Censo sem senso!
Maria Berenice Dias*
Chega o Censo 2000 com grande alarde, dizendo que vem para retratar a realidade do Brasil. Quer essa grande enquete não só captar a imagem do povo, mas desenhar seu perfil. Para isso arvora-se o direito de vasculhar as entranhas de toda a gente. Identifica o sexo, a situação familiar, o estado civil, a condição profissional, o grau de escolaridade, o status econômico-financeiro, enfim, invade a auréola de privacidade de todos. Tal proceder justifica-se pela busca da construção do amanhã, slogan que tem servido para despertar a consciência, afim de colaborem com esse levantamento.
Embora vendendo a falsa idéia de que somente visualizar a realidade é suficiente para solucionar os males que a todos afligem, é indispensável reconhecer que essa iniciativa é, ao menos, um sinalizador seguro dos problemas deste sofrido povo brasileiro. Como não está sendo ouvida a voz emitida pelo voto – que não se tem revelado suficientemente sonora para as mazelas serem vistas e as feridas, tratadas – com o recenseamento, renascem novas esperanças.
De qualquer sorte, mesmo que não baste a contagem da população para o surgimento de soluções, é essencial que se identifique o cidadão dentro de sua realidade.
Mais do que um dever, a participação no censo é um direito, direito à própria identidade, direito cercado das garantias constitucionais. Por isso, é injustificável a ausência de questionamento sobre a orientação sexual. Cada vez mais, deve-se respeitar as características individuais, pois ninguém pode ficar excluído do contexto social. Assim, evidencia-se como verdadeira afronta à própria ordem constitucional não permitir que o “retrato do Brasil” retrate uma realidade cada vez mais transparente.
No momento em que a jurisprudência acaba de inserir as relações homoafetivas no Direito de Família, quando já existe norma legal reconhecendo a união estável homossexual para a atribuição de direitos de ordem previdenciária, é discriminatório e preconceituoso o silêncio da pesquisa. Revela a dificuldade em aceitar a diversidade como elemento fundamental de um estado democrático de direito.
É precioso visualizar a identidade afetiva para que se possa retratar o contexto da família, alvo da especial proteção do Estado, que tem como escopo principal assegurar a democracia. É pressuposto intrínseco ao regime democrático a realização do bem comum: o bem de todos naquilo que todos têm de comum, que é a dignidade da pessoa humana, na qual está inserida a livre orientação sexual.
A garantia da cidadania passa pela garantia da expressão da sexualidade, e a liberdade de orientação sexual é uma afirmação dos direitos humanos.
Em uma sociedade que se quer justa, livre, democrática, é mister reconhecer como um não-senso a omissão do censo.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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