Sociedade

Limites do humor

Para falarmos de humor, entendo conveniente indicar a origem que remonta a Gilles Lipovetsky é um filósofo francês, professor de Filosofia da
Universidade de Grenoble, considerado como teórico da hipermodernidade[1] (termo criado por ele para definir a atual sociedade humana, demonstrando a
exacerbação dos valores criados pela modernidade, tais como liberdade, igualdade e outros).

Gilles[2] em suas principais obras, e em particular a “A Era do Vazio : Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo” (“o Luxo
eterno”, “O império do efêmero” e, ainda “Os tempos hipermodernos”) analisa sociedade pós-moderna, marcado pelo desinvestimento público, pela perda de
sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, e notabilizada pela cultura aberta que tenta dar um clima “cool” nas relações
humanas, buscando o predomínio da tolerância, hedonismo, personalização dos processos de socialização e a coexistência pacífico-lúdica dos antagonismos
– violência e convívio, modernismo e ambientalismo e consumo desenfreado.

A lógica bipolar que se traduz num humor de humilhação e arrogância e que torna escatológico o rir. E transforma o politicamente incorreto em
absolutamente indispensável para o script.

O humor que é capaz de esculachar a orfandade no dia das mães, de meritizar o estuprador… e, quiçá ser incentivador de crimes sexuais, além de
incorrer em machismo démodé ou em pedofilia galante, só para não perder a oportunidade da piada. Não é humor… infelizmente é apenas um apelo
gritante por maior atenção na mídia.

O humor e isso inclui seu limite, exige reflexão, já apontava Luigi Pirandello pois afasta o emocional e lança o olhar crítico e cônico incidente no
objeto… vindo a mergulhar em raízes filosóficas e mesmo filológicas. O riso, por vezes, significa a síncope da emoção, e o lampejo da razão que
desnuda a mecânica grotesca dos ciclos vitais.

O humor que reforça o preconceito ou o elitismo não é humor… atropela a dignidade humana e, sem esta, não há como achar graça de nada…não sei se
lembram, do primo rico e do primo pobre que eram representados por Paulo Gracindo e Brandão Filho que já em seu tempo era considerado politicamente
incorreto e aos poucos foi mostrando o lado negro da miséria e o comprometimento do Estado na manutenção da mesma.

E também não significa censura, o fato de se restringir a liberdade de expressão que fere a dignidade da pessoa humana, os valores morais e sociais,
como a família, a maternidade, a criança e, enfim, a reserva moral da sociedade.

Aliás, convém ressaltar sempre que não existem liberdades absolutas, assim como não existem direitos fundamentais absolutos e irrestritos. Sempre
far-se-á ponderabilidade em prol de valores que norteiam toda a tutela jurídica sobre a vida humana, sobre a família, e, enfim, sobre a sociedade.

Outra coisa muito atentatória aos limites do humor é a vaidade, principalmente se esta demonstra apenas um grande ego vazio e ingênuo. O humor tem
efetiva função de protesto, de exposição e de inquirição. E não mera autopromoção e autoestima.

A exposição ao ridículo pode trazer a lume a realidade dos fatos, mas ridicularizar o trem de Auschwitz significa menosprezar o seu significado, a
agudeza do significado que foi o genocídio submetido aos judeus e, mesmo o fato de ser judeu, não o credencia à imunidade e nem ao mau gosto.

Ainda que pensemos na relação umbilical entre humor etnia[3] e na tradição do humor judaico, e só para citar como exemplos temos: o Jerry Seinfeld,
Woody Allen e Billy Cristal, cada cultura reage particularmente a esse tipo de humor. E quanto maior o grau de cultura e civilidade as reações não
beiram a ironia cáustica e corrosiva.

Mas talvez um mero meio defensivo de satirizar a própria sorte( ou será azar).

Em verdade o humor é preâmbulo da comédia, mas com essa não se confunde. A grande ironia do humor que atribuem ao stand up é no exercício
solitário e desafiador do comediante, aliás, foi precursor no Brasil José de Vasconcelos, e criou o espetáculo solo e preconizou o humor de cara limpa.

O stand up comedy não conta piadas ou anedotas conhecidas ou desconhecidas de seus ouvintes. O texto é originalmente calcado e construído
através de observações feitas cotidianamente, e requer uma lapidação de sessenta a setenta minutos do material humorístico, principalmente por ser um
estilo difícil de execução e domínio, pois o comediante está despido de personagens, apresentando apenas suas idéias sobre as coisas do mundo, sobre o
que se passa pela sociedade…

Expõe o seu olhar crítico sobre o lado engraçado do cotidiano.

E eis, aí, um grande filão, pois a prova de fogo é enfrentar um heckler[4], ou seja, um membro da audiência que por algum motivo reage ou
interage com o show, mas em geral de forma não muito amistosa, podendo até vir a responder de forma maior e mais contundente desviando a platéia
do entretenimento.

No Brasil, o stand up comedy começa fazer sucesso principalmente por introduzir um humor contundente e adolescente, incrementado pelas redes
sociais, mas ainda me pergunto: existem limites?

A hipermodernidade que foi a grande inspiradora desse humor, conhece limites? Existem regras para fazer rir, para fazer refletir e, finalmente, para
continuarmos humanos e humanizantes? Afinal, seu próprio idealizador, Gilles Lipovetsky afirmou que a hipermodernidade nunca existiu, apesar de ser
termo muito popular.

Bem, não será desacatando jornalistas, cantoras, pais, mães e órfãos ou judeus que descobriremos… Mas há uma certeza de que a fama efêmera do
escândalo provinciano e pequeno burguês irremediavelmente passa… como também passa, a carruagem do tempo a nos lembrar dos valores eternos.

Não queremos viver no caos e nem na selva. Existem valores éticos que não morreram como o respeito humano e o pluralismo. E o humor pode ser salvo por
ser a crítica engraçada da história ou estória dos homens, repleta de paradoxos, competitividade e valores humanísticos e democráticos. Afinal, não se
compra a felicidade e nem a dignidade.

Referências

LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

­­­­­­­­_______________. ROUX,Elysette. O Luxo Eterno – Da idade dosagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_______________. A Terceira Mulher. Acesso em 12/10/2011. In: http://pt.scribd.com/doc/15487395/A-terceira-Mulher

FRAGA, Celso. Somos hipermodernos. Tradução de Vanise Dresch. Acesso em: 12/10/2011. In: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/cibercidades/lipovetsky.pdf

ROGAR, Silvia. Entrevista: Gilles Lipovetsky. Beleza para todos. Veja On-line 25/09/2002. Acesso em: 12/10/2011. In: http://veja.abril.com.br/250902/entrevista.html

Notas de rodapé:

[1] A Hipermodernidade não significa uma contestação da modernidade, pois apresenta características similares em relação aos seus princípios, como
ênfase no progresso técnico científico, na valorização da razão humana e no individualismo. A modernidade foi conceptualizada como a superação dos
setores modernos sobre os setores tradicionais, por meio do progresso técnico, da industrialização e na valorização do indivíduo

[2]  O francês Gilles Lipovetsky, é um dos nomes mais criativos e polêmicos do pensamento filosófico contemporâneo. Foi ativista dos movimentos que
culminaram no maio de 1968, teve participação importante na reformulação do ensino de filosofia na França e, atualmente, trabalha para o programa
europeu de unificação escolar. Reconhecido como um intelectual “sério”, causou polêmica quando lançou O Império do Efêmero, em 1987.

[3]  “O que define a hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das instituições modernas; é também a memória revisitada, a
remobilização das crenças tradicionais, a hibridização individualista do passado e do presente. Não mais apenas a desconstrução das tradições, mas o
reemprego dela sem imposição institucional, o eterno rearranjar dela conforme o princípio da soberania indiviudal”(Lipovetsky, 2004:98)

[4]  Heckler é um termo de origem inglesa, usado para definir uma pessoa que interrompe locutores para discutir ou fazer perguntas embraçosas. No tempo
dos shows de vaudeville ou de teatro de rvista, os falsos heckler eram introduzidos nas apresentações, brincando com a quarta parede, criando uma
interação com o público. Na comédia, se tornaram comuns os dules de piados e com pessoas, por vezes, repleto de insultos.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Limites do humor. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/limites-do-humor/ Acesso em: 22 nov. 2024