Marlon de Oliveira Xavier[1]
Resumo
O propósito deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre as formas de representação das mulheres no cinema, elencando os elementos que desencadeiam uma série de reproduções machistas, reflexos de uma dominação cultural masculina. Partindo-se do conceito de poder simbólico formulado por Pierre Bourdieu, passa-se à análise do filme Eu Não Sou Um Homem Frágil, de Eleonore Pourriat, observando como se dão as formas representativas presentes na maioria dos filmes recentes consumidos pelo mainstream. Esboçando um diálogo com autores como Angela Davis, Louis Althusser e, principalmente, Pierre Bourdieu, busca-se demonstrar, concisamente, como a representação da mulher no cinema de massa é mais um aparelho de dominação simbólica e cultural que visa o apaziguamento, tanto social, quanto individual, das mentes femininas, constituindo mais uma violência de gênero simbólica. Com o ensejo da construção de um vínculo entre o real e o abstrato, realizamos entrevista com a diretora de cinema Daphine Xavier, diretora do filme Zara – produção sobre a vida e obra da artista trans Zara Dobura – cujas respostas nos apresentam o panorama e as dificuldades da construção de produções cinematográficas contra-hegemônicas. A indicação da necessidade de organização em movimentos sociais e da formação de uma consciência crítica acerca da representação das mulheres, mulheres negras e mulheres trans, busca apresentar subsídios para o debate na sociologia, debatendo a violência simbólica, as limitações por ela produzida, e o sistema de dominação engendrado.
Palavras-chave: sociologia, violência de gênero, violência simbólica, representação no cinema, produção cinematográfica.
Introdução
Desde o surgimento do cinema, no final do século XIX, e, mais posteriormente, com a sua popularização junto às massas como meio de comunicação e entretenimento, foi legado aos filmes a função de reproduzir o cotidiano e, junto dele, certos paradigmas simbólicos da sociedade perpetuados há séculos. Desde o início (e até hoje!) o cinema é uma arte burguesa, de acesso limitado (na sua produção) e que reproduz uma lógica massiva de uma classe social específica e para uma classe específica: o pequeno burguês em ascensão que, com o tempo, se transformou na chamada classe média por estar em um limbo entre ser proletariado explorado e ascender à alta burguesia.
Exatamente por ser esse instrumento elitista em sua construção, o cinema também reproduz ideias e ideologias elitistas, transformando grandes ou pequenos ideários em objeto consumível pela massa e formadora do senso comum e, com a transposição dessa mídia para a televisão, seu impacto se expandiu de tal forma que a produção cinematográfica atinge, pelo menos no Brasil, praticamente toda a população. Tamanho acesso e poder faz com que seja uma ferramenta poderosíssima de alienação da população e de controle ideológico.
Desse modo, é importante ressaltar: o cinema, em sua grande parte, é um instrumento conservador.
Há, sem dúvida alguma, uma diversidade de produções e linhas ideológicas no cinema, inclusive filmes de luta, de subversão ou o chamado cinema guerrilha. São milhares de filmes produzidos com a intenção de reverter esse processo conservador de manutenção do status quo e sua ideologia apaziguadora de classes, contudo, esses filmes jamais tiveram o mesmo alcance das grandes produções, ficando legados à nichos acadêmicos ou espaços críticos, impossibilitados de alcançar o grande público. Assim, por maior que seja a força da construção cinematográfica dessas produções revolucionárias, de pouco adianta se essas obras não são assistidas, ou melhor, não são assistidas pela maior parte da população, que é exatamente a reprodutora do senso comum.
A partir das primeiras décadas do século passado, o cinema mundial aborda temas como a crítica ao consumismo e à sociedade de massas, entretanto, foi apenas na última década que, com o barateamento e popularização das ferramentas de produção do cinema, como câmeras e microfones, ele passou a aceitar a concorrência da consciência (concorrência em parte, pois o alcance continua sendo elementar – paradigma que é paulatinamente combatido pela abrangência da internet), divulgando em seu meio produções com críticas verdadeiramente impactantes sobre a estrutura social vigente. Contudo, e aqui começa nosso diálogo com Bourdieu, o cinema continua mostrando apenas aquilo que a classe dominante deseja mostrar.
Superada a questão do alcance – o cinema mainstream, de massa, conservador, a todos atinge, enquanto o cinema transgressor, crítico, tem seu espaço limitado aos setores cult e acadêmico -, temos que as produções críticas têm alcançado o público maior partindo de dentro do cinema de massa, porém, sua fala jamais será de todo subversiva ou levantará as questões de real relevância na sociedade, e isso se dá pelo simples motivo de que aqueles que controlam os meios de divulgação e financiamento não o querem. Dessa forma, essas produções cinematográficas, para alcançar ao público, precisam se submeter aos limites impostos.
Primeiro, é mister entender quem exatamente são os controladores do cinema e, para isso, recorre-se ao conceito apresentado por Bourdieu em O Poder Simbólico, ao explicar o emprego do termo “campo de poder”:
a classe dominante, conceito realista que designa uma população verdadeiramente real de detentores dessa realidade tangível que se chama poder […] entendendo por tal as relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo a que este tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que tem por finalidade a definição da forma legítima de poder (penso, por exemplo, nos confrontos entre <<artistas>> e <<burgueses>> no século XIX).[2]
A classe dominante, ideia já trazida anteriormente pela literatura socialista do século XIX, é, precisamente, aquela classe que detém os meios de produção, inclusive de produção cultural, e que, por isso, possuem a capacidade de exercer um monopólio da força e impor sua ideologia. Independentemente da forma de constituição da classe dominante, seja pela revolução industrial ou ascensão econômica e social, são essas pessoas que agora determinam o que é produzido, financiado, distribuído pelo cinema. Em melhores palavras, eles decidem o que é assistido.
Esses termos e conceitos são importantes para entender o porquê das produções que trazem o questionamento ao machismo, à violência de gênero e aos fundamentos formais do cinema serem tão raras. De certa forma, elas são impedidas de chegarem ao público pela barreira imposta pela dominação masculina, ficando retidas no filtro que a cultura machista cria dentro do campo cultural.
E esse filtro é tão amplo e abrangente que pode ser encontrado nos mais diversos níveis que a produção de um filme passa: a cultura de dominação masculina está presente na cabeça do roteirista, que escreve personagens fracas e submissas; na cabeça do diretor, que grava cenas de nudez ou erotização desnecessárias ou diminui a presença feminina em tela; da equipe cinematográfica, que violenta das mais diversas formas as mulheres no set; do dono da produtora, que escolhe as obras a que investir; os donos dos cinemas, que decidem quais obras passar; os donos das emissoras de televisão, que definem o tipo de filme que será transmitido; da academia de cinema, que confere os prêmios; e por fim, na espectador, que, nas vezes em que tem poder de escolha, escolhe assistir a filmes que reproduzem a lógica machista.
A Dominação Cultural Masculina
Ao longo de sua obra, Pierre Bourdieu descreve algumas formas de dominação que ocorrem na ordem simbólica, através do poder de (re) significar os símbolos por meio da produção e reprodução do conhecimento e da comunicação, estruturando certos objetos sociais, como a língua, de modo a determinar uma concepção homogênea do produto social. Esses símbolos são construções sociais, arbitrários por excelência e, precisamente por isso, são, ao mesmo tempo, sistemas estruturados e estruturantes. O que significa que, ao mesmo tempo em que são construídos pela sociedade, produzem efeito nela. Esses símbolos são instrumentos de integração social porquanto são instrumentos de conhecimento e de comunicação, possibilitando que haja a uniformização dos pensamentos acerca do sentido do mundo social, e assim, contribuem para a reprodução da ordem social.
Essa interpretação aprofunda a concepção de aparelho ideológico do Estado, formulado por Louis Althusser. Segundo Althusser, dentro da ordem social há certas estruturas responsáveis pela reprodução da ideologia dominante e formação do senso comum. Essas estruturas são visíveis e presentes, concretamente dispostas dentro do Estado mas representando elementos simbólicos de dominação. A escola, a prisão, o sistema judiciário e a própria estrutura estatal compõem esses aparelhos que são, ao mesmo tempo, de reprodução ideológica e de controle social[3].
O mais importante a entender dentro desse sistema é o objetivo de transformar os corpos e as mentes submissas à dominação social, induzindo à reprodução dessa ideologia e treinando para que certos indivíduos dominados tornem-se dominantes, e os demais continuem dominados.
Bourdieu, por outro lado, defende que esses instrumentos são invisíveis, aprimorados de tal forma que permitem ser incorporados e reproduzidos pelo próprio dominado. Antes de serem, propriamente, instrumentos de dominação, são, também, produtos da relação de forças. Se, por um lado, a ideologia pode ser entendida como produto coletivo e coletivamente apropriado, por outro, ela representa um interesse particular (de um grupo particular) mascarado de interesse coletivo.
Essa cultura dominante, produzida por uma certa classe social, promove o falso senso de integração da sociedade, levando à desmobilização das classes dominadas, e faz isso através dos instrumentos de comunicação: ao mesmo tempo em que a cultura une os indivíduos, impõe a distinção das classes e a legitimação dessa cisão. Operando essa visão no mundo ocidental, percebe-se a divisão social baseada na diferenciação entre os gêneros relacionais, masculino e feminino, promovendo uma legitimação dessa construção social naturalizada.
Como o interesse de qualquer classe é impor sua visão de mundo e sua ideologia, temos que a competição incessante baseia-se na busca dessa dominação. Quanto aos instrumentos comunicativos, sua produção é feita por aqueles indivíduos que possuem capacidades (arbitrárias) legitimadas e socialmente aceitas, ou seja, possuem capital cultural para produzir conhecimento e, dessa forma, converter propriedades sociais em propriedades de ordem natural. Foi dessa forma que construções propriamente arbitrárias, ou seja, construídas socialmente, passam a ter caráter simbólico de natural, original, ontológico. A dominação masculina se dá por esse instrumento.
A transmutação de determinações sociais em elementos naturais é a pedra fundante dessa dominação masculina e que elenca as características atribuídas aos sexos masculino e feminino. Segundo Bourdieu, “O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes”[4] em que há a construção de oposições axiológicas de elementos culturais de forma a organizar símbolos contrapostos em analogia aos órgãos sexuais e, mas precisamente, à visão de mundo androcêntrica. Essa diferenciação é melhor entendida na divisão social do trabalho, em que as funções são relacionadas arbitrariamente a cada um dos sexos, ignorando as diferenças corporais, por exemplo. Como o autor explica:
Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho. (O corpo e seus movimentos, matrizes de universais que estão submetidos a um trabalho de construção social, não são nem completamente determinados em sua significação, sobretudo sexual, nem totalmente indeterminados, de modo que o simbolismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e “motivado”, e assim percebido como quase natural).[5]
Percebe-se, então, uma incorporação dessa mítica a respeito dos corpos dispostos, inclusive pelas mulheres, dominadas, de modo que, com o passar dos tempos ocorre a fortificação dessa relação de submissão, transmitida culturalmente e reproduzida naturalmente. Como bem ressalta Angela Davis em sua obra, não há interesse dos homens, mesmo aqueles já dominados por outra relação de poder, como a escravidão e o racismo, em romper com a relação de dominação masculina. Dessa forma, enquanto o homem negro luta para se livrar dos resquícios da escravidão, a mulher negra ainda precisa lutar para libertar da dominação masculina.
Assim, tem-se que as mulheres são as mais interessadas e as mais aptas a compreender esse sistema de dominação e buscar a libertação da consciência dessa dominação simbólica. E foram diversas as mulheres que buscaram essa fuga, entretanto, dentro desse sistema, as mulheres expoentes têm que competir para produzir esse conhecimento, de modo a ter, constantemente, o seu capital cultural questionado e deslegitimado. Esse é o processo que inferiorizou por séculos toda a produção cultural feminina: a deslegitimação do capital cultural feminino.
Todo esse processo que se caracteriza pela reprodução de uma cultura androcêntrica, que relega às mulheres espaços de todo escondidos e desprestigiados, e retira delas a capacidade de formação, produção e reprodução da vida social é o que Pierre Bourdieu chama de violência simbólica. Como ele explica:
A dominação masculina encontra, assim, reunidas todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se vêem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que ela sofre.[6]
A Representação Feminina no Cinema
Compreendendo, então, como funcionam os instrumentos da dominação masculina e, principalmente, o cinema como um instrumento de dominação cultural, passa-se a apresentar e questionar quais são os elementos que, dentro (e fora) da produção cinematográfica, são responsáveis pela manutenção dessa dominação.
Primeiramente, é necessário perguntar ao leitor: você conhece alguma diretora de cinema mulher? Provavelmente não. Se conhecer, ela é famosa? Conhece mais de uma? Caso a pergunta fosse sobre diretores no geral, sem definir sexo, seria tão difícil? Mais da maioria dos diretores de sucesso são homens. Mas será que o único motivo de toda essa fama é apenas a capacidade de cada um deles?
A resposta é não. Na verdade, são vários os motivos de serem eles e não outros indivíduos, e mais ainda de não serem mulheres. Não que eles não tenham talento, contudo, mesmo que houvesse uma mulher com tanta capacidade quanto qualquer um deles, ela teria todo o seu capital cultural, que poderia ter sido adquirido ao longo de décadas de estudos e dedicação, desqualificado perante o capital cultural dos diretores homens.
Essa é uma das consequências mais claras da violência simbólica nos meios de produção cinematográfica. Porém, antes mesmo de chegar a esse ponto, as diretoras não teriam as mesmas oportunidades de alcançar os espaços privilegiados do cinema, ou sequer vir a se tornar diretoras, ficando relegadas a atividades secundárias. Ou até mesmo serem realocadas indiretamente, por pressão social dentro das próprias universidades, a trabalharem somente com áreas mais “artísticas”, como maquiagem e figurino.
E se a pergunta anterior fosse sobre quantas atrizes famosas você conhece? Muito mais fácil. Quantas delas representam ou representaram o ideal de beleza de sua época? Quase todas, não é mesmo? Esse é o outro âmbito em que a dominação simbólica masculina se faz presente nos meios cinematográficos. A primeira é relegando o espaço de produção cultural apenas à população masculina; a segunda é criando modelos de reprodução do machismo estrutural como forma naturalizada.
A questão da representatividade feminina no cinema se dá, portanto, em dois âmbitos, na produção cinematográfica e na representação em tela. Se por um lado, as mulheres não se vêem representadas na produção do cinema pela falta de profissionais mulheres em destaque, por outro, elas não se vêem representadas nos papéis apresentados, geralmente escritos por homens, em que são reproduzidos os velhos arquétipos ou, pior, estereótipos machistas.
Questionando a Estrutura Cinematográfica e a obra de Eleonore Pourriat
Recentemente, em abril de 2018, a plataforma de streaming Netflix lançou um filme francês que questionou o paradigma que o cinema tradicional costuma manter e, mais do que demonstrar em tela o machismo estrutural presente nas situações do cotidiano, trabalhou com a crítica aos próprios modelos que o cinema perpetua. Trata-se do filme “Eu Não Sou Um Homem Fácil” (Je Ne Suis Pas un Homme Facile), que apresenta um homem (Damien) que bate a cabeça e acorda em um mundo onde existe uma dominação feminina, completo inverso da sua (e nossa) realidade.
Esse filme é interessante em nossa análise por sua dupla importância. O longa é dirigido por Eleonore Pourriat, diretora feminista que já trouxe o conceito da inversão de papeis no curta de 2010 “Maioria Oprimida”, onde apresenta as diversas violências que uma mulher sofre, culminando na culpabilização reiterada. Tanto no curta quanto no longa percebemos como a dominação masculina cria mecanismos dentro das relações sociais para relegar às mulheres certos espaços, da forma apresentada por Bourdieu. Segundo ele:
Os homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder (sobretudo econômico, sobre a produção), ao passo que as mulheres ficam destinadas (predominantemente) ao espaço privado (doméstico) em que se perpetua a lógica da economia de bens simbólicos, ou a essas espécies de extensões deste espaço, que são os serviços sociais (sobretudo hospitalares) e educativos, ou ainda aos universos da produção simbólica (áreas literária e artística, jornalismo, etc).[7]
Assim, Pourriat demonstra que a sociedade é regida e dominada pela visão masculina, pelo olhar masculino, que veicula e transforma os bens simbólicos através das categorias masculinas e o faz ironizando as formas continuamente perpetradas pelo cinema tradicional. Ao sensualizar o corpo masculino da mesma forma que o feminino geralmente é, o filme causa estranhamento nos espectadores, que haviam naturalizado essa posição frente o feminino.
Dentro do cinema, são elementos diversos que reproduzem essa lógica e podem nos servir de exemplo: o papel do chefe costuma ser masculino; a mulher, quando é chefe, é carrasca e abusiva; todas as personagens femininas que possuem sucesso profissional são infelizes e possuem problemas emocionais; o estereótipo da loira burra ou da velha anciã que não sai de casa; a mulher que, ao escolher o sucesso profissional, acaba a vida sozinha e amargurada ou então descobre que o amor é a resposta; praticamente todas as mulheres do cinema são frágeis e dóceis e aquelas que demonstram características fortes ou violentas são “controladas” pelo amor; a clássica guerra entre amigas pelo coração de um homem ou os conflitos sempre presentes entre mulheres sobre coisas fúteis; os arquétipos do príncipe e da donzela em perigo, rearranjados de todas as formas possíveis.
Os próprios padrões de como o corpo feminino deve se apresentar no cinema, o padrão de beleza e até o formato das cenas, sexualizando ao extremo as relações femininas, onde o corpo da mulher é sempre super exposto e poses nada realistas. São todas formas de reiterar esses papéis submissos e manter, consciente ou inconscientemente, um olhar machista no cinema.
A necessidade de transformar o cinema e as formas que ele apresenta está diretamente ligada ao interesse de alterar os paradigmas da própria sociedade. Trazer mulheres fortes e reais para as telas e quebrar as estruturas machistas do cinema tradicional significa apresentar, ao público espectador, uma possibilidade de realidade potencialmente atingível e ideal a ser reproduzido na sociedade.
As Dificuldades na Produção Contra-hegemônica: Entrevista com Daphine Xavier[8]
Daphine Xavier é uma jovem cineasta recém formada no curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Seu trabalho de conclusão de curso, o curta documentário Zara, é um trabalho que evidencia, a partir da vida e obra da artista trans Zara Dobura, as dificuldades que as mulheres – ainda mais trans – têm ao tentar viver de arte. A entrevista em questão foi realizada durante a pandemia em março de 2021, no entanto reflete parte de um diálogo realizado entre o autor e a cineasta, em diversos momentos de 2019 e 2020, período das filmagens e da pós-produção do filme[9].
Iniciei questionando à cineasta sobre o espaço das mulheres no mundo cinematográfico, mais precisamente na produção do cinema. Daphine nos ressalta que a indústria cinematográfica tem sofrido grandes mudanças no período mais recente, mas a história é nítida quanto à centralização dos homens: “na universidade, só estudamos autores homens. O que está gravado na história do cinema é a produção masculina”. Quando se pensa no cinema clássico, às mulheres foi relegado espaço subalterno de, no máximo, a escrita de roteiros, justificado por motivos preconceituosos, afinal, na visão cultural masculina, as mulheres são mais delicadas e, por isso, escrevem melhor romances e histórias de amor. De fato, a inserção das mulheres na produção também foi limitada pelo tipo de conteúdo produzido: enquanto mulheres dirigem e produzem romances ou filmes sobre mulheres, os homens podem dirigir o que quiserem. Segundo a cineasta:
Recentemente, tem tido muitos festivais direcionados às mulheres. Mas percebe-se a diferença de como as pessoas te tratam, sendo uma diretora mulher. Inclusive com relação ao tipo de produção. Mulheres dirigem romances, enquanto homens produzem filmes de todos os tipos. Eles podem produzir filmes fortes. Na netflix tem uma sessão de mulheres fortes. No entanto, não tem uma sessão de homens fortes. Porque eles são considerados naturalmente fortes. Os homens são retratados como fortes em seus filmes e quando dirigem, não precisam ser tão bons para seus filmes serem considerados assim. Para mulheres é mais “raro”, por isso foi tão necessário para a Netflix inserir uma sessão própria, pois vagando você não encontra.
Mas de fato, cresceu muito a demanda por produções de mulheres, negros, lgbts e pessoas trans, apesar deste último ser ainda bem excluído do mainstream. Tornou-se uma mercadoria rentável e, por isso, passa a ter investimento. Para Daphine, “É bom que se tenha diversidade e visibilidade, mas isso só acontece porque o mercado aceita. As produtoras não fazem por humanismo e progressismo, fazem por interesse comercial”.
Para as produtoras independentes, para as diretoras interessadas em expor a realidade, os festivais ainda são, ainda, limitados, e para muitas, inalcançáveis. Daphine nos alerta para a existência de vários festivais para cinema feminino, mas afirma que gostaria de poder participar de qualquer festival sem ser em uma categoria específica para mulheres e ter seu filme reconhecido. “Os festivais de cinema direcionados são muito importantes pois são espaços de visibilidade, mas costumam ser pequenos e relativamente pouquíssimas pessoas verão seu filme, além de que a diretora tem que fazer sua própria divulgação. Quando se tratam de pequenas produções com praticamente nada de orçamento, essa dificuldade é imensa”. Ou seja, mesmo a participação em festivais que focam no cinema feminino gera empecilhos, pois, de um lado, “impede que a maioria tenha visibilidade” e, por outro, a auto divulgação faz com que o filme “Não saia do próprio ciclo”.
Isso tudo nos indica que a produção cinematográfica das mulheres não faz parte da indústria cinematográfica realmente, mas é colocado em um espaço à parte, é transformado em nicho ou, na melhor das hipóteses, transformado em produção que salienta o empoderamento das mulheres, mas somente na tela, pois atrás dela a verdade é outra.
Quando perguntada como é o tratamento que recebe no set de filmagens, mesmo quando é diretora, Daphine nos explica que no set, as mulheres costuma ser vistas como bravas ou estressadas, e isso pois precisam exigir respeito, enquanto os homens não precisam batalhar para serem respeitados. Segundo a cineasta, “ou me consideram fofa ou indefesa demais para valer o respeito, ou sou considerada grossa, violenta, e todos os demais adjetivos que usam para deslegitimar uma mulher”. De fato, com os diretores homens as coisas são bem diferentes. São diversos os casos de efetivo abuso psicológico e sexual nos sets de filmagem por diretores famosos que não sofreram sanção alguma ou sequer foram confrontados pela comunidade do cinema. Lars von Trier, Oliver Stone, James Toback, Brett Ratner, Roman Polanski e Woody Allen são alguns dos exemplos mais marcantes.
Tais elementos indicam relações que nem sempre estão visíveis para aqueles que participam do processo de produção de um filme. A própria hierarquia no set de filmagens esconde relações de dominação masculina. Enquanto o diretor, comumente um homem, é o gênio criativo, o pai do filme e seu responsável mais direto, a produtora, geralmente uma mulher, é a responsável por colocar “ordem na casa”, cuidar para que as tarefas sejam feitas, cobrar a participação dos integrantes da equipe, estabelecer toda uma série de regras e cobrá-las, numa expressão que a vincula à figura materna ou à governanta da casa.
Sobre a produção do filme Zara, Daphine Xavier nos falou sobre o processo de produção e as dificuldades que encontrou, de um lado, pelas condições materiais que uma produção acadêmica tem e das condições materiais que a própria Zara possuía, e de outro, pela pressão externa de certos setores do movimento feminista, que se apegava mais ao elemento do “lugar de fala” que da necessidade da produção em si:
A ideia do Zara foi que o processo importasse mais que o resultado final. Ao produzir um filme pensando no set, em como as pessoas vão trabalhar lá, pensando no bem estar de quem está participando, se altera muito o resultado final. Para ter um filme satisfatório para o que o cinema exige, haveria uma demanda muito maior por trabalho e por dinheiro. Por isso focamos no processo. E funcionou em parte. Aos poucos foi acabando o gás. Não tínhamos dinheiro e não tínhamos cachê. Fazer um documentário sobre uma mulher trans gerou alguns problemas: houveram manifestações sobre o lugar de fala da produção, mas também foi difícil acompanhar a vida da Zara porque fomos impactados materialmente com suas dificuldades. Zara é uma mulher trans, que morava no morro em Florianópolis, vivia em parte com uma bolsa de estágio que paga o mínimo e em parte pelo o que ganhava com suas performances artísticas. Então foi muito difícil ter acesso à Zara, à acompanhar a sua vida. A produção foi muito conturbada nesse sentido. Inclusive a ideia inicial era que eu e Zara construíssemos juntas o roteiro do documentário, mas isso acabou não sendo possível por dificuldades diversas, muitas delas já citadas.
Quanto aos conflitos com o movimento feminista, Daphine nos diz ter tido muito apoio das professoras, incluindo sua orientadora, que participavam do IEG, o Instituto de Estudos de Gênero da UFSC. Indicavam que necessitava de muita coragem para realizar uma obra sobre um assunto tão complexo e delicado. Por outro lado, não foram poucas as críticas à cineasta por não estar em “seu lugar de fala” – espaço mais próximo do determinismo biológico que do direcionamento político – e estar fazendo um filme sobre uma mulher trans sendo que é uma mulher, branca, cis. O discurso do lugar de fala aplicado impunha uma limitação concreta: Daphine não devia se empenhar na construção de uma obra que tratasse da questão trans simplesmente por não ser trans. A própria visibilidade do tema, tão necessário nesse momento, logo foi esquecido pelos críticos em prol dos impedimentos físicos, materiais e biológicos de suas realizadoras.
Segundo Daphine, a própria Zara a apoiou muito antes e durante o processo. Zara, como sujeito e personagem principal da obra, entendia e aprovava a necessidade de um documentário sobre sua vida e sua obra e, por isso, participou com entusiasmo da produção. Para Daphine, a questão principal é a empatia e o olhar atento do documentarista, ou seja, o interesse e o cuidado na produção. E por isso considera o filme Zara um sucesso, pois o processo se refletiu no resultado e o documentário se apresentou cuidadoso, simpático, delicado e, principalmente, dedicado em mostrar a vida de Zara através dela mesma.
Assim, a entrevista com Daphine Xavier nos permitiu observar alguns elementos fundamentais que indicam o processo de dominação masculina a qual a produção cinematográfica está submetida: a limitação objetiva de produções feitas por mulheres e a subordinação subjetiva a que as mulheres estão obrigadas nas relações sociais dentro do set, como nas expressões da hierarquia da produção, na forma como são tratadas e na falta de reconhecimento pelo seu trabalho.
Conclusão: O Papel da Presença Feminina por Trás das Câmeras
A partir dos elementos que trabalhamos no texto, surgem alguns imperativos para reflexão: primeiramente, precisamos entender que, enquanto continuarmos reproduzindo as formas e os papéis que mantêm essa dominação simbólica, ela se perpetua cada vez mais forte dentro da própria sociedade. A cada representação machista há diversos indivíduos que incorporam esses princípios e os reproduzem no meio social, reiterando esse processo de dominação.
Contudo, para que isso se torne uma realidade é necessário o movimento de todas as envolvidas nesse processo. Como o cinema é uma arte complexa e cara, a mudança precisa ser efetivada em vários âmbitos. Ao escrever um roteiro, ao dirigir uma cena, ao indicar uma atuação ou escolher a equipe. Ao decidir qual filme patrocinar ou qual premiar. A quem serão dadas as oportunidades.
Mas esse apelo, apesar de se destinar a todos os âmbitos sociais, é mais direcionado às mulheres. Apenas as mulheres, que vivenciam essa violência simbólica dia a dia, podem alterar significativamente essa realidade. E para que o cinema deixe de ser machista, é necessário mulheres na sua produção. Já são vários os movimentos que buscam essa representatividade no âmbito do cinema, mas a sua ampliação deve ser alcançada. Roteiristas, diretoras, editoras e produtoras mulheres.
Ainda, rememorando Angela Davis e as lutas do feminismo negro, também é importante lembrar que mesmo dentro do movimento feminista há a diferenciação entre raça e classe. Por isso, ainda mais importante é que as mulheres negras produzam e construam esse espaço, criando um cinema negro e feminista em que as relações de poder que apenas elas reconhecem possam ser debatidas e combatidas. Mas para além disso, é necessário que toda produção seja um espaço de saber político que direcione seus objetivos para muito além da arte. O intuito da arte, nesse sentido, é ir mais além e mudar a realidade, daí surge o imperativo da politização do cinema.
Compreender e visualizar esses esses espaços dominados pelos homens, onde o poder simbólico impõe a todos os indivíduos da sociedade a mesma dominação é simplesmente o princípio da luta pela quebra, destituição e deslegitimação desses instrumentos de controle social e reprodução de dominação simbólica. O próximo passo, que ocorre ativamente dentro dos meios dessa produção cabe aos agentes da mudança, mulheres e, idealmente, homens, com coragem e determinação para combater sua própria consciência e mover as estruturas simbólicas da sociedade.
Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Editorial Presença: Lisboa, 1970.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Editora Bertrand Brasil – Rio de Janeiro, 1989.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Editora Bertrand Brasil – Rio de Janeiro, 2012.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Editora Zahar – Rio de Janeiro, 1997.
DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. Plataforma Gueto, 2013.
POURRIAT, Eleonore. (Diretora). Maioria Oprimida (Majorité opprimée). Curta-metragem – França, 2010.
POURRIAT, Eleonore. (Diretora). Eu Não Sou Um Homem Fácil (Je Ne Suis Pas un Homme Facile). Longa-metragem – França, 2018.
XAVIER, Dáphine. (Diretora). Zara. Curta-metragem – Florianópolis, 2020.
[1]Mestrando em Teoria e História do Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. <marlon.xavier.arquivo@gmail.com>;.
[2] BOURDIEU, 1989, p. 28.
[3] Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Editorial Presença: Lisboa, 1970. p. 41 ss.
[4] BOURDIEU, 2002, p. 16.
[5] Idem, p. 18.
[6] Idem, p. 45.
[7] Idem, p. 112.
[8] Entrevista concedida em 10 de Março de 2021.
[9] Os debates realizados com Daphine Xavier influenciaram na escrita deste artigo.