Sociedade

Estranhas Prioridades Brasileiras.

Estranhas Prioridades Brasileiras.

 

 

André de Moura Soares*

 

Nós, brasileiros, através de nossas autoridades civis escolhemos as nossas prioridades de uma forma muito estranha. Parece que vivemos em dois mundos diferentes, os das autoridades e os das pessoas comuns.

 

Dia desses vi uma matéria em que o Ministro da Saúde[1] mencionava que há mais de 20 anos o Brasil demanda uma política de saúde pública que permita às pessoas mudarem de sexo. Não quero entrar na seara de ser moral ou imoral as operações de cirurgias de mudança de sexo, quero apenas compará-la com outras demandas para concluir o quão estranhas são as prioridades brasileiras. A matéria divulgada no portal da Internet G1 – Brasil notícias[2] é do seguinte teor:

 

O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, anunciou nesta quinta-feira (5) que até o fim do mês o ministério vai baixar uma portaria estabelecendo que cirurgias para mudança de sexo possam ser feitas gratuitamente em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ele, o governo está fazendo os últimos ajustes na portaria, que entrará em vigor assim que for publicada no Diário Oficial da União (DOU) – o que ainda não tem data certa para acontecer. “É uma demanda social que está na nossa agenda há mais de 20 anos. Vai ser mais um passo na consolidação desse caminho em que o Brasil é liderança mundial. O ministro conversou com a imprensa ao chegar à 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT), em Brasília. Segundo Temporão, a intenção do governo é que, inicialmente, hospitais universitários do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais possam realizar o procedimento. O ministro explicou que, a partir da portaria, outros hospitais da rede pública poderão se credenciar para que o Ministério da Saúde possa verificar se eles estão aptos a fazer a cirurgia. “O Ministério da Saúde tomará todos os cuidados do ponto de vista ético, e do ponto de vista médico”, garantiu Temporão.

 

Pois bem, no dia 22 de setembro de 2008, exercendo as minhas funções de Defensor Público, ajuizei uma ação contra o Distrito Federal, integrante do Sistema Único da Saúde. A ação visa garantir a uma senhora pobre o acesso ao tratamento de radioterapia. Ela sofre de câncer no colo do útero. Foi preciso buscar a via judicial, pois, no Distrito Federal, Capital da República, local em que sediado o Ministério da Saúde[3], a rede pública, integrante do Sistema Único de Saúde dispõe apenas de 01 aparelho de radioterapia e o mesmo estava danificado. Conversei, pessoalmente, com uma das diretoras do Hospital de Base do Distrito Federal e fui informado que o aparelho estava fazendo uma operação “vaga-lume”, ou seja, acendia e apagava, funcionava e não funcionava, matava e não-matava, tudo de forma aleatória.

 

O tratamento do câncer, doença agressiva e que expõe o portador a sério risco de morte, ao que parece, não é uma demanda terapêutica prioritária do Ministério da Saúde e do SUS. Vejamos o paradoxo, se a senhora em favor do qual ajuizei uma ação quisesse mudar de sexo, seria prioridade; mantê-la viva e tentar curá-la do câncer, estranhamente, parece não ser prioridade.

 

No dia 28 de setembro (domingo) redigi uma petição inicial (meio pelo qual se dá início a uma ação judicial) em favor de um senhor de 44 anos de idade. Ele foi atropelado no dia 27 de maio de 2008 e foi submetido a uma cirurgia de emergência no Hospital de Base do Distrito Federal, integrante do SUS. A cirurgia parece não ter sido bem sucedida por motivos que restam mal esclarecidos.

 

Nova intervenção cirúrgica se faz necessária. Desde junho de 2008 o pobre senhor aguarda em uma cama, dependendo da ajuda de amigos e familiares. Não há previsão de realização de cirurgia. Os ferros e pinos que foram acoplados à perna deste senhor já começaram a afrouxar.

 

Para não piorar a situação que já é horrível, vejam o absurdo, foi preciso fortalecer o curativo com uma chave inglesa. Vejam a foto da perna do pobre paciente do Sistema único de Saúde:

 

 

Se o senhor, cuja foto da perna foi acima reproduzida, quisesse mudar de sexo teria todo apoio do Ministério da Saúde, mas a pretensão dele é de outra ordem, apenas pretende voltar a deambular normalmente, voltar a exercer a sua digna profissão de porteiro, com a qual sustenta a própria família.

 

Torno a dizer, não pretendo aqui debater questões de ordem moral, se é ou não correto alguém querer mudar de sexo. Gostaria de entender como são eleitas as prioridades do nosso governo, em especial do Ministério da Saúde. Penso eu que antes de escolhermos quais demandas são prioritárias deveríamos adentrar no real significado da dignidade humana, no real significado de bem comum.

 

A dignidade da pessoa humana é o princípio que está adiante de todos os outros princípios. Não é possível, em nosso ordenamento jurídico, falar em qualquer direito sem antes adentrar no real significado da dignidade a que todo ser humano é credor. Inexiste alguém mais digno do que outro. Todos pertencem ao mesmo gênero humano e a dignidade lhes é inata. Em conformidade com a natureza social, gregária, do homem, o bem de cada um está relacionado com o bem comum que só pode ser definido em referência à pessoa humana, diante de suas reais necessidades, visando o bem comum.

 

Por bem comum entendo o conjunto daquelas condições da vida social que permitem ao grupo e a cada um de seus membros atingirem de maneira mais completa e desembaraçadamente o próprio desenvolvimento. Em primeiro lugar, as exigências do bem comum e do respeito à dignidade da pessoa humana, exigem o respeito pela pessoa como tal. Em nome do bem comum, os poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos humanos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. Em segundo lugar, as exigências do bem comum e do respeito à dignidade da pessoa humana, exigem o bem-estar social e o desenvolvimento do próprio grupo.

 

É claro, cabe à autoridade servir de árbitro e escolher as prioridades estatais, mas tais escolhas devem ser feitas levando em conta o bem comum, entre os diversos interesses particulares. Mas o reconhecimento de lindes de discricionariedade não desonera as autoridades e o próprio Estado de tornar acessível a cada um aquilo de que precisa para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação etc.

 

Como se percebe, o bem comum e o respeito à dignidade da pessoa humana, deve sempre estar orientado ao progresso das pessoas. Qualquer comportamento que afronte tal desiderato deve ser considerado contrário ao bem comum e ao respeito à dignidade humana, sendo maculado pela eiva da ilegalidade e da inconstitucionalidade. O descaso com o tratamento de inúmeras pessoas carentes acometidas de diversas enfermidades fere a dignidade da pessoa humana.

 

Nos dois exemplos acima citados, o da senhora com câncer no colo do útero e do senhor com fratura na patela, parece nítido a ocorrência de lesões à dignidade da pessoa humana. Mas, estranhamente, a cura destas duas pessoas, que citei dentre diversos exemplos, não parece ser uma demanda prioritária do Ministério da Saúde.

 

A ofensa aos atributos do bem comum e da dignidade da pessoa humana não se dá só por atos comissivos, mas também por atos omissivos. O Estado brasileiro, fortemente marcado por uma cultura política atávica, sempre prefere obras à educação, obras à saúde, obras à segurança pública. Discurso à prática. Entre dotar um hospital de recursos e construir uma praça ou veicular uma propaganda na televisão, a opção política estatal brasileira é construir uma praça e veicular a propaganda, muitas vezes só veicular a propaganda. A desculpa: discricionariedade. A conseqüência: omissão na observância dos direitos fundamentais do homem, especialmente daqueles vulnerados pela pobreza financeira e social.

 

A propagação de que as portas para mudança de sexo estarão abertas nos hospitais da rede pública de saúde me parece só mais um discurso de efeito retórico, para agradar uma meia dúzia de pseudo-intelectuais e para afrontar a maioria da população, que exige e reclama um tratamento digno nos hospitais públicos. Dizem os políticos que defendendo temas como mudança de sexo e aborto estão a enfrentar a elite cristã, especialmente a Católica que impede a mudança positiva, que impedem o progresso brasileiro. Pura balela, na verdade, estão criando “factóides” para aparecer na televisão, para parecerem modernos e cultos e estão a dar de ombros para os mais pobres.

 

Esta opção política estatal permite que pessoas, como as citadas no início deste texto, agonizem e sofram sem tratamento médico, pois o Estado prefere gastar os recursos em propaganda (muitas de obras que não foram e nem serão feitas), obras desnecessárias, nepotismo e outras chagas que assolam nossa sociedade. Ao agir desta forma, o Ministério da Saúde, desrespeita direitos humanos essenciais (direito ao acesso aos esforços necessários para recuperação da saúde, por exemplo) e tal conduta deve ser tida por contrária ao bem comum. A discricionariedade não pode ser levada ao extremo de se negar os direitos humanos fundamentais aos cidadãos, em especial aos mais pobres.

 

O tratamento não pode esperar! Não se pode admitir que pessoas sejam tratadas de forma tão desumana, tão aviltane, tão degradante, pelo simples fato de serem pobres. É preciso tratar com humanidade todas as pessoas independentemente de classe social. Aqui, para se aferir o grau da injustiça que é cometida contra as pessoas que ilustram o presente texto e os outros milhares de pessoas que sofrem na carne o descaso com a saúde pública, há de se perguntar: Fossem eles influentes, apaniguados de algum político, estariam na condição em que estão? A resposta é clara: não.

 

Não é demais repetir, os direitos inalienáveis da pessoa devem ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil e pela autoridade política. Os direitos do ser humano não podem ficar a mercê da boa vontade do governante de plantão. A sociedade, ao preservar a dignidade humana, não faz nenhum favor, pois tal dignidade é inerente à pessoa em razão de sua dignidade transcendental. Não podemos tolerar o desrespeito à vida e à integridade física, ainda que a violação se dê pela inércia e ineficácia estatal.

 

As exigências inerentes ao artigo 1º, Inciso III da Constituição Federal obrigam que o Estado tenha especial atenção com aqueles cuja vida está diminuída ou enfraquecida, lhes dedicando um respeito especial. As pessoas doentes ou deficientes devem ser amparadas, não relegadas ao descaso e escárnio público, como está acontecendo com a política levado a efeito pelo Ministério da Saúde.

 

                   O espírito de fraternidade, de solidariedade, enunciado na Constituição Federal, até agora, não se concretizou na vida de milhões de pessoas pobres no Brasil, apesar da propaganda governamental que afirma que nunca antes neste País se viu tanta inclusão social. Os mais carentes estão sendo tratados de forma iníqua e manifestamente contrária aos ditames constitucionais. A igual dignidade das pessoas postula que se chegue a condições de vida mais justas e mais humanas. A imagem adrede reproduzida e a longa espera por tratamento experimentada por milhões de brasileiros evidenciam que antes de pensarmos em realizar cirurgias de mudança de sexo deveríamos exigir que os hospitais da rede pública fornecessem tratamento médico aos doentes com o mínimo de dignidade.

 

 

* Defensor Público em Taguatinga, DF.

 

 

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[1] Alguns preferem chamá-lo de “sinistro da saúde”.

[2]http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL591282-5598,00-TEMPORAO+ANUNCIA+QUE+MUDANCA+DE+SEXO+TERA+CIRURGIA+GRATUITA+NO+SUS.

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[3] Alguns preferem chamá-lo de “cemitério da saúde”.

Como citar e referenciar este artigo:
SOARES, André de Moura. Estranhas Prioridades Brasileiras.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/estranhas-prioridades-brasileiras/ Acesso em: 27 dez. 2024