A obrigação de escrever para jornal, na batida do martelo, oferece uma grande dificuldade, que é a escolha do tema.
Primeira inspiração que tive desta vez foi expressar que estou saturado de burocracia. Comecei estimando a carga de burocracia que tive de aguentar no decurso da existência: a) reconhecimento de firmas e xerox de documentos, em cartório – 1.400; b) prova de que eu sou eu, não sou outro – 300; c) prova de que estou vivo (felizmente estou vivo), não estou morto – 400; d) prova de que tenho idoneidade moral e não respondo a processo criminal – 250; e) prova de residência – 500; f) prova de que sou casado e brasileiro – 200; g) prova de que nada devo ao fisco – 800; h) prova de que não sofro de moléstia contagiosa e de que sou vacinado – 150; i) prova de inscrição na OAB – 100; j) prova de que, depois de tanta burocracia, ainda sou capaz de pensar e escrever, ou seja, não fiquei maluco (esta prova ainda não foi exigida mas, por segurança, arrolei).
Depois de reviver os percalços do labirinto burocrático, fiquei cansado e decidi transferir a redação do artigo para o dia seguinte. Mas no dia seguinte, sábado passado, avaliei que o artigo não ficaria bom. Tinha de partir para outro.
Algumas vezes tenho me valido de datas comemorativas, ou de fatos acontecidos nas proximidades do artigo, para comparecer com meu texto. Essa colaboração, a que estou me referindo, apareceria entre o Dia do Trabalho e o Dia das Mães. Na ausência de fato, a meu juízo, merecedor de interesse público, na segunda quinzena de abril, Trabalho e Maternidade, temas bonitos, eram as balizas que estavam colocadas. Cumpria levar avante a tarefa.
Como iria exaltar o trabalho?
Meditei que a erradicação da pobreza e da marginalização, como previsto na Constituição, é objetivo prioritário dentro de um projeto de Brasil orientado por uma política humanista. Refleti que a Constituição não será cumprida se não se realizarem as condições do humanismo existencial. Como esse humanismo pode presidir nossos destinos? Será indispensável garantir trabalho para todos os brasileiros, fazer do “direito ao emprego” o fundamento da organização social. E mais: assegurar aos trabalhadores os direitos que lhes pertencem, por imposição constitucional e ética.
Esses parágrafos esgotavam o primeiro item do projeto de artigo.
Agora teria de enfrentar a parte mais delicada do texto: a exaltação da Maternidade.
A Mãe é a sede da vida, seja da vida biológica (mãe sanguinea), seja da vida espiritual e afetiva (mãe adotiva).
Exaltar a maternidade é antes de tudo exaltar a vida. É reconhecer, não apenas o direito de nascer, mas também o de viver em plenitude. É proclamar o direito à vida nas mais diversas circunstâncias. Tem valor a vida do que está prestes a se apagar. Vale infinitamente esse pouco de vida porque a vida vale infinitamente. Vale a vida de quem, na aparência, não integraria a sinfonia do Cosmos, atingido por doença que estabeleça uma ruptura de diálogo com o mundo. Vale essa vida como desafio para que com ela nos encontremos.
Em reverência à vida, não podemos concordar com a fome, as exclusões, os holocaustos nacionais ou raciais, o armamentismo, a guerra, a violência em todas as suas formas, a pena de morte.
Puxa vida. Raciocinando sobre o artigo que escreveria, não é que acabei escrevendo o artigo…
* João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado, professor da Faculdade Estácio de Vila Velha (ES) e escritor. Autor de Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória (Editora GZ, Rio).
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