Direito de Família

O direito da gestante a um acompanhante no momento do parto: é possível mesmo em época de pandemia da COVID-19?

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Maria Luisa Machado Porath[1]

lGestar uma vida é um processo complexo. Além das oscilações hormonais, surgem questões internas, como dúvidas, medos, inseguranças e solitude. Ao longo dos meses, a expectativa e a ansiedade aumentam. No entanto, o fim do primeiro trimestre de 2020 trouxe uma situação até então desconhecida e que gerou ainda mais preocupação: a pandemia decorrente da COVID-19.

Diante do atual cenário, uma nova pergunta surge: é possível a presença de um acompanhante no momento do parto?

Antes de a respondermos, é válido mencionar que, de acordo com a Lei Federal nº 11.108 de 7 de abril de 2005[2], a gestante possui direito a um acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Exatamente por esse motivo que ficou conhecida como a Lei do Acompanhante.

Contudo, como é sabido, a situação em que vivemos impôs mudanças drásticas no cotidiano de todos. Nesse sentido, as unidades de saúde – uma das maiores aglomerações de pessoas com COVID-19 – também tiveram que se adaptar ao novo contexto de pandemia.Diante dessas alterações, o meio jurídico precisou analisar os inúmeros casos concretos, a fim de tentar minimizar possíveis violações ao direito das gestantes.

Por exemplo, em meados de março, era relativamente comum noticiar hospitais que restringiram o direito da gestante de ter um acompanhante quando do parto. A explicação dessas unidades de saúde era pautada no distanciamento social e em preservar a saúde tanto da nova vida quanto da gestante, em função da contaminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2). É o que se extrai das considerações e recomendações da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais, cujo nome fantasia é SOGIMIG:

[…] Considerando que o isolamento social é, nesse momento, da epidemia uma ação essencial para o controle da crise é necessário manter, também durante o trabalho de parto, as ações referentes a esse tema. Isso significa a restrição da presença de doulas e, mesmo, com o devido aconselhamento da gestante/casal/família, restringir acompanhantes e visitas. Para minimizar o sentimento de solidão, principalmente, nos partos de baixo risco deve-se estimular a participação de forma virtual[3].

No entanto, qual o atual posicionamento do judiciário?

Com o passar dos dias, ao constatar certas violações ao direito da gestante, o Judiciário se tornou um meio eficaz para assegurar o direito ao parto humanizado à parturiente. O Desembargador Relator Alexandre Bastos, num caso julgado em maio de 2020, no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), reformou a decisão do juízo a quo e, assim, determinou que a gestante tivesse resguardado o seu direito de ter um acompanhante no momento do parto. Colaciona-se a referida decisão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – TUTELA DE URGÊNCIA – GARANTIA DO PARTO HUMANIZADO – DIREITO DA PARTURIENTE AO ACOMPANHANTE QUANDO DO PARTO – PRESENTE OS REQUISITOS PARA CONCESSÃO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA (ARTIGO 300 DO CPC) – CONCESSÃO DA TUTELA – DECISÃO REFORMADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I. Certo que é direito da parturiente de estar acompanhada quando do parto e, não menos certo, que é direito de todos a garantia da saúde pública, mormente, se em risco de contaminação diante da pandemia derivada da proliferação do covid-19, de forma que estes interesses conflitantes devem ser sopesados nos pratos afilados da balança para que se chegue a uma decisão justa, efetiva e proporcional do art. 6º e art. 8º, ambos do CPC e, também, leve em consideração as consequência práticas da decisão do art. 20 da LINDB, no sentido de garantir o direito da gestante. Contudo, com aplicação das restrições colocadas pela órgãos competentes (OMS e Ministério da Saúde), como mecanismo suficientes para se evitar a contaminação pelo covid-19. II. Recurso conhecido e provido[4].

Contudo, apesar do Judiciário estar fundamentando a sua razão de decidir no sentido de assegurar o direito à gestante mesmo em época de pandemia, no início do mês de junho, a Companhia de Operações Especiais (COE), do estado da Bahia, emitiu uma nota técnica recomendando o oposto[5]. De modo excepcional, apenas as “gestantes menores de 16 anos incompletos ou com deficiência ou patologias que dificultem o seu deslocamento ou entendimento das orientações” teriam direito a acompanhante.

Por consequência disso, o Juiz de Direito, Bel. Almir Edson Lélis Lima, da 2ª Vara dos Feitos de Relação de Consumo, Cíveis, Comerciais, Acidente de Trabalho e Fazenda Pública, do Foro da Comarca de Guanambi/BA, entendeu pelo não deferimento da tutela de urgência. No caso, a gestante requereu a autorização para que o genitor da criança fosse o seu acompanhante durante o parto. Veja-se a decisão:

[…] Trata-se de Mandado de Segurança com pedido liminar, no qual a Impetrante com 39 (trinta e nove) semanas de gestação, podendo ingressar em trabalho de parto em dias ou horas, requer autorização para que o genitor da criança possa acompanhar a parturiente durante todo o trabalho de parto e preste toda a assistência após o mesmo, inclusive, devendo ser orientado dos protocolos de segurança e pelo fornecimento integral dos Equipamentos de Proteção Individual necessário.

Examinando-se as provas trazidas com a inicial, em análise sumária, não exauriente, ao contrário do que afirmado na inicial, penso que não estão presentes os requisitos exigidos pelo art. 7º, inciso III da Lei 12.016/09.

Salta aos olhos, que conforme Nota Técnica COE Saúde nº 69 de 02 de junho de 2020, diante da pandemia do Covid-19, a presença do acompanhante será restrita as gestantes menores de 16 anos incompletos ou com deficiências ou patologias que dificultem o seu deslocamento ou entendimento das orientações, recomendando-se a suspensão temporária dos acompanhantes durante a evolução do trabalho de parto, parto e no alojamento conjunto, como se observa da Nota Técnica anexada pelo próprio impetrante.

Não vislumbro, portanto, qualquer relevância na fundamentação inicial, nem na prova até aqui produzida, ainda que haja um suposto risco de ineficácia da medida, caso apreciada em momento oportuno, uma vez que a informação é no sentido de que o parto será realizado nos próximos dias ou mesmo horas[6]. […]

Ao ter contato com uma decisão desse teor, por óbvio, a gestante tem a sensação de ter o momento de seu parto incompleto. Afinal, o genitor é tão responsável pela criança quanto a genitora e, portanto, deveria atuar ativamente nesse processo, não apenas como mero espectador de filmagem e/ou videoconferência. Corrobora para esse pensamento a Nota Te?cnica nº 10/2020-COCAM/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS[7], a qual sugere a presença de acompanhante, conforme a Lei Federal nº 11.108, de 7 de abril de 2005 (Lei do Acompanhante).

Algumas Orientações para o Acompanhante

É válido ressaltar algumas orientações, a fim de que o direito da gestante de ter um acompanhante no momento do parto seja respeitado. Portanto, em conformidade com a Nota Técnica nº 10/2020 e com o momento de pandemia da COVID-19 em que atualmente vivemos, o acompanhante:

  •  Deve estar assintomático e não ser do grupo de risco;
  •  Com idade entre 18 e 59 anos;
  •  Sem contato domiciliar com pessoas com síndrome gripal ou infecção respiratória comprovada por SARS-CoV-2.

Contudo, para parturientes com suspeita ou confirmação do novo coronavírus (sintomáticas), deve-se analisar o caso concreto, a fim de assegurar os direitos da gestante e os cuidados acerca da COVID-19. Por exemplo, o acompanhante fazer uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) durante todo o procedimento, já que não é recomendável que a gestante permaneça de máscara durante o parto.

Conclusão

Conforme dito anteriormente, o entendimento que vem sendo consolidado é o de que gestantes têm direito a acompanhante quando do parto, mesmo em época de pandemia da COVID-19. Entretanto, ainda persistem decisões divergentes; algumas delas pautadas em notas técnicas estaduais, contrariando as emitidas pelo Ministério da Saúde.

Por fim, o Judiciário, em consonância com as recomendações de saúde, deve assegurar ao máximo o direito da gestante de ter um acompanhante quando do parto. Esse momento não deve ser ceifado da família, quando não há riscos para o bebê e os demais membros da família e profissionais da saúde. Evidentemente que vivemos numa situação pandêmica, todavia, isso não permite que sejam afastados direitos inerentes à gestante e aos demais membros da família, desde que realizados com cautela.

Este artigo foi originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/o-direito-da-gestante-a-um-acompanhante-no-momento-do-parto-e-possivel-mesmo-em-epoca-de-pandemia-da-covid-19/


[1] Estagiária do escritório Schiefler Advocacia. Graduanda, atualmente, da sétima fase em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) – 2015.

[2] Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente.

§ 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder Executivo.

[3] SOGIMIG. Coronavírus na Gravidez: Considerações e Recomendações. Disponível em: < http://www.sogimig.org.br/wp-content/uploads/2020/03/Sogimig-Orienta%C3%A7%C3%B5es-sobre-Covid-19-1.pdf>. Acesso em 25 de junho de 2020.

[4] TJMS. Agravo de Instrumento n. 1403938-13.2020.8.12.0000, Campo Grande, 4ª Câmara Cível, Relator (a): Des. Alexandre Bastos, j: 30/05/2020

[5] A presença do acompanhante deve ser restrita às gestantes menores de 16 anos incompletos ou com deficiências ou patologias que dificultem o seu deslocamento ou entendimento das orientações. Este acompanhante deverá ser apenas um (01) durante todo o período de internamento, lembrando que este deverá estar saudável, sem sinais de síndrome gripal e fora do grupo de risco para complicações na eventualidade de uma infecção pelo SARS-CoV-2. Neste sentido e buscando um alinhamento entre as múltiplas ações desenvolvidas nas diversas instâncias de atenção à saúde no Estado, e considerando o cenário epidemiológico e a existência de pessoas assintomáticas, mas potencialmente contaminantes, recomendamos a suspensão temporária dos acompanhantes durante a evolução do trabalho de parto, parto e no alojamento conjunto. Excepcionalmente deve-se garantir que a mulher possa escolher um (01) acompanhante para conhecer a criança recém-nascida no pós-parto imediato, reforçando que o (a) escolhido (a) deve estar fora do grupo de risco para complicações de uma infecção pelo SARS-CoV-2 e sem sintomas respiratórios.

(COE, Nota Técnica COE saúde nº 69 de 02 de junho de 2020. Orientações às Unidades de Saúde de Assistência às Gestantes, Puérperas e Crianças Menores de 2 anos no contexto da Pandemia da Covid-19. Disponível em: < http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/NT_n_69___Orientacoes_as_unidades_de_saude_de_assistencia_as_gestantes__puerperas_e_criancas_menores_de_2_anos.pdf>. Acesso em 26 de junho de 2020).

[6] Foro da Comarca de Guanambi/BA. Mandado de Segurança Cível o n. 8001159-53.2020.8.05.0088, Guanambi, 2ª Vara dos Feitos de Relação de Consumo, Cíveis, Comerciais, Acidente de Trabalho e Fazenda Pública, Juiz de Direito Bel. Almir Edson Lélis Lima, j: 23/06/2020.

[7] 2.6.5. Acompanhantes: garantido pela Lei Federal nº 11.108, de 7 de abril de 2005, sugere-se a presenc?a do acompanhante no caso de pessoa assintomática, com idade entre 18 e 59 anos8 e na?o contato domiciliar com pessoas com si?ndrome gripal ou infecc?a?o respirato?ria comprovada por SARS-CoV-2
(BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Nota Te?cnica nº 10/2020-COCAM/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Atenc?a?o a? Sau?de do Rece?m-nascido no contexto da Infecção pelo novo Coronavi?rus (SARS-CoV-2), 09 Abr. 2020. Disponível em: < https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/04/notatecnica102020COCAMCGCIVIDAPESSAPSMS_003.pdf>. Acesso em 26 de junho de 2020).

Como citar e referenciar este artigo:
PORATH, Maria Luisa Machado. O direito da gestante a um acompanhante no momento do parto: é possível mesmo em época de pandemia da COVID-19?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-de-familia/o-direito-da-gestante-a-um-acompanhante-no-momento-do-parto-e-possivel-mesmo-em-epoca-de-pandemia-da-covid-19/ Acesso em: 28 mar. 2024