Lucas Hellmann[1]
Uma notável modificação no procedimento licitatório promovida pela Lei nº 14.133/2021 em relação à Lei nº 8.666/1993 foi a adoção, como regra geral (inclusive para a modalidade concorrência), do encadeamento de fases que já era previsto na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), com a fase de julgamento das propostas, a fase de habilitação e, na sequência, a fase recursal una, na qual se debatem tanto as matérias relativas às propostas quanto as relativas à habilitação da licitante classificada em primeiro lugar.
Neste novo procedimento, a Lei nº 14.133/2021 estabeleceu a necessidade de que as licitantes manifestem, previamente à fase recursal, a intenção de recorrer contra eventual decisão, para poderem exercer esse direito. Esta regra também já era encontrada na Lei nº 10.520/2002, mas que não se aplicava às licitações na modalidade concorrência, regidas até então apenas pela Lei nº 8.666/1993.
No entanto, ainda que não seja novidade aos profissionais que já atuaram com pregão, a manifestação da intenção de recurso da Lei nº 14.133/2021 sofreu sensíveis alterações em relação ao previsto na Lei nº 10.520/2002.
A manifestação da intenção de recurso na Lei nº 14.133/2021
Para impugnar o julgamento de propostas ou a habilitação (ou inabilitação) de licitantes, os interessados devem antes manifestar a intenção de recorrer, o que deve ser feito imediatamente, sob pena de preclusão (isto é, a perda da capacidade de agir) dessa faculdade processual, conforme determina o art. 165, § 1º, inciso I, da Lei nº 14.133/2021.
O mesmo art. 165, § 1º, inciso I, da Lei nº 14.133/2021, apresenta, no entanto, uma redação ambígua, que leva a mais de uma interpretação possível sobre o marco inicial a ser considerado para a manifestação da intenção de recurso nas licitações.
Uma primeira interpretação possível é de que a manifestação deve ser feita imediatamente após o ato que se pretende impugnar, de forma que haveria, em tese, duas oportunidades para manifestação de intenção de recurso: a primeira, logo após o julgamento das propostas, e outra, logo após a fase de habilitação, observada ainda a possibilidade de inversão dessas fases (conforme art. 17, § 1º).
Essa era a lógica no Decreto nº 7.581/2011 (art. 53), que regulamentou o Regime Diferenciado de Contratação em âmbito federal (“Art. 53. Os licitantes que desejarem recorrer em face dos atos do julgamento da proposta ou da habilitação deverão manifestar imediatamente, após o término de cada sessão, a sua intenção de recorrer, sob pena de preclusão”).
A segunda interpretação dá continuidade à prática dos atuais pregões regidos pela Lei nº 10.520/2002 (esta que não impunha essa dificuldade hermenêutica), e infere que a manifestação de recurso também é realizada em apenas um único momento, logo após a declaração da licitante provisoriamente vencedora do certame, dando início à fase recursal (ou seja, apenas depois da fase de habilitação, ou, se adotada a inversão de fases do art. 17, § 1º, após o julgamento das propostas).
Essa segunda interpretação foi adotada em âmbito federal, por meio da Instrução Normativa SEGES/ME nº 73/2022, que regulamenta a Lei nº 14.133/2021:
Art. 40. Qualquer licitante poderá, durante o prazo concedido na sessão pública, não inferior a 10 minutos, de forma imediata após o término do julgamento das propostas e do ato de habilitação ou inabilitação, em campo próprio do sistema, manifestar sua intenção de recorrer, sob pena de preclusão, ficando a autoridade superior autorizada a adjudicar o objeto ao licitante declarado vencedor.
Assim, nas licitações promovidas com base na Lei nº 14.133/2021 no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, a manifestação é realizada em apenas um único momento, logo após a declaração da licitante provisoriamente vencedora do certame.
Para os órgãos e entidades das demais esferas, cabe às licitantes a leitura atenta dos regulamentos próprios e dos editais de licitação, para que possam verificar como serão construídas as regras da fase recursal e em que momento deverá ser feita a manifestação da intenção de recurso em cada processo licitatório.
De qualquer forma, em ambas as hipóteses, evidentemente, o marco inicial para a manifestação de recurso conta da data de publicização ou intimação do ato, salvo se esta última ocorrer durante a própria sessão de licitação.
Ademais, diferentemente do que estabelece a Lei nº 10.520/2002, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não exige que as licitantes interessadas motivem a intenção de recurso. Em nosso entender, essa flexibilização é um avanço da legislação, uma vez que, não raramente, é possível encontrar certames nos quais os pregoeiros confundem a análise de existência de motivação com a análise do próprio mérito recursal, por vezes até rejeitando sumariamente a intenção de recurso sob a justificativa de que o futuro recurso seria ou deveria ser indeferido.
Pode-se supor, no entanto, que mesmo não havendo a imposição legal de motivação da intenção de recurso, não será difícil encontrar editais de licitação regidos pela Lei nº 14.133/2021 com essa exigência, sobretudo se forem aproveitadas as minutas elaboradas no antigo regime. Embora a imposição desta obrigação (motivar a intenção de recurso) nos editais da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos possa ser considerada como uma regra ilegal, é importante uma leitura atenta de cada instrumento convocatório para obter vantagem estratégica na competição.
A rejeição sumária da manifestação de intenção de recurso
Ainda que não haja mais necessidade de motivar a intenção de recorrer, é possível que o pregoeiro ou a comissão de licitação venham a rejeitar sumariamente a intenção de recurso, por entender, por exemplo, que essa manifestação não observou o prazo fixado em edital.
É evidente, no entanto, que as autoridades administrativas não estão isentas do cometimento de falhas e equívocos também em relação a este juízo de admissibilidade das manifestações de intenção de recurso. Neste cenário, como deve agir o licitante que eventualmente teve sua intenção de recurso sumariamente rejeitada? Entendemos que há mais de uma forma de provocar o órgão licitante para corrigir essa decisão.
De acordo com a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o recurso hierárquico é cabível apenas nos casos elencados no inciso I do artigo 165, sendo o pedido de reconsideração o instrumento subsidiário, para os casos em que não é cabível o recurso hierárquico. Desta forma, uma possibilidade é a interposição de um pedido de reconsideração por parte dalicitante, fundado no inciso II do artigo 165 da Lei nº 14.133/2021, dirigido ao próprio agente ou à comissão responsável pela condução do certame, no qual requer a admissão da manifestação de intenção de recurso, pelos fundamentos que entender adequados.
Esse pedido pode ser formalizado em documento próprio, logo após a cientificação da rejeição da intenção de recurso, ou mesmo imediatamente, na própria sessão de licitação – em sendo presencial a sessão, o pedido pode ser feito oralmente, com o devido registro em ata; sendo realizada virtualmente, o pedido pode ser formalizado por meio do chat ou outro meio que permita a comunicação com o órgão.
Outra possibilidade, que pode ser adotada tanto de forma autônoma quanto na hipótese de indeferimento do pedido de reconsideração, é a apresentação de um pedido de reforma da decisão que inadmitiu a intenção de recurso (e a consequente abertura do prazo recursal), com base no direito constitucional de petição (art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal), dirigida à autoridade hierarquicamente superior ao pregoeiro ou à comissão de licitação.
Embora possuam pleno embasamento jurídico, a prática advocatícia mostra que essas duas formas de provocação da Administração têm suas chances de sucesso diminuídas se não forem julgadas de forma célere, conforme avança o processo licitatório para além da fase recursal.
Sendo assim, uma terceira forma de provocação do órgão licitante é a própria interposição do recurso administrativo, no prazo que seria conferido caso a manifestação da intenção de recurso tivesse sido aceita. Com efeito, nesta peça recursal a licitante pode incluir capítulo próprio para demonstrar as razões de fato e/ou de direito que demonstram a inadequação da rejeição sumária da intenção de recurso (isto é, as razões pelas quais a manifestação deveria ter sido admitida), com o consequente pedido de reforma da decisão e recebimento das razões recursais.
Essa última solução, que pode ser adotada de forma isolada ou cumulativamente com as demais, apresenta-se também como uma forma de compelir a Administração a analisar as razões de recurso da licitante e, assim, corrigir eventual ilegalidade ocorrida no processo. Isso porque, ainda que o órgão continue a entender que a manifestação de intenção de recurso não deveria ser admitida, estando diante de eventual ilegalidade na condução do certame, os gestores públicos têm o dever de corrigi-la.
Como se observa, são diversas as mudanças e inovações trazidas pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos e, assim, as empresas e profissionais que desejam entrar e/ou se manter no mercado de licitações públicas devem, necessariamente, buscar atualização sobre este novo e importante diploma legal.
Este artigo foi originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/a-manifestacao-de-intencao-de-recurso-na-lei-no-14-133-2021/
[1] Advogado no escritório Schiefler Advocacia