Direito Constitucional

Comentários sobre decisão judicial que homologou arrematação nula

Agora em dezembro de 2022 foram julgados pelo Juízo de Itapagipe – MG, em processo de execução, embargos declaratórios opostos a decisão através da qual foi confirmada homologação de arrematação de pequena propriedade rural, a despeito da vedação constitucional e da absoluta invalidez do procedimento adotado, como se vê destas considerações, sobretudo quanto à evidente atecnia procedimental.

SANTO TOMÁS DE AQUINO (séc. XIII), em sua Suma Teológica, hoje Conceito de Lei, Itália, avaliou a Lei como:

Um ordenamento racional para o bem comum, promulgada pelo responsável pela comunidade.”

E, de fato, as regras jurídicas são “efetivamente descobertas pela razão” e conectadas à totalidade das regras da vida social, como afirma TOBIAS BARRETO.

Daí a pretensa universalidade dos programas de ensino jurídico nas Faculdades sérias (que existirem ainda).

Ao curso dos tempos parece ter havido neste país, no exercício prático da ciência do Direito, criação de uma confusão entre “possível modificação da Lei” visando ao seu aperfeiçoamento, amoldando-a à atualidade pelo legislador; com deformação da Lei vigente, na sua aplicação pelo julgador no desenlace de caso concreto (Constituição Federal, art. 22, e § un.).

Semelhante desordem implica violação ao princípio da SEGURANÇA JURÍDICA, que caracteriza-se como sub-princípio básico do ESTADO DE DIREITO (Cf. CAIO CÉSAR PATRIOTA, in JusBrasil), aliás de importância equivalente à possibilidade de se VIVER NESTE MUNDO.

A Lei também tem vida, a exigir que não seja sepultada antes de seu fenecimento através dos caminhos que a levem regularmente à extinção, não sendo autorizada sua abolição ou rejeição quando vigente e posta a disciplinar fenômenos jurídicos determinados.

Daí por que a decisão judicial referida descaracteriza-se quando nega vigência à Lei, sobretudo fundamental, e cria pseudo-direitos que não se justificam, refletindo o ato um empirismo incivil diante de uma segura ordem jurídica vigente, no caso reduzida a uma irrealidade, a uma fantasia.

Em verdade há negócios jurídicos que podem realizar-se mesmo através de gestos, mímicas, mas em se tratando de negócio relativo a transferência de DIREITO REAL de valor superior a 30 (trinta) salários mínimos, v.g, só se dá através de forma corretamente escrita, segundo estabelecido pela Lei (Código Civil, art. 108).

Demais disso, a decisão comentada parece desacautelada, imponderada, ao trazer à baila o inc. I, do § 1º do art. 903 do Código de Processo Civil, e a dizer que as arrematação apenas será invalidada, quando realizada por preço vil OU COM OUTRO VÍCIO

Ora, conforme esclareceu a maior autoridade intelectual na área da Ciência das Nulidades que viveu neste país, o Dr. MARTINHO GARCEZ, em obra de referência há mais de um século (Nullidade dos Actos Jurídicos, 1910, 2.ª ed., pág. 21),

Nulidade é um vício que impede um ato ou convenção de ter existência legal e produzir efeito.”

Como visto, ao enxergar, em tese, que a única invalidade da arrematação judicial decorre de operação a PREÇO VIL “OU OUTRO VÍCIO”, a decisão incluiu a deficiência por nulidade, mas ao decidir a propósito renegou a lei neste ponto, DESACEITOU O QUE RECONHECEU, numa prática insegura e antirrética em descompasso com a prática de uma verdadeira JUSTIÇA.

Empós, a decisão, num rasgo aventuresco, praticando grave “equívoco”, mediante sua ocultação através de reprovação da tese contrária, atinente ao “disparate” levado a cabo pelo LEILOEIRO, expressamente admitido e justificado na decisão mediante fundamento em que o leiloeiro nomeado, na modalidade eletrônica, só representou o arrematante por ocasião da lavratura do auto de arrematação, através de procuração com poderes específicos, e não na etapa de lances, razão pela qual não há ilegalidade, sobretudo porque inexiste objeção legal que vede tal prática, assegurando que as razões contrárias em verdade carecem de embasamento jurídico.

Assevera ainda a decisão, que, como afirmado, não existe qualquer vício no auto de arrematação ou inobservância aos arts. 901 e seguintes do Código de Processo Civil que justifique o acolhimento do pleito da parte executada, levando em conta a comprovação do depósito do valor integral e não vil do lance oferecido pelo alegado pseudo arrematante aliado à subscrição tardia do auto de arrematação pelo magistrado, restando perfeito, acabado e irretratável o ato alienativo.

Ao que se vê da prática decisional sub examine, a alienação forçada foi julgada “como realizada” sem ofensa aos arts. 890 e 901 do NCPC, com fundamento em que as diligências sobrevindas, como expedição de mandado imissório, pagamento, que não remedeiam o vício da incoerência ou da contradição.

Trata-se, ao que se observa, de antinomia entre a premissa e a conclusão no ventre da própria decisão.

De fato, atesta o decisum que as razões apresentadas pelos executados carecem de embasamento jurídico, por INEXISTIR VEDAÇÃO à realização de hasta pública, ao que se observa, mediante arrematação secreta, dissimulada, DOMÉSTICA, pelo leiloeiro representando o pseudo arrematante, id est, vendendo e comprando a um só tempo, numa aparente socapa, traduzida por negócio bilateral feito unilateralmente, id est, o auxiliar da justiça por si e pelo arrematante numa operação ardilosa, legalmente inválida cuja desconsideração da alegação pela decisão implica grave ultraje ao sistema jurídico pátrio.

Daí, sem razão o ato ao afirmar que o alegado a respeito pelo executado CARECE DE EMBASAMENTO JURÍDICO, SEM EXPOR UM MINÍMO DE SUBSTRATO APLICÁVEL PARA AMPARAR TAL ABSURDIDADE.

Em prosseguindo, a decisão proclama que além disso, nos termos do art. 903, § 4.º, do Código de Processo Civil, expedida a carta de arrematação ou ordem de entrega, a invalidação da arrematação deverá ser pleiteada através de ação autônoma, em cujos autos o pseudo arrematante figurará como litisconsorte necessário, acrescentando que a via da impugnação para análise da pretensão formulada pelo executado ostenta-se imprópria, a justificar a rejeição de suas razões.

Ao que se percebe, valendo-se da prática de atividades processuais vistas, p. ex., pelo jurista abalizado SOVERAL MARTINS como INJUSTIÇA ACELERADA, e não JUSTIÇA CÉLERE, a decisão explicita que o procedimento executório já está concluído, tendo sido determinada expedição açodada de atos, como imissão na posse sobre o imóvel, levantamento de valores, depósitos em favor do exeqüente, parece que tudo sem intimação aos executados e a despeito de recursos em andamento.

Desse ponto também ressai equívoco inominável, vez que a “nulidade de ordem pública” não se sujeita à PRECLUSÃO e pode ser alegada em quaisquer fase e grau de jurisdição, sobretudo porque o AUTO DE ARREMATAÇÃO examinado é falto de ASSINATURAS QUE LHE FARIAM PERFEITA E ACABADA (NCPC, art. 903).

Nesse ponto incide a contradição apontada, atrelada à injuridicidade face o desastre expressional do decisório conforme se alegou.

E, a invalidez absoluta do processo, por ser de ordem pública, pode ser alegada e reiteradamente indicada, visto tratar-se de hipótese em que admite-se seja a questão apropositada decidida e “redecidida”, mesmo ex officio.

Isto, aliás é o que se aprende, através de ensinamentos proclamados pelo EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, ut se vê:

Essa proibição de redecidir, todavia, não abrange questões de ordem pública (pressupostos processuais, condições da ação, et cætera).” (Curso Avançado de Processo Civil, 15ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, vol. I, p. 312-313, apud Ac. TJMG, Agr. Instr. 1.0024.09.645942-5/002, Belo Horizonte, Rel. Des. JOSÉ FLÁVIO DE ALMEIDA).

INEGÁVEL NULIDADE DA ARREMATAÇÃO

Além do vício básico demonstrado nos autos (impenhorabilidade), como não podia ser diferente, a arrematação realizada, do imóvel, a despeito de tratar-se de ato relevante, a implicar desfazimento de propriedade indene contra penhora, o ato de alienação teria sido realizado mediante desprezo a toda a ordem jurídica brasileira, vez que, embora traduzindo a arrematação ato jurídico solene sujeito a cumprimento de requisitos impostergáveis (NCPC, art. 903), no caso, como se vê da leitura do decisório, o leilão deu-se sem placitação do Juiz que preside ao processo e sem assinatura do arrematante na oportunidade do art. 901 do mesmo codex.

Embora impedido de representar interessados no processo, foi o leiloeiro firmatário da escritura oficial (auto de arrematação) por si e no lugar do pseudo arrematante como procurador.

Por razões lógicas, e por força da exigência de prática de atos pelo Juízo com AUSTERIDADE, a fim de se vislumbrar a honorabilidade, a pureza, que devem presidir os atos da instituição relativa ao JUDICIÁRIO, ato esse praticado pelo leiloeiro arrematando bem em leilão judicial no lugar do pseudo arrematante investe contra a ordem, a moral e a essência do sistema jurídico, ainda que com subterfúgio de uma procuração, como se vê expresso no art. 890 – I e V do NCPC, desenganadamente violado, como violado o inciso II do mesmo art. 890, que veda arrematação por “procurador” quanto aos bens de cuja alienação esteja encarregado.

O Prof. RODRIGO MELO DO NASCIMENTO, in A Assinatura de Atos Processuais em Meio Eletrônico explicita:

?Com o advento do processo eletrônico, surgiu a necessidade da assinatura segura de atos processuais praticados eletronicamente. Para a garantia da integridade e autenticidade dos atos processuais, a assinatura eletrônica deve ser realizada mediante a adoção de certificado digital vinculado à ICP-Brasil, sendo certo que outras modalidades de assinatura, como aquelas de login e senha, não oferecem a necessária segurança para prática desses atos. No presente artigo, aborda-se a assinatura de atos processuais praticados em meio eletrônico em seus aspectos jurídico e técnico, com especial ênfase à certificação digital, sem a qual o ato processual reputa-se inexistente.?

Na hipótese ocorre fato de o pseudo arrematante não estar autorizado ao uso de assinatura eletrônica do leiloeiro.

Ademais, no caso em evidência não há oportunidade à validez do “remendo” do auto de arrematação através de rubrica do julgador, porque teria vindo a desoras (meses depois), e conforme se vê do art. 901 do Novo Código de Processo Civil, que indica exigência de a arrematação constar de auto que será lavrado de imediato, de molde a deixar claro que o auto deve nascer regular, sem violação dos requisitos vindos no art. 903 e seus incisos e parágrafos.

EFEITOS DA NULIDADE

E, em conclusão, não há falar em ausência de comprovação de que a nulidade, nesta hipótese tenha causado prejuízo; primeiro, porque a alienação de coisa assim, com desprezo ao direito do proprietário já vem com prejuízo congênito; em segundo lugar, porque a lei brasileira não condiciona a decretação de nulidade à incidência de prejuízo, ao contrário do direito francês com aquele inaplicável brocardo “pas de nullité sans grief” que, além de não guardar semelhança com o Direito brasileiro, para o caso ostenta-se de modo inverso, vez que o art. 282, § 1º do NCPC determina que, se o ato nulo não prejudicar as partes , não será repetido, vindo o art. 283, par. ún., a estabelecer que o ato inválido poderá ser aproveitado, “desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer das partes.”

Disto se conclui que na Ordem Jurídica brasileira prevalece a não causação de “prejuízo” pela “nulidade”, não o exigindo para seu reconhecimento.

 

EULÂMPIO RODRIGUES FILHO

Graduado pela Universidade Federal de Uberlândia

Doutor e Pós-Doutor em Direito

 

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Eulâmpio Rodrigues. Comentários sobre decisão judicial que homologou arrematação nula. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/comentarios-sobre-decisao-judicial-que-homologou-arrematacao-nula/ Acesso em: 21 nov. 2024