Gustavo Justino de Oliveira[1]
Gustavo Henrique Carvalho Schiefler[2]
Os términos dos anos costumam coincidir com momentos de reflexão. Costumamos avaliar as nossas condutas, diagnosticar os equívocos e prescrever novas ações. Fazemos previsões sobre o que virá, com base no que já se foi.
Em se tratando de Direito Administrativo, cumpre refletir a respeito do que houve nos últimos doze meses. Embora o risco de engano sempre acompanhe aqueles que fazem previsões, é provável que o ano de 2014, especialmente os últimos meses, fique registrado na história brasileira como uma época de alerta sobre o ambiente de relações contratuais entre o Estado e os particulares.
O assunto não é novo e dispensa introdução. A propósito, a cultura patrimonialista brasileira é investigada desde há muito, tendo sido revelada em detalhes nas obras de Raimundo Faoro.
De toda sorte, não há dúvidas de que a promiscuidade entre o público e o privado, no Brasil, voltou à ordem do dia. Os recentes escândalos envolvendo a maior estatal brasileira (Petrobrás) atingiram, com ineditismo, cifras bilionárias.
As denúncias indicam o envolvimento de algumas das maiores sociedades empresariais brasileiras em práticas de corrupção. Para muito além do jeitinho, diz-se que a propina foi utilizada para conquistar alguns dos maiores contratos administrativos já celebrados pelo Estado brasileiro e para subsidiar campanhas eleitorais de diferentes partidos.
E há algo de simbólico nisso tudo, uma vez que alcançaram, além da maior empresa estatal, as maiores construtoras nacionais e o mais alto escalão dos governantes brasileiros. O sentimento de impotência perante esta situação fortalece uma cultura de desconfianças sobre o relacionamento público-privado, causa instabilidade política e fomenta a busca por soluções radicais, cujas consequências, acaso adotadas, são imprevisíveis.
Recentemente, houve até desabafo, por parte de um advogado atuante na Operação Lava-Jato, no sentido de que esta prática existe em toda a Administração Pública brasileira. Exemplificou-se o cenário de acentuado patrimonialismo com a afirmação de que sequer uma lajota é colocada, neste País, sem um prévio “acerto” com a autoridade competente.
Em suma, são inúmeros os exemplos que revelam uma percepção generalizada de corrupção, o que estimula a desconfiança dos particulares, os excessos e as obsessões dos órgãos de controle e o império do medo sobre os agentes públicos.
Este cenário é absolutamente prejudicial ao interesse público, pois gera ineficiência e paralisia. Por isso, cumpre aos pensadores do Direito e à própria Administração Pública a tarefa de dissipar as causas desta percepção, por meio de ações concretas – o que, diga-se, passa necessariamente por uma cultura de maior transparência nos diálogos e nas relações público-privadas.
A despeito da generalidade, com a qual não se pode compactuar, pois injustiças seguramente seriam cometidas, as práticas denunciadas no ano de 2014, supondo-se comprovadas ou parcialmente comprovadas, são nefastas para a legitimidade das relações entre o Estado e a iniciativa privada.
Os riscos dessa ilegitimidade resultam no robustecimento de inúmeras e variadas soluções, novas ou renovadas, mais ou menos radicais, cada qual com suas justificativas e origens ideológicas, que ora são ensaiadas pela sociedade brasileira. A título exemplificativo: a defesa pelo enrijecimento do controle pelos Tribunais de Contas e pelo Ministério Público, da retomada da execução direta pelo Estado de atividades que hoje são desempenhadas pela iniciativa privada, da desestatização ao máximo das atividades sob a competência do Estado, ou ainda, a defesa por nova intervenção das Forças Armadas brasileiras – o que é abominável, registre-se.
Sem dúvidas, é difícil e arriscado comentar escândalos em andamento, sobretudo após um conturbado momento eleitoral, em que os ânimos restam aflorados e pouco há, sobre essas denúncias, de comprovação, até porque muito recentes. Mas parece seguro afirmar que, independentemente do desfecho dessas denúncias, o ano de 2015 iniciará diferente para a advocacia em Direito Administrativo.
A diferença se resume no enrijecimento de um conhecido e inevitável movimento em favor de compliance no ambiente corporativo, ou seja, em favor de práticas que assegurem a maior aderência dos negócios público-privados às normas legais. Esse movimento ocorre tanto em razão de uma tomada de consciência corporativa como em virtude do receio de se figurar como investigado num escândalo como aqueles a que hoje assiste a sociedade brasileira.
De par com as formas tradicionais de controle, o desenvolvimento tecnológico apresentou à sociedade a possibilidade de exercitar o controle social sobre a Administração Pública. E de forma paulatina, as normas que asseguram a efetiva transparência daquilo que é público tornam as práticas patrimoniais mais arriscadas. Em meio aos referidos excessos e às obsessões, infelizmente comuns a todas as espécies de controle sobre a Administração Pública, a questão é que este ambiente de medos e receios reclama por maior segurança jurídica – daí o destaque ao compliance.
Pois bem. Em Direito Administrativo contratual, isso significa que existe – e existirá cada vez mais – uma preocupação em garantir que a captação de negócios ocorra de maneira a mais legítima possível. Isso porque os riscos a que se sujeitam aqueles que se valem de práticas pouco republicanas na captação de novos negócios com o Estado começam a sobrelevar os benefícios.
Todo este contexto implica uma alteração de ênfases sobre o perfil da advocacia em Direito Administrativo, o que, na opinião dos autores, é saudável para o desenvolvimento das instituições brasileiras e para o resgate de sua legitimidade.
A opinião é a de que haverá uma mudança sobre o perfil da advocacia procurada por aqueles interessados em se relacionar contratualmente com a Administração Pública brasileira.
Um novo perfil da advocacia em Direito Administrativo deve se estabelecer, muito mais afeito à técnica e menos dependente de um poder de influência social e política. Ou, no mínimo, ainda que não se diminua o prestígio aos advogados inseridos e influentes sob a perspectiva política e social, haverá uma maior valorização sobre a qualidade técnica desses profissionais. Evidentemente, não se está a dizer que apenas os advogados inseridos e influentes politicamente são procurados atualmente, mas que, na opinião dos autores, doravante, haverá uma valoração ainda maior da técnica jurídica.
É o que se segue naturalmente ao aguçamento de uma preocupação com a legitimidade das decisões administrativas, em substituição a uma busca pela decisão propriamente dita, por quaisquer meios, justificada tão e somente pelos fins atingidos. Buscar-se-á do advogado uma prática que confira maior segurança jurídica, permanente, sólida, legítima, o que, opina-se, somente será possível por meio de ênfase na busca pela qualidade técnica dos serviços advocatícios, respeitando-se cada vez mais os pressupostos constitucionais do processo administrativo.
Caso esta previsão se confirme, é certo que o novo perfil da advocacia em Direito Administrativo será recebido com entusiasmo, haja vista que a probabilidade de que os negócios público-privados sejam celebrados em desprestígio aos princípios constitucionais – especialmente o princípio da moralidade e da impessoalidade – certamente diminuirá. Assim, a meritocracia, tão proclamada no ambiente corporativo brasileiro, recairá com ainda maior aptidão sobre a prática da advocacia, preferindo-se cada vez mais a técnica e o respeito à legalidade à influência política e à obtenção de resultados por meios censuráveis.
[1] Professor Doutor de Direito Administrativo da USP. Pós-Doutor em Arbitragem Internacional pelo Max-Planck-Institut (Hamburgo) e em Direito Administrativo pela Universidade de Coimbra. Educação Executiva em Negociação pela Harvard University. Presidente da Comissão da Administração Pública do CAM-CCBC. Consultor em direito público (www.justinodeoliveira.com.br).
[2] Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, onde desenvolveu pesquisa na área de direito administrativo contratual. Foi secretário-adjunto da Comissão de Licitações e Contratos da OAB/SC. Autor da obra “Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI”, publicada pela Editora Lumen Juris (2014). Professor de cursos de capacitação em Licitação Pública e Contrato Administrativo. Coordenador jurídico do escritório Justino de Oliveira Advogados (www.justinodeoliveira.com.br).