Há uns dias recebemos do «site» Mestre Jurídico, notícia sobre tramitação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal do Brasil, de um projeto de lei (n. 5.475/2009), de autoria do deputado Carlos Bezerra, do PMDB/MT. Numa primeira e rápida visada sobre a peça experimentamos o choque da surpresa. Empós de leitura com detença, concluimos que em verdade, sem querer desmerecer o autor do projeto e nem os órgãos que andam lhe dando publicidade, que depois de mais de trinta anos de advocacia em todos os ramos e em todas as instâncias, estamos mesmo diante de nova experiência, qual a de tomar conhecimento de uma absurdidade tamanha, a constituir, eventualmente, rito processual civil imiscuído com penal substantivo e adjetivo, a orientar a vida do pobre e infeliz brasileiro junto à Casa da Justiça, cada vez mais remota e, com esse projeto, mais perigosa. Veja-se, em primeiro lugar, que a lei alvitrada já viria ornamentada com destaque cabotino, de mau gosto, como: «O Congresso Nacional decreta: «Art. 1º. Esta lei estabelece medidas para aprimorar a entrega da prestação jurisdicional e conferir eficácia às decisões judiciais.» Consabido que os propósitos são extravagantes, vez que a «entrega da prestação jurisdicional», ou a sentença, não se «aprimora» por força de lei sem regulação própria, vez que aprimorar, ou rematar, significa melhorar, o que acontece naturalmente, através da percepção dos seus destinatários e não, do legislador. Expedir lei para aprimorar o Código Buzaid, expressamente anunciado, é pretender comprometê-lo na sua historicidade. Obra dessa envergadura tem seu tempo de duração, mas não se estraga, dá lugar a novas disposições adequadas à evolução da sociedade. É pura, até que morra, sem perder o brilho, como os grandes Códigos, de Hamurabi, p. exemplo. Expressão assim seria interessante, acreditamos, na «justificação» do projeto, ou em «exposição de motivos», não na lei. Em seguida o art. 1º determina que sua finalidade é também «conferir eficácia às decisões judiciais.» Na linguagem vulgar, eficácia é contemplada como «qualidade que produz o efeito que se espera», ou como «eficiência». Juridicamente, a eficácia, ou a força produtora de efeito da decisão judicial decorre dela mesma, a não ser no caso de sentença estrangeira, que depende de homologação para surtir consequências jurídicas. Todavia, não há qualquer previsão de disposição nesse projeto de lei atribuindo eficácia aos atos judiciais, sendo, portanto, o artigo 1º, uma prosaica e inconsequente expressão. O artigo 2º vem assim projetado: «Art. 2º. Nos julgamentos de recursos cíveis, a condenação em honorários advocatícios não se limitará às decisões prolatadas em primeira instância. «§ 1º. O acórdão condenará o vencido no recurso ao pagamento de honorários advocatícios, independentemente daqueles fixados em decisões anteriores, arbitrados entre 5% e 15% do valor atualizado da causa ou da condenação, atendidos o grau de irrazoabilidade e intenção procrastinatória do recurso, bem como o prejuízo advindo à parte contrária com a demora. «§ 2º. Se o valor da causa, mesmo atualizado, for substancialmente baixo, o órgão julgador fixará honorários advocatícios compatíveis com o caso. «§ 3º. Se o Tribunal ao qual o recurso for dirigido concluir que o direito ou prova dos autos, objeto do recurso conhecido ou improvido, justifica o reexame do caso, mostrando-se de boa-fé, poderá isentar o recorrente de nova condenação em honorários advocatícios. «§ 4º. Não haverá condenação em honorários advocatícios nos embargos infringentes, nos recursos adesivos e nos recursos interpostos pelo Ministério Público. «§ 5º. Caso o recorrente desista do recurso – sem concordância da parte contrária – antes de seu julgamento, a desistência implicará acréscimo automático de honorários advocatícios no percentual de 8% do valor da causa ou da condenação. «§ 6º. A condenação em honorários advocatícios em sede recursal será imposta nas apelações, agravos de instrumento não retidos, correições parciais, agravos regimentais, reclamações, embargos de declaração, mandados de segurança contra decisões ou despachos judiciais, recursos especiais e extraordinários. «§ 7º. Caso o recorrente veja finalmente reconhecido o seu direito, as anteriores condenações em honorários advocatícios em sede recursal serão canceladas, prevalecendo o arbitramento fixado na sentença, valor a ser pago pela parte vencida.» O artigo 2º, «caput», em sua curiosa redação estabelece que: «Nos julgamentos de recursos cíveis, a condenação em honorários advocatícios não se limitará às de decisões prolatadas em primeira instância.» Exsurgente aí, a expressão primeira instância, que o CPC, no seu sistema, não consagra. Doutro lado, o julgamento do recurso faz-se pelos tribunais, e parece não ter, o julgamento em Segundo Grau, como se limitar ou não às decisões do Primeiro Grau, sobretudo quando, no § 1º, em seguida, determina que o acórdão condenará o vencido no recurso ao pagamento de honorários advocatícios, independentemente daqueles fixados em decisões anteriores, arbitrados em «graus de irrazoabilidade e intenção procrastinatória do recurso.» Se a lei aplica penas por «graus» de «irrazoabilidade», há de decliná-los, regulá-los (os graus), vez que no caso, nem o recorrente e nem o magistrado terão como concebê-los e como estabelecê-los casuisticamente, e, um código fixador de verba honorária em bases filosóficas, cabalísticas e transcedentais, a estabelecer mesmo, conforme «intenção do recurso», e não, do recorrente, a sugerir «pesquisas psicológicas de um ato recursal» afigura-se inusitado. Nesse ponto acredita-se que o Direito está sendo encarado para momentos de decisão como ramo da Matemática; e não somente isto, mas voltado para soluções axiomáticas, absolutas, a exigirem dos advogados condições para trabalharem com Ciências Exatas, dominando a «redução ao absurdo», sem margem para raciocinar diversamente com relação aos julgadores, ou seja, capazes de, semanalmente, acertar na Mega Sena! Conforme lembra Carlo Furno, «A legitimidade dimana da incerteza». (Negócio de Fijación y Confesión Extrajudicial, Ed. Espanhola, Madrid, 1957, pág. 69). O Prof. Fernando Luso Soares, em sua preciosa obra A Responsabilidade Processual Civil,Coimbra, Almedina, 1987, pág. 65 assevera: «Não quero, evidentemente dizer que isto de instaurarmos ações seja coisa «perigosa» nos mesmos parâmetros em que são o funcionamento da fábrica ou o movimento do trânsito. Mas se, na verdade, o processo tem como pressupostoum conflito de interesse (nº 1 do artigo 3º do Código de Processo Civil), óbvio se nos mostra que há nele, e sempre, o perigo de o adversário ganhar – ou seja, o perigo de se perder. E é assim adequado ao âmbito das atividades do foro aquele critério de justiça distributiva que se anuncia com o brocardo romano ubi commoda ibi incommoda. Commodum – segundo o DIGESTO – é utilidade, proveito, benefício. E, quem este pretenda, terá de correr os riscos inerentes a todas as incertitudes, boas e más, da luta judicial. A responsabilidade objetiva pelo risco.» Nas páginas fls. 25 e segs., «ibidem», dissera o mesmo mestre Fernando Luso Soares: «Decerto o processo constitui um instrumento de cultura (…) «Qualquer pessoa – legalmente ‘pobre’ ou legalmente ‘rica’ – pode ter dúvidas sobre qual o preceito aplicável ao seu caso. Por isso procura a declaração certa do órgão jurisdicente.» Ora, aprendemos que o Direito é uma Ciência Humana, social, praticada através do emprego da Dialética, sendo a sentença, por sua vez integrada por um discurso judicial clássico: tese, antítese e síntese, contra cuja natureza a lei não pode atentar. Logo, não parece inteligente franquear o debate sob coação. De sorte que, à luz do projeto sob exame, o Direito passa a ser arte da surpresa, da traição, sendo o debate uma enganação onde o vencido, se interpretado como «irrazoável» ou «mal intencionado», paga honorários advocatícios arbitrados sem contraditório à contraparte. Jogo de azar, enfim. Com disposição normativa assim cria-se no Brasil o processo invariavelmente de parte única, com todos fugindo dele. O § 4º discrimina aprioristicamente, dispensando o Ministério Público, no caso visto talvez como figura carismática, da responsabilidade por eventual irrazoabilidade ou intenção malévola. Veja-se que no § 6º do art. 2º reitera-se o § 1º, e prevê condenação em honorários em recursos inexistentes, como agravos de instrumento «não retidos» (não existe agravo retido no Tribunal). Regula através do projeto do Código de Processo Civil, honorários advocatícios até mesmo em «agravos regimentais.» Vem, em seguida, o projeto do art. 3º: «Art. 3.º O art. 20, § 3.º, alínea ‘a’, da Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973, passa a vigorar com a seguinte redação: «Art. 20 (…) § 3º (…) «a) o grau de zelo do profissional, a concisão e clareza de suas petições e o critério na juntada aos autos de documentos combrobatórios do direito alegado». Os honorários serão, então, fixados conforme o estilo do advogado, se agradável ou não,segundo concisão e clareza, decretadas pelo julgador, não mediante perícia por professores ou outra prova. Evidente que, para ter o trabalho forense avaliado para efeitos de condenação conforme sua expressão, se conciso ou não, se claro ou não, necessário seria instaurar algum contraditório, inclusive com prova demonstrativa do que o autor das petições quis declarar, posto que a parte, a demanda, nada devem ter com esses aspectos. Doutro lado, ter verba honorária apreciada através do «critério na juntada de documentos comprobatórios do direito alegado» é reduzir o processo à «fração mais ordinária», conforme Millor em seu Poema Matemático. Como será aferido esse «critério»? Qual a forma prevista de se comprovar cada direito? Nesse ponto a lei forçará busca de «gurus» nos países do extremo oriente, a fim de, através de meios paranormais, extrair e fornecer informações sobre as reações dos julgadores ao longo das demandas frente aos petitórios e aos critérios de juntada de documentos, sobretudo os efetivamente «comprobatórios do direito alegado», nessa antinomia mesmo. A respeito do tema o Prof. Jaime M. Mans Puigarnau, «in» Lógica para Juristas, Barcelona, Bosch, 1978, pág. 167 lembra: «Pues bien; el estudio de la criteriología requiere también determinadas contraposiciones y distinciones de conceptos, y en especial, de conocimiento e ignorancia, de verdad y error, de certeza y duda, cuyas contraposiciones facilitan la distinción de la verdad y la certeza, de la ignorancia y el error, del error y la falsedad, lo cual permite precisar que el conocimiento verdadero puede ser dudoso, que el conocimiento erróneo puede ser psicológicamente cierto, que la ignorancia no presupone el error, pero sí viceversa, etc.» Em seguida, o artigo 4º do malfadado projeto: «Art. 4.º. Na execução de título judicial, é facultado ao juiz, a pedido do credor de quantia certa, intimar o devedor para que compareça em juízo e explique, por termo nos autos ou em petição de seu advogado, se possui bens e onde tais se encontram, para fins de penhora. «Parágrafo único. A ausência injustificada de comparecimento implicará crime de desobediência, podendo o juiz determinar o bloqueio das contas do devedor em todos os estabelecimentos de crédito, ocorrendo o mesmo se o devedor faltar à verdade perante o juiz, ocultando a existência de bens penhoráveis». Em primeiro plano tem-se que intima-se «ao devedor», de algum ato. Redação aliás surpreendente, para integrar o Código de Processo de um país civilizado. Tarefa exagerada que se exige da parte, a título de prestação de serviço gratuito à Justiça em favor do adversário. Demais disto, norma assim cai em inconstitucionalidade berrante, já superada quatro séculos antes de Cristo, com a queda da Lei das XII Tábuas, de vez em sempre reeditada no Brasil! «Crime de desobediência?» E se a parte condenada for funcionário público? Sabe-se que esse crime só se pratica pelo particular. Ou isso revoga «tacitamente» o Código Penal também? O art. 5º do projeto determina: «Art. 5º. É permitida a reformatio in pejus nos recursos cíveis e criminais». Ao que se vê, o projeto autorizou o emprego de um aforisma jurídico estampado em idioma morto, em descompasso com a letra do artigo 156 do CPC, que exige no processo o uso do vernáculo. Demais disto, a extravagante colocação dessa excrescência no texto legal levará à necessidade de se traduzir a expressão latina, de interpretá-la e chegar à conclusão de que ela não mais reflete o pensamento antigo, e nem, pensamento algum. Como se vê da obra Ato Jurídico, de Vicente Ráo, S. Paulo, Saraiva, 1979, 2ª ed., págs. 166 e seg., «44. Rafael Bielsa, em sua interessante monografia Los Conceptos Jurídicos y su Terminologia (2ª ed.) diz que os aforismos não nascem por geração espontânea, são, antes, como diria Ihering, precipitados da razão abonados pela experiência e, mantidos pela tradição, por serem concisos e elegantes, gravam-se facilmente nos espíritos propensos à síntese e à clareza dos conceitos (pág. 187). Contudo, o mesmo autor reconhece que ‘el primeiro que debe tener el aforismo es fundamento racional sólido y debe referir-se a um principio general o a uma regla particular. Su alcance lo dá la norma jurídica al qual se refiere. Naturalmente que nadie se limitará a citar um aforismo, ni intentará hacerlo prevalecer frente al derecho positivo, no solamente por no ser derecho el aforismo, sino porque em la evolución del derecho se han modificado algunos princípios antiguos, considerados poco menos que immutables, y tambien porque el aforismo no ha tenido funcción normativa sino quando se lo ha concretado en norma, ya positiva formal, ya consuetudinária com autoridad de ley’ (pág. 185).» O Dr. Vicente Ráo, cit., explicita ainda, «ibidem»: «De Ruggiero nos adverte que ‘na antiga escolástica e na prática do foro surgiram, aos poucos, inúmeros brocardos e aforismos jurídicos repetidos até hoje pelos práticos e considerados como expressões de regras fixas e princípios absolutos, – brocardos e aforismos que soam como provérbios de sabedoria jurídica, mas, na realidade, constituem perigosos instrumentos nas mãos dos juízes; e tendo, embora, a aparência de princípios gerais, deles um só não há que, como máxima geral, não seja falso». Em conclusão, lembra-se que esse princípio travestido de pretensa regra positiva só tem como subsistir se se revogar o princípio dispositivo a informar o processo civil brasileiro. Assim, sem revogação dos arts. 2º, 128 e 460, o princípio importado não sobrevive. Em seguida vem o artigo 6º: «Art. 6º. Nas ações de indenização por dano moral, o autor mencionará na petição inicial o valor pleiteado a esse título». Como a sistemática do projeto é exasperar a verba honorária, se faltasse essa disposição ele não cumpriria seu propósito de regular um processo de maneira assim, absolutamente desastrada, em que avulta como causa principal a punição de uma das partes. E, finalmente, o art. 7º: Art. 7º. O recorrente vencido nas decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal só terá direito de interpor embargos de declaração uma única vez, sendo mera liberalidade do presidente de tais órgãos admitir, por despacho irrecorrível, o julgamento de embargos em maior número». Esse artigo parece em conflito com a regra jurídica fundamental (CF, art. 5º LV), e com os mais sagrados princípios lógicos, além de constranger sobremaneira as partes. A nossa opinião sobre isso, é a de que, admitir limitação de número de recursos em processos em andamento é o mesmo que raciocinar no sentido de que seja possível estabelecer quantidade invariável de combustível para viagem a lugar incerto e não sabido, como nos casos da polícia, etc. Da justificação apresentada pelo autor «Data venia», nada mais assustador, a se levar em consideração o desastre que eventual aprovação desse projeto possa ocasionar ao jurisdicionado e aos advogados. Atinge proporções tais de horror, que melhor exame conduz ao entendimento no sentido de que encontraram a forma mais violenta de cercear o advogado, com semelhante brutalidade. Buscando treinar já a concisão imposta, talvez a reclamar uso de «chapas», para feitura de arrazoados, através de meras respostas «sim ou não», não vamos aprofundar no exame da «justificação», bastando evocar seu conteúdo inadequado à empresa, por falta de consistência, de cientificidade, e de força capaz de convencer. Chega a parecer insólita, em meio a exposições jurídicas de natureza científica, a inópia da expressão consagrada na «justificação» do projeto: «Outra medida a ser implementada está na permissão da reformatio in pejus nos recursos cíveis e criminais, a fim de se evitar a interposição de recursos sem qualquer interesse, apenas ‘para ver no que dá’. Finalmente, observa-se grave ignorância a ressair da expressão do projeto quando percebe-se que – fazendo comparação com a «lei seca» -, à falta de bafômetro para medir «grau de procrastinação», todo mundo é punido, exalçando-se ademais, que o pecado não seria cometido somente pelas partes via seus advogados, que, aliás, não são aprioristicamente assim, desprezíveis. Evocando o grande mestre português Soveral Martins, a conclusão é a de que buscam alcançar a celeridade , com prática da «injustiça acelerada». Conclusão Em conclusão, rogamos aos juristas, aos acadêmicos, às Seções da Ordem dos Advogados do Brasil, especial atenção a esse projeto de lei, que parece não ter como prosperar, porque esculhamba o Direito e a Advocacia. * Eulâmpio Rodrigues Filho, Professor e Doutor Titulado, Membro de Instituto de Direito Processual – B. Horizonte, Do Institut de Documentation e d’ Etudes Européennes, Da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, Advogado Militante |