Gustavo Schiefler[1]
As comunicações realizadas entre a Administração Pública e particulares durante a etapa preparatória de uma contratação pública representam um fenômeno equivalente a um tabu no Brasil.
Desconfia-se que a prática é reprovável, seja sob uma perspectiva moral ou legal. Desconfia-se que a prática é proibida, que é imprópria, que é sinônima de direcionamento ilícito de licitação pública. A justificativa para essa percepção é o fato de que, historicamente, muitos escândalos de corrupção descobertos foram estruturados, justamente, a partir de comunicações informais e extraprocessuais, que direcionavam as contratações a determinados particulares, em conluio com gestores públicos.
A verdade, no entanto, é que esses diálogos público-privados ocorrem cotidianamente e são indispensáveis, legítimos e essenciais para o bom desempenho das atividades administrativas e para o sucesso dos processos de contratação pública.
A grande questão é que essas comunicações não podem acontecer de qualquer forma. A preocupação, portanto, é com a forma, ou seja, como essas comunicações devem acontecer, e não se podem acontecer.
1. A Nova Lei de Licitações institucionalizou as comunicações entre o mercado e a Administração Pública
A novidade é que a Lei nº 14.133/2021 institucionalizou diversos institutos de diálogo público-privado durante o processo administrativo contratual, inclusive o levantamento de mercado, como estratégia para se conhecer os produtos disponíveis durante o planejamento da contratação, e a tradicional e diariamente realizada pesquisa de preços com fornecedores.
É preciso deixar claro que as comunicações com o mercado existem porque é natural que os agentes públicos precisem trocar informações com os particulares, seja para conhecer os interesses coincidentes e contrapostos, os riscos, as ofertas e as demandas disponíveis, seja para oferecer ou discutir alguma oportunidade negocial.
Essas comunicações são inevitáveis e serão essenciais sempre quando houver a necessidade de se descobrir uma solução para a administração pública sobre a qual os agentes públicos não possuem o suficiente conhecimento técnico, ou então quando se busca a contratação de uma solução inédita ou personalizada, ou ainda, quando a administração pública busca de forma proativa os potenciais fornecedores para um determinado contrato administrativo.
Nesses casos, o diálogo público-privado é condição para que a solução seja identificada e estruturada. Caso essa comunicação inexista, a administração pública correrá o risco até mesmo de paralisia e ineficiência, pois, incapaz de desenvolver as soluções autonomamente, não poderá satisfazer adequadamente as suas necessidades.
Dentre todos os elementos documentais indicados pela Lei nº 14.133/2021 como integrantes da instrução processual de uma licitação pública, enfatiza-se que houve a consagração de que o planejamento de um procedimento licitatório pode envolver um prévio levantamento de mercado (art. 18, §1º, V, da Lei nº 14.133/2021).
Ou seja, a Lei nº 14.133/2021 reconhece expressamente algo que, apesar de óbvio, costuma ser motivo de muita insegurança: a Administração Pública necessita obter informações de mercado durante o planejamento de suas contratações, para o que deverá empreender diálogos público-privados com potenciais fornecedores, em levantamento de mercado.
2. O reconhecimento da legitimidade dos diálogos público-privados durante a etapa preparatória da licitação
Para quem trabalha com licitação pública, é relevante saber também que, ao menos desde o ano de 2020, a comunidade jurídica brasileira dedicada ao direito administrativo reconhece que essas comunicações entre a Administração Pública e o mercado são legítimas.
Em agosto de 2020, a partir de uma proposta de enunciado apresentada por Gustavo Schiefler, foi aprovado, na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o seguinte enunciado:
Enunciado nº 29 – I Jornada de Direito Administrativo (CJF/STJ) A Administração Pública pode promover comunicações formais com potenciais interessados durante a fase de planejamento das contratações públicas para a obtenção de informações técnicas e comerciais relevantes à definição do objeto e elaboração do projeto básico ou termo de referência, sendo que este diálogo público- privado deve ser registrado no processo administrativo e não impede o particular colaborador de participar em eventual licitação pública, ou mesmo de celebrar o respectivo contrato, tampouco lhe confere a autoria do projeto básico ou termo de referência. |
Este enunciado antecipou a regra que pode ser extraída, agora, a partir da previsão na NLLCA, segundo a qual levantamento de mercado é uma etapa inerente ao Estudo Técnico Preliminar (ETP), realizado durante a preparação de uma contratação pública. Isso traz uma proteção adicional aos agentes econômicos que, de boa-fé, contribuem formalmente com o levantamento de mercado realizado para a instrução do processo de contratação pública.
Em projetos contratuais mais complexos, a Administração Pública deve considerar a realização de um procedimento de manifestação de interesse (PMI), também previsto na Lei nº 14.133/2021 (art. 81). Por intermédio do PMI, a participação dos diferentes interessados no projeto de contratação pública acontecerá de forma organizada e regulamentada, sendo que, neste caso, a contribuição dos particulares poderá acontecer de modo mais intenso, incluindo até mesmo as minutas do edital, do termo de referência ou projeto básico e demais documentos.
3. Na prática, como devem ocorrer os diálogos público-privados?
Na prática, se você é um empreendedor, isto significa que:
1. Desde que ocorra formalmente, não é proibido se comunicar com a Administração Pública, antes de uma licitação pública, com o intuito comercial, ou seja, em atividade de prospecção, para apresentar informações técnicas sobre os produtos e serviços oferecidos por sua empresa;
2. Esses diálogos público-privados devem ser realizados preferencialmente a partir de meios institucionais de comunicação, a exemplo da troca de e-mails com endereços eletrônicos institucionais (fulano@nomedaempresa.com.br e fulano@nomedoorgaopublico.com.br, por exemplo). A orientação é válida tanto para os remetentes como para os destinatários;
3. As comunicações devem ser claras, objetivas e completas. Um observador externo, caso leia as comunicações, deve conseguir compreender adequadamente o contexto em que este diálogo está acontecendo. Não é momento para apelidos, demonstração de intimidade, piadas, tampouco é adequado adotar presunções de que o interlocutor sabe do que se está falando;
4. Durante as licitações públicas, as comunicações devem ocorrer exclusivamente com a comissão de licitação ou pregoeiro;
Na prática, se você é um agente público, isto significa que:
1. É permitido entrar em contato com empresas atuantes na área de interesse para se realizar um levantamento de mercado, a fim de que as alternativas disponíveis para a contratação sejam conhecidas antecipadamente, ainda durante o processo decisório sobre qual será o objeto do futuro contrato;
2. Para a melhor instrução do processo e para que sejam legítimas, essas comunicações devem ser registradas e depositadas integralmente no respectivo processo administrativo. Isto também significa que, sempre que possível, os diálogos público-privados devem ocorrer por escrito e que a oralidade (conversas por telefone, reuniões presenciais ou por videoconferência), se não puder ser registrada (gravação, por exemplo), deve ser evitada. Se isto não for possível, ao menos deve existir uma ata ou registro de que tal comunicação ocorreu e qual foi o seu teor;
4. Lembrete final: a cautela a ser adotada em qualquer diálogo público-privado
O exercício de controle sobre a administração pública depende de que os atos administrativos sejam revestidos de forma, para que possam ser resgatados e analisados posteriormente, se necessário. E, como se sabe, a formalização sequencial e encadeada de atos administrativos compõe o processo administrativo: o instrumento em que são registradas as manifestações da administração pública e dos particulares interessados até que seja alcançada uma determinada conclusão.
O processo administrativo é o meio natural de atuação da administração pública, sendo nele registrada toda a memória administrativa. É o necessário instrumento por meio do qual se realiza o controle e se promove publicidade e participação.
A orientação é de que, quando as comunicações ocorrerem por escrito, seja promovida a juntada integral de cópia dessas interlocuções no competente processo administrativo; quando ocorrerem oralmente, que seja reduzido a termo as informações essenciais sobre a comunicação, como a identificação dos interlocutores, o conteúdo das informações intercambiadas, a data e horário em que o diálogo se sucedeu e os meios de comunicação utilizados – sem prejuízo de uma formalização mais fidedigna ao conteúdo das comunicações, por meio do registro integral das comunicações, mediante gravação sonora ou audiovisual[2].
Uma comunicação fluida e legítima entre agentes públicos e particulares pode ser determinante para o sucesso de uma contratação pública. Como visto, isto pode ocorrer desde a etapa preparatória da licitação pública.
Este artigo foi originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/comunicacoes-entre-o-mercado-e-a-administracao/
[1] Advogado
[2] O conteúdo deste tópico foi redigido com inspiração em excertos da tese de doutorado de Gustavo Schiefler, publicada pela Editora Lumen Juris, sob o título de Diálogos Público-Privados (2018).