As vantagens apresentadas para o consumidor, além de taxas de juros menores, são a facilidade de pagamento em cotas mensais. Observa-se que, atualmente, o empréstimo consignado é ofertado até mesmo para aposentados e pensionistas, que podem obter empréstimos até mesmo sem que seja necessária a apresentação de garantias para a obtenção do empréstimo.
Contudo, os idosos são os grandes alvos das instituições financeiras, visto que possuem renda fixa mensal, tendo em vista que a maioria é aposentado ou pensionista. Assim, o desconto pode ultrapassar os 35% previstos em lei, pois o idoso pode contratar um empréstimo consignado utilizando o limite legal e, caso necessite de mais crédito, poderá contratar outros empréstimos não consignados que descontem as parcelas de sua conta-corrente.
Na prática, a concessão de empréstimos consignados chama atenção, visto que o mutuário compromete praticamente toda a sua renda com dívidas creditícias, restando muito pouco para sua sobrevivência. Além isso, o empréstimo consignado possui um longo período para pagamento, comprometendo a renda por anos. Assim torna-se comum a contratação de novos empréstimos, fator que contribui com o superendividamento, atingindo a qualidade de vida e, inclusive, a dignidade do consumidor (QUEIROZ, 2016).
Nesse sentido, o incentivo ao crédito, a facilidade em sua obtenção, a vulnerabilidade do consumidor, especialmente do idoso, e a carência de informações claras e precisas prestadas pelas financeiras, são fatores que levam ao superendividamento.
De acordo com Furlaneto Neto e Bezen (2017, p. 2833), a oferta de crédito é uma das causas do superendividamento, pois “a vulgarização de ofertas por mensagens diárias de parcelamento facilitado, menor risco, baixas taxas de juros e outras que levam o indivíduo, consumidor, a aderi-las e que ao final de cada mês, seu salário acaba servindo apenas para quitar essas dívidas.”
Como amplamente sabido, a relação de consumo é o conjunto de relações jurídicas que se formam em decorrência da relação entre o fornecedor e o consumidor, regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Segundo a legislação consumerista, são direitos do consumidor a educação, informação, a proteção contra publicidade enganosa e abusiva e proteção contra condições prejudiciais de consumo.
À vista disso, o Estado passou a intervir nas relações consumeristas, em observância a vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor, sendo tal preocupação retratada na Constituição Federal, no art. 5º, XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (BRASIL, 1988). É possível observar referida proteção através da responsabilização nas esferas civil, administrativa e penal, sendo possível, ainda, que tais penas sejam aplicadas cumulativamente. Em razão da posição de vulnerabilidade em que se encontra o consumidor de crédito e de sua família, as relações de consumo devem observar o princípio da dignidade da pessoa humana e assegurar a eficácia dos direitos fundamentais frente às relações privadas (QUEIROZ, 2016).
Demais disso, o direito à informação é de suma importância, pois garante a autonomia do consumidor diante de seu poder de decisão e assegura a proteção da integridade e do mínimo existencial do indivíduo, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. De acordo com Miragem (2016), a regulamentação das condutas do fornecedor nos contratos de crédito previstas no CDC deve considerar em sua aplicação a proteção dos direitos fundamentais. Há informações obrigatórias que devem ser observadas nos contratos de crédito ou de financiamento, conforme dispõe o art. 52 do CDC:
Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:
I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II – montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III – acréscimos legalmente previstos;
IV – número e periodicidade das prestações;
V – soma total a pagar, com e sem financiamento. (BRASIL, 1990).
Dessa forma, a concessão de empréstimo consignado deve respeitar o art. 52 do CDC, informando previamente e de maneira adequada sobre as taxas anuais de juros.
Infelizmente, com o crescente número de superendividados, o número de demandas judiciais referente às revisões de contratos de crédito aumenta. Atualmente é impossível quantificar o número de ações que discutem abusividades de empréstimos consignados no Brasil, uma vez que o número pode variar conforme a instituição financeira. No entanto, segundo a Associação Nacional dos Profissionais e Empresas Promotoras de Crédito e Correspondentes no País (ANEPS)[4], existem cerca de 30 instituições financeiras que oferecem esse tipo de empréstimo no país.
Nesse cenário, é necessário encontrar respostas efetivas no que se refere à prevenção e tratamento do superendividamento, garantindo o respeito à dignidade da pessoa humana, bem como um desenvolvimento econômico sustentável. O consumidor, sobretudo, o idoso, deveria, por lei, ser privilegiado e protegido, mas acaba sendo refém das práticas comerciais abusivas, em decorrência de suas próprias limitações e hipervulnerabilidade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou, de forma breve, analisar as principais características dos empréstimos consignados e o fenômeno do superendividamento do consumidor brasileiro, sob a perspectiva da sociedade de massa e do hiperconsumo.
Inicialmente, é possível observar que a transformação de uma sociedade de consumo em uma sociedade de hiperconsumo tem potencializado comportamentos individualistas entre os seres humanos. Eles colocam o consumo como uma premissa para alcançar a felicidade, muitas vezes sem perceberem que são diretamente influenciados pela publicidade.
Relacionado a isso, nota-se que a democratização do crédito não trouxe apenas consequências positivas. Sua utilização excessiva é atualmente a causa de grande parte dos casos de superendividamento dos consumidores brasileiros, sendo que o índice de endividamento tem aumentado progressivamente.
Na última seção, foi possível identificar que a falta de informações claras e verdadeiras no momento da oferta de crédito consignado pode contribuir para a situação de vulnerabilidade dos consumidores, principalmente os idosos, e, juntamente com as propagandas e ofertas de produtos e serviços, pode levar ao superendividamento.
Por fim, percebe-se que os mecanismos para a solução do superendividamento, especialmente em relação à legislação, têm se mostrado incapazes de amenizar e prevenir o problema social causado pela concessão facilitada de empréstimos consignados no Brasil.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BRASIL, Ana Larissa da Silva. Círculo virtuoso do crédito: prevenção ao superendividamento do consumidor diante da democratização do crédito. Orientador: Profa. Dra. Carolina Medeiros Bahia. 2021. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/227189. Acesso em: 20 nov. 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 20 nov. 2022.
BRASIL. Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.820.htm. Acesso em: 20 nov. 2022.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 20 nov. 2022.
COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
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LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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QUEIROZ, Sheyla Cristina Ferreira dos Santos. Superendividamento do consumidor: os contratos de crédito pessoal por idosos e a responsabilidade penal do fornecedor. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2016.
SOUZA, Maristela Denise Marques de; MOTTIN, Leticia. Concessão de crédito e o consumidor endividado: violação do princípio da dignidade humana na sociedade de hiperconsumo. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 9, n. 1, p. 142-163, 2018.
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WALD, Arnoldo. O regime especial do crédito pessoal consignado. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 54, p. 291-303, 2020.
[1] Mestranda em Direito Ecológico e Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD – UFSC) e Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
[2] Estudo revela que Brasil é o segundo país do mundo com maior índice de hiperconsumo. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/estudo-revela-que-brasil-e-o-segundo-pais-do-mundo-com-maior-indice-de-hiperconsumo.ghtml. Acesso em 15 nov 2022.
[4] Ver: https://aneps.org.br/leitura/12951/saiba-quais-bancos-oferecem-emprestimo-consignado