O artigo aborda o tema do direito subjetivo à nomeação de candidatos aprovados fora do número de vagas ofertadas em editais, quando a Administração demonstra a carência de pessoal naquelas funções específicas. Para tanto, parte-se de uma análise principiológica, que adota como pano de fundo o Recurso Especial nº 837.311, ao qual, recentemente, se atribuiu repercussão geral.
INTRODUÇÃO
A discussão acerca da existência ou não de direito subjetivo à nomeação de candidatos aprovados em concursos públicos fora das vagas oferecidas nos respectivos editais encontra-se perto de um consenso no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
O assunto é, até hoje, objeto de divergência entre as suas Turmas, o que enseja insegurança jurídica e frustra o objetivo de uniformização da jurisprudência constitucional – grande propósito da Corte [1].
O denominador comum deve surgir a partir da decisão de atribuição de repercussão geral ao Recurso Extraordinário 837.311[2], do Piauí, que versa sobre a nomeação de aprovados no concurso para Defensor Público daquele Estado, os quais não se encontravam dentro do número de vagas ofertadas pelo certame.
A questão central trazida pelo case consiste na demonstração de demanda por pessoal, externada pela abertura de novo concurso público durante a vigência do anterior. Assim, segundo argumentam os aprovados, o ato de nomeação deixaria de ser discricionário para se tornar vinculado, o que converteria a mera expectativa de direito em direito líquido e certo.
Anteriormente [3], a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado no sentido de que o aprovado como excedente só teria direito a ser nomeado caso fossem comprovados arbítrios ou preterições.
A 2ª Turma, pelo contrário, já havia decidido [4] que possuem direito subjetivo à nomeação os candidatos aprovados dentro das vagas ofertadas, bem como aqueles aprovados fora das vagas, desde que outras tenham sido criadas durante a vigência do certame.
Evidente, portanto, que a celeuma diz respeito à extensão da discricionariedade do administrador público em nomear os aprovados excedentes: se absoluta, sob pena de afronta ao princípio da separação de poderes; ou se limitada, a fim de evitar arbitrariedade.
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ADMINISTRATIVOS NO RE 837.311
A questão perpassa a discussão sobre o modelo de Administração Pública adotado no Brasil. Segundo ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro, a Reforma ocorrida mediante a Emenda Constitucional nº19/1998 tinha o objetivo de conferir maior autonomia ao administrador público, atribuindo-lhe maiores responsabilidades e substituindo o controle formal pelo controle de resultados. Com isso, evitar-se-ia o engessamento provocado pela interpretação do princípio da legalidade como sendo o estrito cumprimento do que a lei autoriza [5]. Ademais, dessa forma, o controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário restringir-se-ia a hipóteses muito reduzidas.
Ocorre que, como explica a mesma autora, o modelo brasileiro possui inspiração em dois sistemas diferentes: o europeu-continental e o anglo-saxão – ambos calcados na jurisprudência como fonte do Direito. Em tais sistemas, o papel do juiz é essencialmente o de um legislador, diferentemente do que ocorre com os magistrados brasileiros. Ademais, acrescenta a autora, a base normativa do Direito Administrativo brasileiro é a Constituição, o que enseja uma série de descumprimentos por parte do Administrador tupiniquim, a exemplo da burla à exigência de realização de concursos públicos e consequente contratação de terceirizados [6].
Com isso, se percebe que o modelo de uma Administração Pública mais autônoma não se adapta ao ordenamento jurídico pátrio. O estrito cumprimento da lei se faz necessário, à medida que evita o descumprimento sistemático da legislação constitucional, a qual concentra a grande parte da legislação administrativa, e que se caracteriza pela subjetividade dos princípios.
O exemplo dado por di Pietro, anteriormente citado [7], – de que o atual sistema facilita a burla de exigência de concurso público, implicando a contratação de grande número de terceirizados – pode ser interpretado extensivamente, trazendo à discussão o julgado em comento. É que a realização de concurso público antes do vencimento de certame anterior ainda vigente, deixando de lado aprovados fora do número de vagas ofertadas, implica afronta a princípios como a igualdade, a impessoalidade, a moralidade, a razoabilidade e a eficiência.
Sobre o princípio da igualdade, preleciona Dirley da Cunha Jr.[8]:
A exigência de igualdade decorre do princípio constitucional da igualdade, que é um postulado básico da democracia, pois significa que todos merecem as mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer tipo de privilégio ou perseguição. O princípio em tela interdita tratamento desigual às pessoas iguais e tratamento igual às pessoas desiguais.
Assim, estando todos os aprovados – dentro e fora das vagas oferecidas no edital do concurso – em situação igual, porquanto aprovados pelo mesmo processo seletivo, mediante os mesmos critérios de avaliação, não se justifica o tratamento desigual dispensado. Dessa forma, a abertura de novo concurso fere o princípio constitucional da igualdade.
Da mesma forma, a suposta discricionariedade do Administrador em abrir novo certame ao invés de chamar os aprovados no anterior afronta o princípio da impessoalidade. Este princípio tem o objetivo de assegurar a isonomia de tratamento dispensado aos administrados por parte da Administração, segundo descreve José dos Santos Carvalho Filho, que arremata dizendo que esta deve voltar-se exclusivamente ao interesse público, vedando-se, assim, o favorecimento de uns em detrimento de outros [9].
Ora, uma vez aprovado, o candidato deixa de ser um anônimo para tornar-se pessoa certa e determinada, com qualidades e características específicas, que podem agradar ou não o Administrador. Com isso, abre-se margem à manifestação de favoritismos ou preterições e, consequentemente, torna-se possível a afronta ao princípio da impessoalidade.
Tal pensamento é corroborado pelo conteúdo atribuído ao princípio da moralidade por Alexandre de Moraes [10]:
Pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos da razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da administração pública.
O autor relaciona o princípio da moralidade ao da razoabilidade. Ou seja, é moral aquilo que também é razoável.
Pode-se dizer que a iniciativa de abrir novo concurso público ao invés de nomear os aprovados no certame anterior é de razoabilidade questionável, seja pelo custo financeiro, seja pela demora até o resultado final. Cumpre ressaltar que, nesse ínterim, a população sofrerá com a precariedade do serviço prestado, ante a insuficiência de servidores em atividade. No caso em apreço, com muito mais razão, uma vez que o serviço em questão é o da Defensoria Pública Estadual, que presta assistência jurídica à população de baixa renda.
Acerca do princípio da razoabilidade di Pietro atenta, de forma oportuna, para a diferença entre irrazoabilidade e desvio de poder. Enquanto neste a autoridade pública age em desconformidade com o interesse público ou com finalidade diversa daquela prevista em lei; nas hipóteses de irrazoabilidade, os fins legais são observados, porém os meios utilizados não são adequados [11].
A autora esclarece que também há descumprimento da razoabilidade quando a lei é aparentemente cumprida, porém diverge do senso comum do que é certo, justo, adequado e conforme ao interesse público [12]. Parece ser o que ocorre no caso em comento, já que a realização de novo concurso visa ao preenchimento dos cargos vagos, o que atende ao interesse público, porém não observa a maneira mais adequada e razoável de satisfação desse interesse, porque desperdiça tempo e recursos públicos.
Tal observação nos remete à análise da eficiência, já que esta consiste na ideia básica de máximo resultado com o mínimo emprego de recursos possível, otimizando o orçamento em busca de qualidade. É a grande tônica utilizada pela iniciativa privada e que deve ser observada também na esfera pública. Nesse sentido, Alexandre de Moraes [13]:
Assim, princípio da eficiência é aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social. Note-se que não se trata da consagração da tecnocracia, muito pelo contrário, o princípio da eficiência dirige-se para a razão e fim maior do Estado, a prestação de serviços sociais essenciais à população, visando a adoção de todos os meios legais e morais possíveis para a satisfação do bem comum.
Segundo o princípio da eficiência, portanto, os meios a serem utilizados para o alcance do interesse público devem ser os mais vantajosos para a coletividade. Dessa forma, a discricionariedade é sensivelmente reduzida, ou mesmo aniquilada, se a via escolhida pelo administrador não for a mais adequada possível.
Como preleciona Maria Sylvia Zanella di Pietro, do interesse público não decorre necessariamente a discricionariedade, mas antes disso constitui-lhe um limite [14].
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, acredita-se que a matéria em análise no Recurso Extraordinário 837.311, à qual foi atribuída repercussão geral, deva ser decidida no sentido de que candidatos aprovados fora do número de vagas oferecidas possuem direito subjetivo à nomeação quando a Administração demonstra a necessidade de contratação de pessoal, seja mediante a abertura de novo concurso, seja mediante a contratação de terceirizados ou temporários.
Tal entendimento encontra amparo nos princípios constitucionais da igualdade, da impessoalidade, da moralidade, da razoabilidade e da eficiência, os quais servem de limite à discricionariedade administrativa.
A mencionada discricionariedade não deve ser confundida com arbitrariedade, não se fazendo presente quando só exista um meio capaz de satisfazer plenamente o interesse público.
REFERÊNCIAS
[1] DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 30.ed., São Paulo: Atlas, 2014, p.36.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 837.311. Recorrente: Estado do Piauí. Recorrido: Eugênia do Rego Monteiro Villa e outros. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 21 de novembro de 2014. Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em 11 de dezembro de 2014.
[3] _____, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n. 757.978. Agravante: Paulo Antônio Machado da Silva Filho. Agravado: Município de Belo Horizonte. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 7 de abril de 2014. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 12 de dezembro de 2014.
[4]_____, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n. 790.897. Agravante: Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia Brasil S/A. Agravado: Isabel Christina Gonçalves Pacheco e outros. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, DF, 7 de março de 2014. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 12 de dezembro de 2014.
[5]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, 2.ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 57-58.
[6]Iid. p. 62-63.
[7] Ibid p.62-63.
[8] CUNHA JR., Dirley da. Curso de direito constitucional, 6.ed., Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 696.
[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direitos administrativo. 25.ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 20.
[10] DE MORAES, Alexandre, op.cit. p. 342.
[11]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op.cit. p. 203.
[12]Ibid p.203.
[13] DE MORAES, Alexandre, op.cit., p.347.
[14] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op.cit. p. 231.