Processo Penal

O enunciado nº 08 da Súmula da Seção Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia – Porte de Arma X Perícia: Uma Leitura Crítica

O enunciado nº 08 da Súmula da Seção Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia – Porte de Arma X Perícia: Uma Leitura Crítica[1]

Foi publicado no Diário da Justiça Eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (edição de nº. 1.287, do dia 02 de outubro de 2014, Caderno 1, página 306) o seguinte enunciado:

Enunciado nº. 08 da súmula da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia: “É irrelevante a falta ou nulidade de laudo pericial para a comprovação do potencial lesivo da arma ou munição necessários à configuração dos crimes de perigo abstrato previstos no Estatuto do desarmamento, tendo em vista o fato de a periculosidade ser ínsita à própria tipificação penal, em benefício da proteção da segurança coletiva.”

Data maxima venia, e nada obstante os precedentes referidos na respectiva publicação, discordamos inteiramente dos termos do verbete, que faz tabula rasa do Princípio do Favor Libertatis, pedra de toque da interpretação de qualquer norma penal e processual penal.

Tal princípio deve observado em toda e qualquer interpretação das normas penais. Lembramos, com Giuseppe Bettiol, que em uma “determinada óptica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade.” (…) Não há, efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana.” (…) No conflito entre o jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade.”[2]

Primeiro, não há falar-se em crime de perigo abstrato, pois tal afirmação é a negação do próprio Direito Penal; segundo: dispensar o laudo pericial é desconhecer o disposto no art. 158 do Código de Processo Penal.

É de Luiz Flávio Gomes a afirmação a seguir transcrita:

A definição de crime deve ser dada pela lei. E nossa lei (Código Penal, art. 13) estabeleceu que não há crime sem resultado, que é lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. Entendido esse resultado em sentido material (consoante doutrina do bem jurídico), é sempre necessária da iniuria (da lesão ou potencialidade lesiva). A presunção legal dessa lesão ou do perigo de lesão, nesse diapasão, viola o princípio da legalidade, e, em consequência, a Constituição, que elevou tal princípio à categoria de norma constitucional. A iniuria (lesão ou perigo de lesão), em síntese, sempre tem que ser demonstrada, nunca pode ser presumida. Sem sua concreta e efetiva demonstração não há crime ou contravenção, não há injusto penal. Pode a conduta inócua (do ponto de vista do bem jurídico tutelado pela norma penal) configurar infração administrativa, jamais o injusto penal. Pode a direção sem a habilitação absolutamente normal, inócua (no sentido de que não foi, de modo algum, capaz ou idônea para colocar em perigo qualquer bem jurídico), configurar infração administrativa, jamais injusto penal. No âmbito do Direito Administrativo (chamado pré-tutelar), concebe-se a tutela antecipada do bem jurídico, sem se questionar o nullum crimem sine iuria (até porque as sanções previstas não chegam a atingir os principais direitos fundamentais da pessoa). Já no âmbito penal é absolutamente inconstitucional qualquer tentativa de aplicação de um direito puramente preventivo (punição, pelo modo de vida, por razões moralistas ou ideológicas, pelo modo de pensar etc.). Tudo isso provoca, induvidosamente, um dilema (ao legislador principalmente), qual seja: se se deseja um direito puramente preventivo, não serve o Direito Penal, que funda suas raízes no neoliberalismo (político) de Beccaria e tantos outros; se se opta pelo Direito Penal, não bastam normas meramente preventivas, que prescindem da efetiva lesão a um bem jurídico. O Direito Administrativo contenta-se com a possibilidade dessa lesão; já o Direito Penal só se justifica com, ao menos, a probabilidade dessa mesma ofensa, a ser demonstrada em cada caso concreto.” (A questão da inconstitucionalidade do perigo abstrato ou presumido – Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 8, RT, out-dez 1994, p. 78, com grifo nosso).

São inúmeros os julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça exigindo a perícia para a comprovação da qualificadora no crime de roubo, o que vale também, por certo, em relação aos tipos previstos no Estatuto do Desarmamento:

Neste sentido, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus nº. 96865 para que fosse retirada da sentença de um condenado por roubo a qualificadora de uso de arma de fogo. De acordo com a Defensoria Pública, como a suposta arma utilizada durante o roubo nunca foi encontrada e periciada, seu potencial lesivo não pôde ser comprovado, ainda que as vítimas tenham afirmado em depoimento que uma arma foi utilizada durante o roubo.

Em outra oportunidade, a mesma Segunda Turma ibunal Federal  concedeu ordem no Habeas Corpus nº. 94023 impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de A.S.S., condenado a seis anos de reclusão por roubo com suposto emprego de arma de fogo. O relator do Habeas Corpus, Ministro Eros Grau, determinou que seja excluído da condenação o aumento da pena aplicado com base no inciso I, parágrafo 2º, do artigo 157 do Código Penal. Para o relator do HC, trata-se de requisito indispensável para a majoração da pena. “Entendo, na linha do precedente firmado no HC 95142, relator o ministro Cezar Peluso, que a comprovação da potencialidade da arma de fogo é imprescindível à aplicação da causa de aumento de pena de que trata o inciso I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal”, afirmou Eros Grau em seu voto. O precedente citado (publicado no DJ de 4/12/2008) dispõe que não se aplica a causa de aumento de pena, a título de emprego de arma de fogo, se a arma não foi apreendida nem periciada, sem prova de disparo. Grifamos.

A propósito, vejamos mais outros julgados (grifos nossos):

A necessidade de apreensão da arma de fogo para a implementação da causa de aumento de pena do inciso I, do § 2º, do art. 157, do Código Penal, tem a mesma raiz exegética presente na revogação da Súmula n. 174, deste Sodalício. Sem a apreensão e perícia na arma, nos casos em que não é possível aferir a sua eficácia por outros meios de prova, não há como se apurar a sua lesividade e, portanto, o maior risco para o bem jurídico integridade física. Ordem parcialmente concedida para excluir a causa de aumento referente ao emprego de arma, reduzindo as penas impostas” (STJ – 6ª T. – HC 114.534 – rel. Jane Silva – j. 09.12.2008 – DJU 02.03.2009).

Não se aplica a causa de aumento prevista no art. 157, § 2º, inc. I, do Código Penal, a título de emprego de arma de fogo, se esta não foi apreendida nem periciada, sem prova de disparo”. (STF – 2ª Turma – HC 93.105 – rel. Cezar Peluso – j. 14.04.2009 – Dje 15.05.2009).

Diga-se o mesmo em relação à munição.

Atento, o Ministro Marco Aurélio concedeu uma liminar no Habeas Corpus nº. 97209, aceitando a alegação da defesa de que não houve laudo pericial apontando potencialidade lesiva da munição, por considerar que esta prova pericial é imprescindível.Ao decidir o pedido de liminar, o ministro Marco Aurélio esclareceu que a perícia é “imprescindível, considerados os tipos da lei, inclusive presentes acessórios ou munições de armas de fogo apreendidos”.

Voltando à necessidade de perícia na arma de fogo, por votação unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal aplicou jurisprudência por ela firmada, no sentido de que a funcionalidade de arma de fogo tem que ser provada por laudo de perito oficial, e restabeleceu acórdão do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul que absolveu um acusado por porte ilegal de arma de fogo (Habeas Corpus nº. 1010280).

A mesma Turma, agora no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº. 97477, absolveu uma menor da acusação da prática de crime equiparado ao de porte ilegal de arma de fogo (artigo 14 da Lei nº 10.826/03). A Turma descaracterizou o crime por se tratar de arma de fogo desmuniciada e enferrujada, desprovida, portanto, de potencialidade ofensiva. Assim, entendeu tratar-se de conduta atípica.

Condenação. Delito de roubo. Art. 157, § 2º, I e II, do Código Penal. Pena. Majorante. Emprego de arma de fogo. Instrumento não apreendido nem periciado. Audiência de disparo. Dúvida sobre a lesividade. Ônus da prova que incumbia à acusação. Causa de aumento excluída. HC concedido para esse fim. Precedentes. Inteligência  do art. 157, § 2º, I, do CP, e do art. 167 do CPP. Aplicação do art. 5º, LVII, da CF. Não se aplica a causa de aumento prevista no art. 157, § 2º, inc. I, do Código Penal, a título de emprego de arma de fogo, se esta não foi apreendida nem periciada, sem prova de disparo” (Supremo Tribunal Federal – 2º T. – HC 95.142 – rel. Cezar Peluso – j. 18.11.2008 – DJU 5.12.2008, grifamos).

Indagamos: como comprovar a potencialidade lesiva da arma sem a perícia?

Segundo a lição de Fernando Capez: “Arma totalmente inapta a disparar não é arma, caracterizando-se a hipótese de crime impossível pela ineficácia absoluta do meio. Fato atípico, portanto, nos termos do art. 17 do CP” (Curso de Direito Penal, legislação penal especial, volume 4, pág. 346).

Ora, como comprovar a inaptidão de uma arma de fogo, senão por meio da prova técnica?

Para concluir, atentemos para a lição de Luigi Ferrajoli:

Sólo um derecho penal reconducido únicamente a las funciones de tutela de bienes y derechos fundamentales puede, en efecto, conjugar garantismo, eficiencia y certeza jurídica.” (Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal – Editorial Trotta, Madrid, 1998, p.10).

Oxalá haja um Desembargador que, como permite o Regimento Interno da Corte local (arts. 216 a 226), proponha o cancelamento do enunciado.



[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pelaUniversidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). EspecialistaemProcessopelaUniversidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da AssociaçãoBrasileira de Professores de CiênciasPenais, do InstitutoBrasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao InstitutoBrasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concursopúblicoparaingresso na carreira do MinistérioPúblico do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] Instituições de Direito e Processo Penal, Coimbra: Editora LDA, 1974, p. 295. Tradução para o português de Manuel da Costa Andrade.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. O enunciado nº 08 da Súmula da Seção Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia – Porte de Arma X Perícia: Uma Leitura Crítica. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/o-enunciado-no-08-da-sumula-da-secao-criminal-do-tribunal-de-justica-da-bahia-porte-de-arma-x-pericia-uma-leitura-critica/ Acesso em: 07 jul. 2025