Sociedade

A divulgação científica e a censura

Diego Córdoba

Gisele Leite

A relação tumultuada entre a divulgação científica e a censura é quase tão antiga quanto o conhecimento humano. Galileu Galilei foi um dos cientistas mais importantes da história da ciência. Viveu entre o fim do século XVI e início do século XVII sendo responsável pela invenção de diversos instrumentos de precisão, criou ainda os princípios da inércia, tendo influenciado o trabalho de Isaac Newton e ainda produziu telescópios dos mais sensíveis.

Sua mais conhecida contenda foi com a Igreja Católica pois o estudioso defendia que o planeta Terra não era o centro do universo, contrariando o que era alardeado pela Santa Sé. Afirmou o estudioso que nosso planeta não apenas girava em torno de si mesmo, como igualmente orbitava ao redor do sol. E, seu modelo heliocêntrico contrariava diretamente o constante nas Sagradas Escrituras, o que o levou ao julgamento pela Santa Inquisição.

Durante o julgamento, Galileu renunciou a defesa do modelo heliocêntrico, e assim safou-se da execução. Mas, ainda assim, fora condenado à prisão domiciliar pelo resto de sua vida. Conta-se que o estudioso era amigo pessoal do Cardeal Barberini que mais tarde viria a ser o Papa Urbano VIII, e que levou a cabo o julgamento de Galileu.

Em verdade, o modelo heliocêntrico[1] não era invenção de Galileu e, surgira na Grécia, conforme grandes filósofos já defendia, sendo melhor apreciado por Nicolau Copérnico que também mantinha fervorosas relações com a igreja, defendendo por longo tempo seu modelo sem ser perturbado.

Ora, se Galileu era tão admirado e influente entre as autoridades eclesiásticas, sendo até amigo do Papa e defensor de um modelo que não era propriamente de sua autoria, porque então quase fora queimado em praça pública? Há uma série de fatores, mas o principal destes foi a divulgação científica dos estudos de Galileu.

Na Antiguidade os textos de estudos de intelectuais eram, em geral, escritos em latim ou em grego, línguas que eram praticamente desconhecidas de pessoas comuns, os chamados leigos. E, seu maior triunfo, além de expressiva popularidade foi escrever seu livro e seus estudos em italiano. Assim, o livro teve grande repercussão. Assim, o então Papa Urbano VIII reconheceu o enorme perigo que representava o material de Galileu.

Sua obra continha evidências científicas precisas e bem fundamentadas e contrariava frontalmente as escrituras. E, a reação imediata da Igreja Católica foi inserir essa obra no Index[2] que representava uma grande lista de livros censurados pelo Vaticano e, tratou de promover de forma célere o julgamento de Galileu.

Cumpre destacar que em diversas epístolas o estudioso deixou evidenciado que sua real intenção jamais fora denegrir ou atacar a Igreja. Mas, sim permitir que a autoridade eclesiástica pudesse utilizar de suas descobertas para fortalecer e aperfeiçoar as escrituras. Infelizmente, fora mal interpretado e até hoje a Igreja continua com a sólida fama de negar os fenômenos tais como estes são.

Do anúncio das descobertas telescópicas no Sidereus Nuncius em 1610 até à proibição do Diálogo e à condenação de Galileu pela Inquisição romana em 1633, sua atuação em defesa do copernicanismo ultrapassou as fronteiras científicas, e adquiriu forte dimensão cultural, que permitiu caracterizá-lo como intelectual.

O pleito de autonomia da Ciência formulado por Galileu na polêmica sobre a compatibilidade de Copérnico com a Bíblia, e sua crítica incisiva ao princípio de autoridade, seja de Aristóteles nas questões naturais, seja da teologia sobre todos os produtos culturais. Seu estudo foi muito além das estrelas repercutindo no plano do sistema tradicional de transmissão do conhecimento, opondo-se a vigente tese do lugar da matemática na hierarquia das ciências. E, finalmente, afastando o ideal tradicional de sociedade contrareformista italiana.

Não bastasse existir de forma precária a divulgação científica no Brasil, recentemente uma entidade regiamente respeitada até mesmo internacionalmente como a FIOCRUZ sofreu a franca censura quanto à divulgação de pesquisa sobre o uso de entorpecentes no país. O que certamente influencia negativamente as propostas de políticas públicas relacionadas com a temática.

Não bastasse ainda a parca divulgação científica em nosso país, o que nos arremessa fatalmente para problemas de saúde sérios e graves além de medievais, o Ministro do governo brasileiro atual acusou publicamente de comprometimento ideológico os resultados produzidos pela pesquisa.

A pesquisa ouviu mais dezesseis mil pessoas e resultou de quatro anos de trabalho, no período de 2014 até 2017. Envolveu mais de quinhentos profissionais de diversas áreas do conhecimento e ainda pesquisadores da área de epidemiologia e estatística.

Tudo começou quando a Fundação Oswaldo Cruz vencera o edital de convocação aberto pela SENAD, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da Justiça para a realização da pesquisa. Aliás, a Fiocruz gastou sete milhões e devolveu ao governo um milhão para realizar o terceiro maior levantamento nacional sobre uso de drogas no Brasil.

O Jornal O Globo apontou que a pesquisa mostrou que 9,9% dos brasileiros entre 12 a 65 anos experimentaram alguma droga ilícita[3] na vida.

E, o IBGE não possui o cômputo do número exato da população brasileira nessa faixa etária. E, concluiu a pesquisa que não existe uma epidemia de uso de entorpecentes[4] no país.

Em verdade, não existe razão, a não ser a ideológico, em negar a divulgação dos dados da pesquisa, que fora contratada por uma instituição e paga com recurso público. Em nota de esclarecimento, a Fiocruz rebateu a censura do governo e afirmou que todos os critérios solicitados foram devidamente atendidos e que o levantamento que realizou foi mais amplo do que os anteriores, usando o mesmo plano amostral adotado pelo IBGE para a realização da pesquisa nacional por amostra de domicílio, o que credencia um cruzamento de tais resultados com os dados oficiais do país.

Ainda ponderou a Fundação que houve mudanças na demografia do país desde as derradeiras pesquisas e nos critérios adotados para a classificação de dependência, por essa razão, uma comparação dos dados atuais com os anteriores não poderia ser realizada de modo simplista e direto, mas sim, a partir de análises estatísticas específicas.

Honrado o pactuado, respeitando o edital a Fiocruz somente tornará público o relatório após a anuência e autorização do Ministério da Justiça. Assim, mais uma vez, tal qual no caso de Galileu Galilei, a ignorância institucionalizada prevalecerá sobre a realidade fática e sobre estudos científicos.

Resta uma pergunta que não quer calar: até quando?

Por enquanto, cabe expressar o agradecimento e respeito pelos que se envolveram na pesquisa e procuraram mais uma vez prover a eficaz e proveitosa divulgação científica no sentido de dinamizar as políticas públicas direcionada ao estudo em questão.

Afinal, se não conseguiram calar Galileu Galilei por que conseguiram calar a Fiocruz e seus pesquisadores? A história e a ciência comprovam que não conseguiram e nem conseguirão.

Referências:

In Jornal Nacional. Disponível em:  https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/05/29/governo-censura-pesquisa-da-fiocruz-sobre-uso-de-drogas-no-brasil.ghtml Acesso em 30.5.2019.

In: MARCONDA, Pablo Rubén. O Diálogo de Galileu e a Condenação. Disponível em:  https://www.cle.unicamp.br/eprints/index.php/cadernos/article/view/631/509+&cd=9&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br Acesso em 30.05.2019.

ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Atualizada a lista de substâncias controladas. Disponível em:  http://portal.anvisa.gov.br/noticias/-/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/atualizada-lista-de-substancias-controladas/219201 Acesso em 30.5.2019



[1] Em 1616, Galilei fora mesmo investigado pela Inquisição que o obrigou a negar a Teoria Heliocêntrica. Apesar do desmentido, em 1632 escrevera outra obra intitulada “Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo” onde comparou o modelo proposto por Copérnico com os argumentos com que a Igreja defendia o geocentrismo.

[2] Index Librorum Prohibitorum em tradução livre seria Índice dos Livros Proibidos representava uma extensa lista de publicações proibidas pela Igreja Católica. Sua primeira versão fora promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559 e a uma versão revisada desse fora autorizada pelo Concílio de Trento. A derradeira edição do índice foi publicada em 1948 e, somente fora abolido pela Igreja em 1966, pelo Papa Paulo VI. O índice foi atualizado regularmente até a trigésima-segunda edição, em 1948, tendo os livros sido escolhidos pelo Santo Ofício ou pelo Papa. Nessa edição de 1948 continha quatro mil títulos censurados por variadas razões, a saber, heresia, deficiência moral, sexualidade explícita, incorreção política e, etc. Em determinados momentos da história obras de cientistas, filósofos, enciclopedistas ou pensadores como Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Giordano Bruno, Nicolau Maquiavel, Erasmo de Roterdão, Baruch de Espinosa, John Locke, Berkeley, Denis Diderot, Blaise Pascal, Thomas Hobbes, René Descartes, Rousseau, Montesquieu, David Hume ou Immanuel Kant tenham pertencido a esta lista, tendo algumas dessas sido removidas mais tarde.

[3] A Anvisa aprovou a inclusão de vinte e oito itens nas Lista de Substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial. Dentre os itens aprovados há a inclusão de doze substâncias controladas, treze adendos quanto à regulação dessas substâncias e três novos sinônimos dos controlados. A lista completa e atualizada foi publicada na Resolução RDC 143/17 no Diário Oficial da União, em 20.3.2017. Vide:  http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=20/03/2017&jornal=1&pagina=55&totalArquivos=164

[4] Novamente, a Anvisa publicou no DOU em 12.2.2019 uma atualização do Anexo I da Portaria SVS/MS 344/98 que trata de substâncias sujeitas ao controle especial no Brasil. A Resolução RDC 265/2019 incluiu a substância RH-34 na Lista F2 da referida portaria. As novas substâncias psicoativas, conforme definição do Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime (United Nations Office on Drugs and Crime – UNODC), são “substâncias de abuso, seja na forma pura ou como parte de uma mistura, que não são controladas internacionalmente pela Convenção Única de Entorpecentes (1961) e nem pela Convenção de Substâncias Psicotrópicas (1971), mas que podem representar uma ameaça à saúde pública”.

Como citar e referenciar este artigo:
CÓRDOBA, Diego; LEITE, Gisele. A divulgação científica e a censura. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/a-divulgacao-cientifica-e-a-censura/ Acesso em: 22 nov. 2024