Como se sabe, lá pelo final de maio de 2008, no Rio de Janeiro e em outras capitais de Estados, magistrados – atendendo a petições de pessoas físicas e
jurídicas – proibiram uma marcha a favor da liberação da maconha cuja realização tinha sido amplamente divulgada, de modo a arrebanhar o maior número
possível de participantes.
Imediatamente, ocorreram vários protestos em nome da liberdade de expressão e da democracia. Até mesmo a OAB fez uma reunião em que um de seus membros
dizia temer um retrocesso aos tempos da censura da ditadura, bem como o fim de um regime democrático arduamente conquistado. Advogados têm o cacoete
profissional de exagerarem as causas que atacam ou defendem…
Em meio a essas demonstrações de democratismo explícito, um dos poucos sóbrios entre os ébrios a se pronunciar foi o Presidente do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, desembargador Murtha Ribeiro, que chamou a atenção para o óbvio ululante: numa sentença, disse ele que o uso da maconha é
proibido por lei e que fazer apologia do que é proibido por lei é crime. E ponto final!
Três anos depois, uma ação chegou ao STF e este decidiu que reivindicar a liberação da maconha não é crime, mas sim manifestação do direito de
expressão. Será que pedir as liberações da pedofilia, da necrofilia, da zoofilia, etc. também devem ser considerados direito de expressão?
Generalizando: Pedir a liberação de qualquer produto e/ou conduta proibidos por lei deve ser considerada manifestação de liberdade de expressão? Ou
apologias do crime?
Pedofilia e necrofilia sei que são crimes: abuso de menor e desrespeito a cadáver, respectivamente. E fazer apologia da pedofilia ou da necrofilia é
crime. Mas será que zoofilia é crime? Fazer sexo com animais deve ser considerado crime de desrespeito ou de crueldade em relação aos mesmos, algo
semelhante a jogar gasolina num gato e atear fogo ou se divertir matando pombos com espingardas de ar comprimido ou bodoques? E pedir a liberação de
qualquer ilicitude é o mesmo que fazer apologia do ilícito?!
De qualquer forma, o STF entendeu que quem pede a liberação da maconha está apenas reivindicando o direito de fumar maconha à vontade como quem fuma
cigarros, cachimbos ou charutos. Mas estes últimos devem ser fumados em ambiente aberto – pois já temos uma lei antitabagismo proibindo fumar cigarros
e assemelhados em lugares fechados, para evitar que fumantes involuntários recebem a fumaça tóxica – mas a maconha, ao contrário, é de bom alvitre ser
fumada na moita dentro de casa, para evitar uma indesejável intervenção da polícia.
Entendendo do modo como entendeu, o STF liberou a marcha da maconha em 2011. Mas insisto em fazer pergunta: reivindicar a permissão de fumar maconha em
casa ou em ambientes abertos é manifestar o direito de expressão ou fazer apologia do crime? Ora, pensamos que isto depende do modo como os
manifestantes se expressam.
Escrever um artigo, fazer uma palestra ou falar num programa de rádio e/ou televisão em que o articulista, palestrante ou entrevistado defende a
liberação da maconha e apresenta argumentos jurídicos, econômicos, sociais ou psicológicos, etc., certamente não é fazer apologia do crime, embora não
deixe de ser propaganda – ainda que inconsciente de si mesma – de uma idéia: a de que a liberação da maconha trará mais benefícios do que malefícios
para a sociedade, ou ao menos que não causará maiores malefícios do que a proibição causa.
Todavia, numa marcha não há lugar para a expressão de argumentos, mas sim para a vociferação de slogans e palavras de ordem. Nela, a persuasão toma o lugar do convencimento, ou seja: não se trata de oferecer razões embasadoras visando a conquistar a adesão de um
público-alvo, mas sim de oferecer motivações com vistas ao mesmo fim. Uma marcha é um panfleto materializado numa caminhada fazendo apelo mais forte
aos corações comovidos do que aos cérebros potenciais aderentes a uma ideia.
E é por isso que, querendo ou não, uma marcha a favor ou contra isso ou aquilo é sempre apologia ou execração disso ou daquilo. De onde se segue que a
reivindicação da liberação da maconha numa passeata não pode deixar de ser uma propaganda ideológica de fumar maconha. Mas como tal hábito tornar-se-ia
impossível, caso não houvesse quem produzisse e comercializasse a erva maldita, a liberação envolve indiretamente a manutenção da produção e
comercialização da mesma. Sem produção não há comercialização e sem esta não há consumo.
Todavia, se não houvesse consumidores em larga escala, não haveria produção e comercialização da mesma grandeza. A demanda é a geradora da oferta e a
oferta estimula aumento da demanda. Mercadoria que ninguém quer comprar encalha e acaba com ninguém querendo mais vendê-la.
Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia, apresentou um argumento bem elaborado a favor da liberação não só da maconha como de toda e qualquer droga,
como a cocaína, a heroína, o LSD, etc. Tal coisa provocou um verdadeiro horror em muita gente por considerar o autor friamente indiferente ao
sofrimento dos viciados, de suas famílias e amigos.
Ora, tanto nos Estados Unidos como no Canadá existem agências governamentais que já oferecem tratamento gratuito aos viciados desejosos de se livrarem
do vício, tendo o cuidado de não obrigar ninguém a se submeter a um tratamento, preservando assim a liberdade de escolha dos indivíduos.
O problema, para Friedman, não eram os viciados, mas sim a criminalidade envolvida com o tráfico de drogas, coisa que só existe porque a produção e
comercialização das drogas são ilegais. Considerando a grande soma de dinheiro gasto com a repressão policial e a pouca eficácia da mesma, Friedman
propôs a legalização das drogas.
O espírito de seu argumento é bastante simples, é do tipo dos males, o menor. Se temos dois grandes males sociais, podemos eliminar um e ficar
com o outro. E por que não fazer isso legalizando a produção e comercialização de todas as drogas? Os potenciais consumidores continuariam livres para
consumi-las ou não.
Façamos isso e eliminaremos o tráfico. E os traficantes que quiserem continuar no ramo, o farão legalizadamente pagando impostos e tendo de fornecer
carteiras de trabalho aos seus funcionários, pagando obrigações trabalhistas ao governo, etc.
Não sei por que os legisladores americanos não transformaram a proposta de Friedman em lei federal, mas posso apostar que enquanto os adeptos das
drogas exultaram de satisfação com a ideia, ao menos um grupo da sociedade não gostou nem um pouco dela. Tanto que se algum congressista viesse a
propor um projeto favorável à liberação, tal grupo mobilizaria imediatamente um poderoso lobby, para impedir que fosse promulgada a lei.
Qual grupo? Ora, o dos grandes traficantes que não estão nas favelas – ou slums, no caso dos EEUU – mas sim morando em mansões em Malibu
(Califórnia) ou em condomínios fechados na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro, RJ). Eles teriam certamente um grande prejuízo com a legalização das
drogas: além de seu preço despencar, ainda seriam atormentados por impostos e teriam que pagar obrigações trabalhistas. É ruim, hein?! Será que há quem
goste de tais coisas?
Se a economia informal das drogas é uma grande perda de arrecadação para o Estado, é uma mina de ouro para os que negociam na mesma. O aumento do
número de óbitos podem entristecer parentes e amigos dos finados, mas fazem a alegria dos agentes funerários e dos vendedores de flores e velas nas
portas dos cemitérios – contanto que os finados não sejam seus parentes e/ou amigos.
Lembremos que, em O Bem-Amado de Dias Gomes, o grande problema de Sucupira não era o aumento de óbitos. Ao contrário, naquele raio de lugarejo,
não morria ninguém produzindo a insatisfação do agente funerário e do coveiro, bem como a decepção do insigne prefeito Odorico Paraguaçu, que não
conseguia inaugurar o cemitério com banda de música e retumbantes discursos para os sucupirenses.
De um ponto de vista puramente econômico, o argumento de Friedman parece irrefutável. Contudo, devemos convir que a atividade econômica não é tudo:
coexiste com outras na sociedade e mantém com elas complexas relações.
Cabe, portanto, indagar: com a liberação das drogas não aumentaria bastante o número de viciados criando assim um problema social ainda maior do que
aquele que já temos? Se eu fosse um seguidor de Freud e admirador da psicanálise, responderia na bucha dizendo que não. Os supostamente deliciosos
frutos proibidos são muito mais desejados do que os permitidos e já conhecidos.
Eis o motivo pelo qual Eva foi incapaz de resistir à sedução da serpente no Paraíso e Adão igualmente incapaz de resistir ao sedutor convite de Eva.
Porém, como não aprecio as idéias da psicanálise, limito-me a dizer que não sei, simplesmente porque ainda não ocorreu o liberou geral.
Mas supondo que as drogas fossem vendidas a preços bastante acessíveis a todos os consumidores, é bastante provável que o consumo não aumentasse nem
diminuísse assustadoramente, assim como a Dry Law (Lei Seca) nos EEUU não diminuiu drasticamente o número dos consumidores de álcool, porém
aumentou assustadoramente a criminalidade, ao passo que a revogação da lei não a reduziu, porque os criminosos gerados por ela mudaram simplesmente de
“ramo de negócios”, e o número dos apreciadores de álcool nem por isso aumentou consideravelmente.
Poderíamos, no entanto, examinar outra proposta para a resolução do problema das drogas, bastante diferente da de Friedman, pois não ataca a questão do
ponto de vista da oferta (produção e comercialização), porém do ponto de vista do consumo das drogas.
Suponhamos que o governo não se empenhasse na repressão às drogas e deixasse o tráfico correr mais solto do que corre hoje, mas produzisse uma lei
draconiana penalizando os consumidores. Na primeira vez que fossem detidos pela polícia, receberiam uma séria advertência de um magistrado; na segunda
vez seriam condenados a prestar serviços comunitários; nas na terceira receberiam uma pena de uns 20 anos de prisão em regime fechado, sem diminuição
de pena por bom comportamento. Dura lex sed lex!
[Mas há um problema envolvido e não resolvido até o momento: devemos considerar os viciados como os grandes estimuladores da produção e comercialização
das drogas ou devemos considerá-los como vítimas, dependentes químicos que são das drogas que consomem por compulsão, não por livre escolha?!].
De um ponto de vista econômico, essa proposta parece mais eficaz do que a de Friedman. Sem consumidores não há consumo e sem este a produção e
comercialização das drogas seriam péssimos negócios levando os traficantes mudarem de “ramo”.
Todavia, essa nova proposta repousa sob um pressuposto questionável: o de que 20 anos atrás das grades seria um fator inibitivo tão forte que afastaria
um grande número de indivíduos das drogas. Mas será que isso funcionaria? Ou se mostraria tão ineficaz como têm sido os programas preventivos alertando
para os malefícios produzidos pelas drogas?
Lembro-me bem que, na década de 50, as drogas eram consumidas tão-somente por determinados grupos isolados de marginais, coisa que não constituía grave
problema social. Lembro-me bem de uma matéria da revista O Cruzeiro sobre o consumo da maconha por grupos de meliantes em que a coisa era
encarada como um hábito exótico e incompreensível, pois após produzir grande euforia – como o hábito de cheirar o éter despejando o líquido de
lança-perfumes em lenços no carnaval – gerava grande depressão, sede e fome nos consumidores, efeitos estes que nada tinham de desejáveis. Mas se o uso
de lança-perfumes passou da legalidade para a ilegalidade, o da maconha não fez a trajetória inversa.
É escusado ressaltar que a referida matéria enfatizava os efeitos negativos e minimizava o prazer experimentado. Se não houvesse nenhum ou fosse ele
tão pequeno, ninguém estaria motivado a experimentá-lo. O homem, por natureza, procura o prazer e foge da dor, como já sabia Aristóteles muitos séculos
antes de Jeremy Bentham, o criador da “aritmética das virtudes” e o do cálculo felicífico (felicif calculus).
Todavia, lá pelos fins da década de 60 e inícios da de 70, com a emergência da “cultura pop”, o consumo se alastrou atingindo a classe artística,
depois a classe média e, finalmente, se estendeu a todas as estratificações sociais, tal como se mostra hoje, só aumentando muito o número de
consumidores.
Se na década de 60, a produção e comercialização das drogas era coisa artesanal produzida em pequena escala, só se transformou numa poderosa indústria
e comércio internacionais, por causa do assustador aumento da demanda. E desde que é gerada uma grande demanda na sociedade, aparecem logo muitos
interessados em satisfazê-la.
A esta altura, desponta uma pergunta que não quer se calar: Que motivos levaram a classe artística e demais grupos atuantes na mídia a adotar uma
prática antes restrita a grupos marginais? Se respondêssemos a esta indagação, ficaríamos sabendo que motivos levaram a oferta e a demanda das drogas
se transformarem num gravíssimo problema social.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica,
Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica.
Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens
Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso
Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS,
Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O
Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no
Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46
artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do
qual é membro do conselho editorial.