A metáfora[1] do Direito
The metaphor of Law
Autora: Gisele Leite
Resumo: O direito mais adequadamente se define como metáfora principalmente se analisarmos a trajetória histórica do pensamento jurídico. O direito em sua metáfora conceitual traduz a constante luta pontuada pelas decisões da mais alta corte de justiça brasileira. Desde a sua linguagem até sua estrutura teórica, o direito tem enfatizado mais a metáfora do que a realidade prática.
Palavras-Chave: Direito. Conceito. Concepção. Metáfora. Norma Jurídica. Fenômeno Jurídico. Retórica.
Abstract: Law is more properly defined as a metaphor, especially if we analyze the historical trajectory of legal thought. The law in its conceptual metaphor reflects the constant struggle punctuated by the decisions of the highest court of Brazilian justice. From its language to its theoretical structure, law has emphasized metaphor more than practical reality.
Keywords: Law. Concept. Conception. Metaphor. Legal Standard. Legal Phenomenon. Rhetoric.
A problematização sobre a definição do direito é tema recorrente na construção de teorias sobre a compreensão dos fenômenos jurídicos. Mesmo que se adote uma proposta ortodoxa da teoria do direito, há sempre a necessidade de se definir, pelo menos, primariamente, o seu objeto. Apesar de que existem teses derivadas da tradição hermenêutica filosófica como a de Arthur Kaufmann[2] que afirma ser possível compreender o direito apesar de haver uma definição peremptória de seu conceito.
O vocábulo fenômeno advém do grego fainínenon, de faino que é verbo que significa mostrar-se, aparecer, tornar-se visível, revelar-se, e guarda esse sentido originário, isto é, significando o fato de algo aparecer e tornar-se perceptível ao ser humano. Portanto, fenômeno é tudo aquilo que pode ser percebido pelo homem, é fato da manifestação do ser na realidade mundana, é todo e qualquer acontecimento perceptível no tempo e no espaço.
Pode-se afirmar que existem basicamente duas espécies de fenômeno: os naturais que existem independentemente da presença do homem, está no cosmos tais como os fenômenos físicos, químicos, biológicos entre outros. E, os fenômenos culturais que são aqueles produzidos e criados pelo homem, sendo resultado da ação humana sobre o cosmos, como por exemplo, a linguagem, os mitos, artefatos de artes, arquitetura, engenharia, costumes tradições, filosofia, direito, entre outros.
O fenômeno jurídico traduz o uso da força (potestas) por alguém (auctoritas) que, legitimado pelo consenso social, estabelece regras (normas) de conduta[3] que garantam a ordenação e a convivência pacífica da sociedade. É a institucionalização da força simbolizada na norma de conduta intersubjetiva. Em resumo, trata-se do uso da violência institucionalizada simbolizada na norma de conduta imposta pelo emissor e legislador legitimado.
Assim, o direito é expressão de força legitimada pelo consenso social. Entende-se força no sentido de coercibilidade, imperatividade, ou seja, a capacidade para coagir, impor e obrigar.
O fenômeno jurídico é de natural cultural, advém da realidade social criada pelo homem. E as regras de conduta (norma agendi) são estabelecidas pela autoridade (emissor da norma) que pode ser um indivíduo ou um grupo de pessoas ou uma assembleia popular.
Já o fato jurídico[4] é fato cultural, instituição humana por excelência, resultante do processo de racionalização e sistematização da ordenação social. O direito, como fenômeno humano, não é, nem pode ser objeto ideal, nem metafísico, nem natural, pois é realmente um objeto cultural. E, a História do Direito demonstra cabalmente essa realidade.
A tradução do fenômeno jurídico reside na ordenação social mediante o uso da força (coercibilidade) simbolizada na norma de conduta. Fenômeno de disciplina social sob a forma repressiva ou punitiva. A característica essencial desse fenômeno é a força (coercibilidade) no sentido de capacidade de se fazer impor efetivamente ou de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. O direito é assim o exercício da força institucionalizada a serviço da ordenação social.
É a força do fenômeno jurídico que o deixa existir concretamente e, ainda passa a ser outro tipo fenômeno social. O uso da violência simbólica só existe de forma legítima no mundo do direito, fora do direito não é permitido o uso da violência. Logo, a vis (força ou coercibilidade) é característica essencial do fenômeno jurídico.
O fenômeno jurídico pode ser objeto de estudo e investigação por parte de várias ciências (sociologia, história, filosofia, economia) e, também por parte do próprio jurista. O estudo do fenômeno jurídico que visa descrever o fenômeno tal como este se manifesta, levantar hipóteses, questionar premissas e princípios, definir que é o fenômeno em sua essência, é um estudo de natureza zetética (do grego zetein que significa perquirir, indagar).
A zetética jurídica tem função especulativa (sem compromisso com a solução dos conflitos), visa enunciados que possam ser verificados e comprovados, tem como ponto de partida a evidência de suas premissas, rege-se pelo princípio da refutabilidade, bem como, pelo princípio causal-explicativo, seu código é verdadeiro/falso, tem natureza descritiva (ordem do ser). Portanto, zetética caracteriza-se pela abertura constante para o questionamento, em todas as direções.
Um estudo dogmático considera certas premissas em si, resultantes de uma decisão (ato de vontade) vinculante para o estudo, não porque sejam verdadeiras, mas porque foram estabelecidas pelas autoridades como inquestionáveis.
O dogma[5] impõe certeza sobre algo, mas não elimina a dúvida, apenas substitui uma certeza que é imposta pela autoridade e, tem a função diretiva explícita (pragmática) e limitada. Dentro das premissas dogmáticas situa-se o princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal do Brasil de 1988 que aduz: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Essa norma é ponto inexorável de partida para qualquer estudo do Direito. A dogmática[6] exige sempre sua interpretação (ato hermenêutico) pois a norma isoladamente não é condição suficiente para o estudo dogmático do direito. Realmente a dogmática jurídica é expressão polissêmica que assume as mais distintas conotações em diversos contextos históricos, perspectivas teóricas e doutrinadores. Já fora reconhecida como heroína e, por vezes, como vilã. E através do método analíticos surgem questionamentos sobre as noções conceituais bem como as nuances do pensamento dogmático, o que exige uma reanálise das exigências sociais e dos progressos teóricos contemporâneos.
Importante ressaltar que o princípio da legalidade constitui uma das bases de um Estado de Direito, isto é, um Estado regido por leis. E, assim, por esse princípio as pessoas podem fazer tudo que a lei não as impede, e o Estado pode fazer apenas aquilo que a lei permite. Portanto, o princípio da legalidade garante que somente as leis podem criar obrigações às pessoas, ou seja, o Estado só pode exigir que você faça ou deixe de fazer algo se tal exigência estiver contida e escrita em uma lei.
Assim, o Estado de Direito, ao estabelecer leis para a sociedade e garantir que todos as cumpram, inclusive os governantes, dá segurança aos indivíduos. Segurança, justifica-se, porque sabem que podem fazer tudo o que a lei não os proíbe, ou seja, são livres se agirem dentro da lei. E também estão seguros em saber que o Estado agirá somente conforme as leis e não conforme a vontade daqueles que estão no poder.
A definição[7] do conceito de direito tanto pode ser o principal objetivo de uma teoria, seja de filosofia jurídica, como também um pressuposto para o desenvolvimento teórico de algum tema jurídico. Logo nos deparamos com a necessidade de se desenvolver uma teoria da norma[8], uma teoria das fontes, ou uma teoria do fato jurídico, antes de tudo, como se pode entender o direito dentro de certo sistema teórico.
A noção analítica de compreender é definir, ou seja, de entender o direito implica apreender o conceito em uma definição[9]. Há quem pretenda a busca da verdade, da essência e existência plena, da forma e do conteúdo e, ainda do substrato do conceito de direito, sem cogitar de sua configuração.
Quando se chega ao conceito é porque já se deu a compreensão. Mas, esta pode ser contingente, circunstancial e temporária, quando se tem o conceito, já não é mais do que a representação estática de uma compreensão pretérita, isto é, atrelada ao passado. O conceito é a representação do que já não é mais, isto é, não é mais presente.
Assim, o conceito de direito segundo Herbert Hart[10] começa pela atenção à teoria jurídica dos últimos 150 (cento e cinquenta) anos e deixando de lado, a reflexão clássica e medieval sobre natureza do direito, encontramo-nos diante de uma situação que não existe do mesmo modo em nenhuma outra matéria estudada de forma sistemática como disciplina acadêmica em si.
É fato que a seriedade dos juristas é artifício retórico, ou uma estratégia irônica. Pois o que Hart pretendeu afirmar é que os resultados teóricos, por mais esdrúxulos que sejam, são resultantes de esforço de definir seriamente o direito. Procurando apresentar a sua natureza essencial e mesmo que pareçam estranhas ou paradoxais seriam na verdade o resultado de longas meditações sobre o direito, feitas por homens que eram antes de tudo, juristas dedicados por profissão ao ensino ou à prática do direito.
Há em boa parte das afirmações teóricas sobre o significado do direito, o exagero sobre algumas verdades, mas não são verdadeiras definições e, por essas razões são afirmações ao mesmo tempo clarificadoras e perturbadoras, assim como a ironia[11] que perturba e esclarece contemporaneamente[12].
Enfim, toda definição do conceito de direito termina mesmo em ser mais um ponto de vista sobre o direito. E, portanto, sendo uma metáfora visual que representa e termina por amplificar certas características de fenômenos enquanto se esquece de outras.
Boa parte das definições do direito são, em verdade, metáforas que representam e criança uma sensação que acarreta um estranhamento que leva a um trabalho hermenêutico complexo cuja dificuldade de interpretação é, em alguns casos, diretamente proporcional ao seu sucesso como metáfora.
Rudolf Stammler[13] que afirmou que “o direito é um querer autárquico, inviolável e entrelaçante”. Ainda que se admitisse uma única definição possível de direito aquela que se restringe a apresentar apenas as características estruturais semelhantes entre vários ordenamentos jurídicos, a despeito de relevantes diferenças, isso não significa que a definição mais autêntica é aquela que revela apenas a estrutura do objeto.
Segundo Hart seria possível dizer que o fim próprio da atividade humana é a sobrevivência e, que a maior parte dos seres humanos deseja continuar vivendo. Embora essa vontade de sobrevivência possa ser considerada contingente, algumas normas lhe parecem naturalmente necessárias para a manutenção da vida.
E, segundo Hobbes e Hume, em que, para continuarem a viver, devem os indivíduos se associar; e uma associação de indivíduos não pode perdurar sem o respeito a certas normas de equidade e justiça[14]. Na concepção de Hart, o conteúdo mínimo do direito natural é composto de princípios de conduta universalmente reconhecidos que têm base em algumas verdades elementares com relação aos seres humanos, ao seu ambiente natural e aos seus objetivos.
A pressuposta a sobrevivência como um fim da natureza humana, um conteúdo mínimo do direito e da moral é determinado aprioristicamente de forma específica. Significando que, sem esse conteúdo, nem o direito, nem a mora poderiam favorecer o escopo mínimo de sobrevivência que os seres humanos têm em vista quando se associam.
Sem um conteúdo mínimo de direito natural, o direito estaria destituído de parte importante de sua natureza, ou seja, de sua essência, e poderia vir a se tornar um sem sentido (nonsense).
No mundo ocidental são apresentadas normalmente duas formas lógicas que garantem a racionalidade das decisões e sua vinculação em relação às normas que dependem do sistema jurídico no qual se inserem. No civil law prevalece senso comum teórico dos juristas, a ideia de que o raciocínio jurídico é guiado pelas formas lógicas dedutivas.
Já na tradição do direito jurisprudencial, o civil law[15], que representa uma significativa parte do sistema common law, prevalecem as formas analógicas de raciocínio. Pode-se afirmar que, enquanto no primeiro caso a segurança e justiça são produtos da aplicação de uma regra geral por meio de uma inferência dedutiva, no segundo caso, justiça e segurança são garantidas por uma inferência analógica.
Em ambos os casos, contudo, pode-se afirmar que existe uma vinculação lógica ou formal entre a decisão judicial e uma norma geral prévia, mesmo que no direito jurisprudencial, diferentemente do que ocorre no direito legislado, essa vinculação não seja imediata.
Enfim, no direito legislado, a vinculação entre a norma geral e decisão judicial seria garantida logicamente por uma relação direta de subsunção do caso à norma, isto é, a decisão judicial seria a conclusão lógica de uma inferência dedutiva dos dados do caso aos preceitos genéricos da norma. É assim denominado de silogismo de determinação da consequência jurídica. O silogismo jurídico, que corresponde à aplicação da lei, constrói-se do seguinte modo: A norma legal é a premissa maior; A descrição dos fatos corresponde à premissa menor; A aplicação da norma legal corresponde à conclusão.
Já no direito jurisprudencial, mesmo diante de relação analógica entre os casos, ou seja, caso a ser decidido e o caso prévio que forma o precedente judicial, existem princípios genéricos que proporcionam a analogia. E, dessa forma, é como se ambos os casos estivessem vinculados à uma norma geral, normalmente compreendida em termos de uma ratio decidendi[16].
Tomando justiça e segurança como parâmetros para obtenção do direito por meio de procedimentos inferenciais, o decisor se vê obrigado, por um lado, a adequar seu juízo às particularidades do caso a ser resolvido, respeitando a singularidade de cada problema concreto e, por outro, constrangido a limitar as possíveis soluções para o problema a um campo previamente delimitado por uma série de textos jurídicos normativos.
Isto é, o decisor, diante de cada nova situação, sempre se encontrará diante dos topoi[17] da mudança e da estabilidade. Isto quer significar que ao mesmo tempo em que cada nova situação representa um evento novo e singular que implica adequação do direito à realidade, existe também a previsibilidade de que cada novo fato só encontrará uma resposta no direito desde que se condicione à ordem previamente estabelecida.
É possível catalogar as decisões judiciais e uma multiplicidade de precedentes em um framework relativamente coerente de regras e princípios. No direito jurisprudencial[18], âmbito no qual a analogia é talvez mais relevante para o sistema judicial, é possível identificar inúmeros pontos de contato entre o raciocínio analógico e o indutivo que tornam as operações lógicas relativamente indistinguíveis.
Tanto analogia quanto indução baseiam-se na experiência prévia, enquanto, muitas vezes, é a indução a base para o raciocínio analógico de comparação entre o passado e o presente. Em terceiro lugar, a indução é instrumento metodológico por excelência das teorias críticas e sociológicas do direito.
Tanto a teoria crítica quanto os sociólogos do direito estão muito mais preocupados em saber o que seja o direito de fato na experiência do que saber o que os doutrinadores dizem o que o direito é[19].
A análise sociológica dos dados que são obtidos a partir dos casos é o que permite o trabalho de generalização de informações sobre um domínio determinado. Em quarto lugar, a indução é sem dúvida uma forma de raciocínio jurídico importante para construção de modelos de decisão.
O processo judicial requer entender como funciona a indução, isto é, o pensar a partir de casos. A indução, em geral, é uma forma lógica excepcional do raciocínio judicial, especialmente no direito legislado em cujo âmbito prevalecem as teses e os métodos dedutivistas.
De qualquer modo, o Direito se expõe contemporaneamente como metáfora seja por sua dogmática, seja por sua aplicação, interpretação ou até mesmo eficácia.
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[1] A metáfora é uma das figuras de linguagem mais conhecidas, sendo utilizada para realizar comparação entre dois ou mais elementos sem utilizar termos que indiquem que uma comparação esteja sendo feita, deixando-a apenas de forma implícita (pois não exige conjunção ou locução conjuntiva comparativa de dois elementos diferentes) formando uma relação de semelhança entre estes. Na literatura, é recurso de linguagem utilizado por muitos autores tais como Luís Vaz de Camões, entre outros. A metáfora é uma figura de linguagem que interliga diferentes realidades através de suas semelhanças. Ela ajuda a compreender uma ideia recorrendo a outra ideia. Conheça algumas metáforas famosas: A rosa de Hiroshima. Vinícius de Moraes compôs o poema Rosa de Hiroshima no ano de 1946; as gaiolas de Rubem Alves. Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas; Iracema e os lábios de mel; O amor é um laço; A borracha de apagar ideologias.
[2] Arthur Kaufmann (1872-1938) foi um advogado, filósofo e mestre de xadrez austríaco. Kaufmann era um amigo próximo do autor austríaco, Arthur Schnitzler, que mencionou seus encontros com Kaufmann em seu diário várias vezes, expressando sua apreciação pela personalidade e caráter de Kaufmann. Em seu testamento final, Schnitzler nomeou Kaufmann, além do autor austríaco Richard Beer-Hofmann, como assessor de seu filho, Heinrich, em todas as questões relativas ao seu legado literário. O patrimônio literário de Schnitzler, com suas notas e cartas, constitui a principal fonte de informações sobre a vida e as ideias de Kaufmann. De acordo com o anúncio oficial, Kaufmann morreu em 25 de julho de 1938, de “morte súbita cardíaca e arteriosclerose”, mas vários indicadores apontam para suicídio. Ele foi enterrado na seção judaica do Cemitério Central de Viena, onde um bombardeio na Segunda Guerra Mundial devastou seu túmulo. Em seu último testamento, ele nomeou como herdeiros suas sobrinhas, Alice Kaufmann e Sophie Kaufmann (filhas de seu irmão, Ludwig Kaufmann), que naquela época, e após a Segunda Guerra Mundial, viviam em Paris, na rue Molitor 56. Todas as tentativas de encontrar o legado escrito de Kaufmann, bem como fotografias dele, não tiveram sucesso até o presente momento.
[3] A conduta humana é um dos fatores principais quando da criação e aplicação da norma jurídica que impõe que o legislador esteja atento às mudanças comportamentais decorrentes do próprio processo de evolução social que permite que as pessoas mudem sua conduta e seus valores numa perspectiva de anseio por liberdade e por realização da felicidade que é uma das virtudes presente em todas as teorias da teoria.
[4] A pandemia causada pelo Covid-19 é excludente de responsabilidade civil extracontratual. Apesar de não existir consenso sobre a diferença entre caso fortuito e força maior porque doutrinadores usam distintos critérios teóricos para tanto. Mas, tal diferença tem pouco interesse prático posto que requeira o mesmo efeito jurídico, ou seja, de mitigação da responsabilidade civil, trazendo por vezes a extinção da obrigação ou a modificação de suas consequências sem ônus para o devedor. Sempre se caracterizando por ser acontecimento inevitável o que leva a impossibilidade de agir, obstante de evitar o dano. Fernando de Noronha elencou três requisitos eleitos pela clássica doutrina para que um acontecimento seja considerado caso fortuito ou força maior. É preciso que o fato seja externo, irresistível e normalmente imprevisível. (In: NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil: uma tentativa de ressistematização – responsabilidade civil em sentido estrito e responsabilidade negocial; responsabilidade subjetiva e objetiva; responsabilidade subjetiva comum ou normal, e restrita a dolo ou culpa grave; responsabilidade objetiva normal e agravada. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil, vol. 1, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Out / 2011, p. 145 – 19). Já as medidas de enfrentamento à pandemia pode caracterizar fato do príncipe (em geral, exige-se como requisitos para a ocorrência do fato do príncipe que o evento seja inevitável; que haja nexo de causalidade entre o ato administrativo/legislativo e a paralisação do trabalho; que impossibilidade absolutamente a continuação do negócio; e, por fim, que o empregador não concorra para a sua ocorrência).
[5] O sentido do vocábulo dogma é geralmente atribuído à teologia. Antes disso, no entanto, seu significado era diverso ao difundido pelo pensamento teológico. Na Antiguidade, indicava tão somente uma decisão, um juízo, uma ordem, o dogma refletia as crenças fundamentais das escolas filosóficas, seus princípios irredutíveis. Posteriormente foi que esse vocábulo passou a ser utilizado para designar as decisões dos concílios e das autoridades eclesiásticas sobre as matérias essenciais da fé.
[6] A dogmática jurídica possui uma posição isolada e tem como princípio prefixado a norma jurídica. Apresenta normas constituídas de interpretações próprias da realidade que não devem ser questionadas, caso contrário, devem fazer sob os padrões apresentados pelas próprias normas jurídicas. Isto é, a dogmática jurídica tem suas decisões acerca do que ela própria considera como certo e indiscutível, não deixa margens para determinações dentro de outros preceitos jurídicos que relacionem parâmetros diferentes dos seus, mesmo porque a dogmática do direito tem parâmetros próprios, impedindo outras intervenções. Acredita-se que a dogmática jurídica entendida como teoria jurídica que estuda as normas jurídicas, princípios e regras como principal objeto de estudo também se exauriu contemporaneamente.
[7] O direito imerso nas diversas definições possíveis, têm três principais características, a saber: 1. é fenômeno humano e não natural, sendo derivado da vontade e ações humanas; 2. é norma comportamental, isto é, um conjunto de normas de ordenação da conduta humana, que confere e condiciona direitos e deveres do indivíduo, da sociedade e do Estado; 3. é ciência dotada de objeto, métodos, técnicas, instituições, pressupostos e institutos próprios, os quais consubstanciam um saber cujos problemas devem ser abordados de forma racional, argumentativa, problematizadora e suscetível a comprovação (falseabilidade ou confirmação). Em síntese: há o direito enquanto fenômeno, quem tem direito (como resultado da aplicação de norma de direito) e quem estuda o direito, com base na Ciência Jurídica.
[8] A teoria da norma jurídica mediante uma análise iusfilosófica esquemática. Quando estudamos a perspectiva estrutural, utilizamos o exemplo do conceito kelseniano de direito, segundo o qual “o direito é um conjunto de normas coativas” (Hans Kelsen). As fontes formais seriam todas as formas ou maneiras pelas quais o Direito se manifesta, tais como a lei, o costume, a jurisprudência. Já as fontes materiais do Direito seriam os fatores reais ou ideais que produzem o conteúdo das normas jurídicas. “Porém, a teoria original das fontes precisa ser revisada, através de diálogo trazido pelo giro linguístico, mais especificamente pela Teoria Discursiva do Direito[2] e pela Hermenêutica Filosófica, que trouxe nova compreensão sobre a teoria das fontes do direito que melhor se harmoniza com os vigentes preceitos do Estado Democrático de Direito”. (In: LEITE, Gisele; MESSIAS, José Luiz. A atual Teoria das Fontes do Direito. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/a-atual-teoria-das-fontes-do-direito Acesso em 10.12.2020).
Já a teoria do fato jurídico expõe o que seja fato jurídico. Fato jurídico é todo acontecimento relevante para o mundo do Direito, previsto em norma, em razão da qual nasce, modifica, subsiste e extingue a relação jurídica. Portanto, a relação jurídica surge em virtude de fato jurídico e como aplicação e decorrência da norma jurídica.
[9] O conhecimento produzido por um organismo, como o humano, que é necessariamente corporificado (embodied) pressupõe que sua existência é definida no interior de um ciclo contínuo de ação e percepção.
[10] Afirma Hart que o Direito só pode ser uma prática social que é baseada nos costumes e crenças comuns e deve se estruturar sob este pressuposto, e como tal, oportunizará a todas as pessoas participarem dele, já que todas as pessoas praticam estes costumes e crenças comuns. A obra seminal de Hart, porém, foi publicada em 1961. O Conceito de Direito, em sua primeira edição, é considerado, mesmo por seus maiores críticos, uma das obras primas da Teoria do Direito do século XX. Por hora, vale dizer que grande parte da Teoria do Direito contemporânea passa pela discussão se adota ou refuta as premissas de Hart. Mais sobre O Conceito de Direito, porém, será desenvolvido adiante.
[11] A ironia socrática de se autoproclamar, ao mesmo tempo, ignorante e o mais sábio de todos os sábios, segundo lhe dissera o oráculo de Delfos, procura explicitar, por meio dessa contradição, a nossa limitação no que diz respeito ao conhecimento humano. É assim que Sócrates “se confessa possuidor de certa sabedoria, a sabedoria humana, muito relativa e condicionada, que ele contrapõe à verdadeira sabedoria, apanágio dos deuses”.
[12] Vejamos a metáfora conceitual “Direito é guerra” nas palavras de Hugo Grotius, o direito comum a todos os povos, que tanto serve para a guerra e na guerra. Sejam guerras públicas ou privadas. Verifica-se a queixa de Sêneca: “Reprimimos os homicídios, os assassinatos de um homem, mas as guerras, os massacres das nações se transformam em crime coroado de glória! A ambição, a crueldade não conhecem mais freio. É por ordem do senado, em nome do povo, que se praticam os mesmos horrores e ordenamos aos cidadãos em massa o que proibimos aos privados”. É verdade que as guerras empreendidas pela autoridade pública têm certos efeitos de direito, como as sentenças; disso se falará mais adiante. Não são, porém, menos criminosas, se empreendidas sem motivo. Por isso é com razão que Alexandre, ao empreender sem motivos a guerra contra os persas ou outras nações, é chamado pelos citas, em Quinto Cúrcio, e por Sêneca, de ladrão, por Lucano, de salteador, pelos sábios das índias, de celerado, e um pirata o chamou um dia de companheiro de crimes. Seu pai Filipe tinha agido da mesma forma, quando havia despojado, como narra Justino, de seu reino dois reis da Trácia, usando com eles de má-fé e da perversidade de um ladrão. Aqui cabem estas palavras de Agostinho: “Suprimi a justiça, pois que são os impérios senão grandes latrocínios?” Lactâncio concorda com isto, ao dizer: “Dominados pelo engodo da vanglória, eles dão a seus crimes o nome de virtude”. O mesmo Sêneca (De Ira, II, 8) disse: “A glória prostituída por atos que, sob o reino das leis, são crimes …” Acrescente-se as passagens de Sêneca e de Cipriano que serão citadas mais adiante, no livro III, cap.4, § 5, no final.
[13] Uma das definições modernas dadas ao Direito e que mais se aproxima das realidades do fenômeno jurídico é a de Stammler. Como era neokantiano apriorístico, utilizou-se da lógica dos fatos jurídicos e da ideia de “se o Direito é um fenômeno universal, que está presente onde quer que haja vida humana em sociedade”, Stammler consegue formular a definição de direito mais aceita atualmente entre os juristas, mas que nem assim consegue se tornar legitimamente válida em caráter de universalidade e unanimidade. Segundo o referido autor, o fenômeno jurídico é expressão do homem, pois apenas ele percebe e explica a realidade, além de ser volitivo no exercício de sua liberdade. O homem, diz ele, quer visando a um fim, utilizando-se dos meios adequados para alcançá-lo. Stammler entende que o Direito é a forma da vida social, enquanto a Economia é a matéria. Assim, reduziu a relação entre Direito e Economia a uma relação lógica entre forma e matéria da vida social, sendo o Direito condicionante lógico – não temporal- causal – da Economia.
[14] Direito e Justiça são institutos que desde o início da humanidade andaram juntos, vinculando-se de maneira que o primeiro sempre objetive a segunda na sua realização. Contudo, nem sempre realizar o Direito significa realizar justiça ao passo que se torna possível afirmar que ao longo da história o Direito acabou se distanciando do que é considerado justo por esta mesma sociedade. A ideia de justiça, segundo se verifica da doutrina, remete a diversos segmentos que a tornam subdividida na construção de um consenso delineador. Para grande parte dos doutrinadores, para se falar em justiça é necessário saber primeiro de qual segmento de justiça se está falando. Para John Rawls, por exemplo, a justiça ganha destaque no estudo das relações sociais, é a chamada “justiça social” que decorre da chamada justiça distributiva, em que se objetiva a distribuição dos bens existentes entre todos os indivíduos de uma sociedade, o que pode ocorrer inclusive da redistribuição por meio dos tributos.
[15] A common law é uma família jurídica baseada em uma tradição anglo-americana, que está fundamentada na jurisprudência e nos costumes. Já o sistema da civil law tem origem romano-germânica e é fundamentado em um conjunto de leis. Família jurídica de tradição anglo-americana baseada na jurisprudência e nos costumes.
Common law: Família jurídica de tradição anglo-americana baseada na jurisprudência e nos costumes.
Origem Direito Inglês; Países Inglaterra, País de Gales, Escócia, Irlanda do Norte e os Estados Unidos. Julgamento baseado em outros casos semelhantes ocorridos anteriormente.
Civil Law -Família jurídica fundamentada no direito romano-germânico e baseada, fundamentalmente, em textos normativos; Direito Romano; Brasil, Portugal, França, etc.; Baseado na positivação das normas vigentes (leis, códigos, regulamentos, etc.).
Entretanto, na prática, há uma mescla de fatores e de influência das duas famílias jurídicas. Em países de common law é perceptível o avanço de regulamentações e das leis. Assim, como em sistemas de civil law, a jurisprudência tem uma relevância cada vez mais evidente.
[16] A ratio decidendi de uma decisão judicial é a porção vinculante de um precedente. Contudo, não se trata de uma vinculação em termos de efeitos processuais, como a coisa julgada. O Código de Processo Civil de 2015 adotou o uso dos precedentes judiciais, almejando que as decisões proferidas pelos tribunais superiores sirvam de referência vinculante no ordenamento jurídico. No entanto, seguindo o sistema de precedentes, um precedente judicial não poderá ser aplicado de maneira infundada, há a imposição de se comparar o caso concreto com a decisão paradigma. Para tanto, cumpre analisar o elemento que compõe o precedente e que opera a eficácia vinculante às decisões judiciais, a razão que enseja à decisão (ratio decidendi).
[17] Lembremos que a tópica aristotélica, portanto, é uma técnica que parte de uma classificação de opiniões comuns, sensos comuns, ordenados em categorias. Estes lugares comuns são chamados topoi. Enquanto Aristóteles tratava do apodítico e do dialético, CICERO trata da invenção (ars inveniendi) e da formação do juízo. Afirma que a todas as espécies de polêmicas poderão ser utilizados topoi, e destaca a elaboração de um quadro, contendo inquirições possíveis, que possibilite a associação das provas cabíveis. Para Cícero, a tópica seria a arte (ars inveniendi) de se encontrar os topoi, e a formação de juízo suas aplicações para as conclusões.
[18] A jurisprudência surgiu no direito inglês que foi desenvolvido para ir contra os costumes locais que não eram comuns. O direito inglês apresentou-se então como direito jurisprudencial, onde predominava a regra do precedente. O real significado de jurisprudência significa “a ciência da lei”. Embora a jurisprudência tenha nascido no direito romano, foi o direito inglês, especificamente à common law, que surgiu na Inglaterra durante o século XIII, que a jurisprudência se tornou um dos princípios mais importantes do direito. Com o objetivo de uniformizar os julgamentos que ocorriam nas diferentes regiões do país, o rei enviava juízes que não vivessem na área para julgar disputas importantes baseados em um código de lei único, que fosse além dos costumes daquele lugar. Os casos, então, eram julgados a partir dessas leis comuns e de casos similares aos julgados, os quais eram utilizados de base pelos juízes, com o objetivo de aplicar sentenças similares, preservando a equidade do sistema judiciário da época. (IN: FACHINI, Tiago. Jurisprudência: o que é, origem, importância e como pesquisar. Disponível em: https://www.projuris.com.br/o-que-e-jurisprudencia#origem_da_jurisprudencia Acesso em 8.12.2020).
[19] Foi com a Reforma Protestante e as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, que se agravaram as incertezas entre os fiéis. Em vista disso, elevou-se ainda mais o papel dos dogmas, assim como a preocupação de lhes conferir um caráter sistemático e um ideário de perfeição, haja vista que os conhecimentos teológicos não poderiam ceder lugar a discussões, dúvidas e heresias. Graças ao terreno comum do direito canônico, grandemente explorado na Idade Média, a idealização de dogmas e de um conhecimento claro e sistemático foi recepcionada pela teoria jurídica.