A Constituição da República estabeleceu no seu artigo 5º, inciso X, uma cláusula geral de proteção à intimidade e à vida privada das pessoas, sendo que nos subsequentes incisos XI e XII, o legislador constituinte detalhou algumas formas específicas de tutela à privacidade, criando, ao menos em regra, a inviolabilidade domiciliar e a inviolabilidade das comunicações telefônicas.
Ocorre que tais direitos não são absolutos e comportam relativização diante do confronto com outros direitos fundamentais. Não por acaso, o próprio texto constitucional prevê exceções à regra da inviolabilidade, como nas hipóteses em que houver decisão judicial, nos termos da legislação de regência. Nesse cenário, o afastamento da inviolabilidade domiciliar é regulamentado pelo artigo 240 e seguintes do Código de Processo Penal e a mitigação do sigilo sobre as comunicações telefônicas encontra seu regramento na Lei 9.296/96.
Tratando especificamente deste último direito fundamental[1], é mister pontuar que o artigo 1º, da Lei 9.296/96, abrange as interceptações telefônicas “de qualquer natureza”. Isso porque a realidade cotidiana é extremamente dinâmica e o direito tem de adaptar-se aos novos conceitos acaso não pretenda tornar-se fatalmente obsoleto e anacrônico. Esta afirmação sempre teve validade, mas na atualidade apresenta-se bem mais premente, considerando a agilidade com que transitam as informações e se processam as mudanças em todos os campos da vida humana.
Por isso a definição que se deva entender por comunicação telefônica, não deve deitar raízes em conceitos vetustos e ultrapassados, que indicam sua redução à mera transmissão da fala. Com feito, alinhamo-nos com Luiz Flávio Gomes[2], o qual após ponderar sobre a desatualização das normas vigentes sobre telecomunicações (Lei 4.117, de 27.08.62 e Decreto 64.469, de 06.05.69), conclui que “a telefonia hoje, em suma, conta com um conceito muito mais amplo que o constante da lei de 1962. A locução ‘comunicação telefônica’, em consequência, está enriquecida. Não é simplesmente a conversação dos provectos anos sessenta, senão a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio de telefonia estática ou móvel (celular).”
Um exemplo prático dessa interpretação progressiva e ampla do dispositivo encontra-se na decisão do STJ no HC 51.531 – RO (2014/0232367-7), tendo como Relator o Ministro Néfi Cordeiro, equiparando mensagens de texto e conversas via whatsapp a comunicações telefônicas de qualquer natureza preconizadas pela Lei 9.296/96 e exigentes de ordem judicial para acesso e transcrição, sob pena de ilicitude probatória.
Assim se manifesta o Ministro:
Nas conversas mantidas pelo programa whatsapp, que é forma de comunicação escrita, imediata, entre interlocutores, tem-se efetiva interceptação inautorizada de comunicações. É situação similar às conversas mantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se igualmente exigido a prévia ordem judicial. (…). Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional.
Em reforço a este entendimento, não se pode olvidar que a Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) prevê a inviolabilidade e o sigilo das comunicações privadas armazenadas em dispositivos informáticos, senão vejamos:
Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I- inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
II-inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
III-inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas, armazenadas, salvo por ordem judicial”.
Observe-se que no caso do whatsapp e outros aplicativos similares, inclusive as comunicações “armazenadas” e não somente aquelas em “fluxo” são resguardadas por reserva de jurisdição, o que apenas reforçou o entendimento acima exposto. Essa reserva, portanto, emana tanto da Constituição da República (artigo 5º, incisos X e XII) como da legislação ordinária específica (artigo 7º, I, II e III da Lei 12.965/14).
Registre-se, contudo, que a 6ª Turma do STJ tem um julgado interessante e mais recente com o entendimento de que nas hipóteses em que a própria materialidade do crime encontra-se armazenada no aparelho celular, seria prescindível a autorização judicial para o acesso desses dados:
PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ART. 241-A DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NULIDADE. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA O ACESSO A DADOS. INEXISTÊNCIA. PRESCINDIBILIDADE NA HIPÓTESE. 1. A proteção aos dados privativos constantes de dispositivos eletrônicos, como smartphones e tablets, encontra guarida constitucional, importando a prévia e expressa autorização judicial motivada para sua mitigação. 2. O entendimento prevalecente nesta Corte e no Supremo Tribunal Federal é o de que são ilícitas as provas obtidas de aparelhos celulares sem prévia e devida autorização, seja judicial seja do réu, ressalvados os casos excepcionais. 3. No entanto, deve ser realizado um discrímen nos casos em que a materialidade delitiva está incorporada na própria coisa. É dizer, quando se tratar do próprio corpo de delito, ou seja, quando a própria materialidade do crime se encontrar plasmada em fotografias que são armazenadas naquele aparelho, como na espécie, a autorização judicial não será imprescindível. 4. Recurso desprovido. (RHC 108.262/MS, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 05/09/2019, DJe 09/12/2019)
Com a finalidade de reforçar essa prescindibilidade da autorização judicial para a “busca exploratória” nos aparelhos celulares em determinadas situações, vale lembrar que o bem jurídico que se busca proteger com a reserva de jurisdição é a intimidade e a vida privada, sendo certo que um dos aspectos mais restritos desses valores constitucionais se encontra na residência de cada indivíduo. Não por acaso, o afastamento do direito à inviolabilidade domiciliar também depende de ordem judicial, salvo nas circunstâncias indicadas na própria Constituição da República (art.5º, inciso XI).
Ocorre que entre as exceções constitucionais estão as hipóteses de prisão em flagrante. Destarte, parece-nos desproporcional a exigência de ordem judicial para o acesso de aparelhos celulares quando o seu proprietário se encontra em estado flagrancial. Ora, se até inviolabilidade domiciliar pode sucumbir em tais situações, não se justifica a reserva de jurisdição para a busca em aparelhos informáticos nas mesmas circunstâncias.
Ainda sobre o acesso direto pela polícia às informações armazenadas em aparelhos celulares e outros dispositivos de informática, o Superior Tribunal de Justiça, no bojo da Reclamação 36.734/SP (2018/0285479-8), de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu que quando ocorre o acesso a conversas de whatsapp sem ordem judicial, sendo reconhecida a ilicitude da prova, conforme precedente do próprio tribunal, não fica inviabilizada a posterior expedição de ordem judicial legal para perícia do aparelho e novas investigações.[3]
A nosso sentir, o Superior Tribunal de Justiça tomou a decisão mais correta de acordo com a legislação e a dogmática jurídica nacional e internacional a respeito da questão da derivação das provas ilícitas. Efetivamente, a produção da prova se daria com ou sem o acesso indevido inicial, seria o caminho natural da investigação, configurando o que se chama de “descoberta inevitável” ou “inevitable discovery”. Além disso, a atual perícia é independente do acesso anterior pelos policiais, em nada sendo influenciada por tal fato (ou seja, o acesso ilícito anterior).
É preciso analisar a questão sob o aspecto da linha de causalidade, empregando o conhecido método da eliminação hipotética para perceber claramente que a perícia e a ordem judicial posterior não derivam da inicial devassa ilícita feita pelos policiais. Eliminada esta última, o curso dos acontecimentos seria o mesmo. Na verdade, a perícia ulterior e a ordem judicial derivam da apreensão do aparelho, que foi lícita, e não da leitura das mensagens pelos policiais, onde reside a ilicitude perpetrada.
Fossem ou não lidas as mensagens de forma ilegal a perícia decorreria naturalmente via ordem judicial a partir da apreensão. Significa dizer que não existe relação de causalidade entre a ilicitude e a prova pericial agora em foco. Em suma, a perícia é procedimento legal em si, assim como a ordem judicial que a permite e também inexiste derivação ou relação minimamente relevante com qualquer meio de produção de prova ilícita.
Feitas estas considerações, neste estudo o nosso foco é reforçar a necessidade de uma revisão da nossa jurisprudência, promovendo um verdadeiro distinguishing em relação ao paradigmático julgamento do HC 51.531/RO, na hipótese de acesso pela polícia às comunicações desenvolvidas pelo aplicativo Whatsapp e que se encontram armazenadas em aparelhos apreendidos em situação de prisão em flagrante.
Isto, pois, atualmente, o referido aplicativo conta com um novo recurso denominado “modo temporário”, em que as conversas do usuário são automaticamente apagadas após um período de 24 hrs. Nesse cenário, resta evidente que as comunicações armazenadas no aparelho telefônico e que podem caracterizar importante elemento de prova ficam comprometidas pelo decurso do tempo.
Percebe-se, destarte, a necessidade de se revisitar o tema e analisá-lo à luz deste novo recurso tecnológico, sob pena de a tecnologia ser utilizada como escudo de proteção para criminosos, o que não pode ser admitido pela nossa jurisprudência. Antes dessa inovação, era plenamente defensável a tese de que a busca exploratória no aparelho dependeria de ordem judicial, mesmo nas hipóteses de flagrante delito, afinal, bastava que o dispositivo fosse inserido no “modo avião” para que as mensagens nele armazenadas ficassem protegidas e fossem posteriormente verificadas.
Hoje, todavia, conforme já destacado, a existência do “modo temporário” no aplicativo whatsapp não permite que a polícia aguarde uma decisão judicial que pode ser proferida após o período de 24 hrs e, desse modo, comprometer toda a investigação, resultando na “perda de uma chance probatória” em virtude do desaparecimento das conversas armazenadas.
Assim, defendemos que nas hipóteses flagranciais, onde a própria Constituição da República mitiga a inviolabilidade domiciliar como uma das perspectivas mais restritas de tutela da intimidade, a polícia possa, independentemente de ordem judicial ou do consentimento do proprietário, verificar, exclusivamente, as mensagens constantes no aplicativo whatsapp, observando-se, em todos os casos, as regras vigentes sobre a cadeia de custódia.
Ao que nos parece, o acatamento desse entendimento não viola o ordenamento jurídico, pelo contrário. A tese ora apresentada assegura, com respaldo no postulado da proporcionalidade, a efetividade da persecução penal e o direito fundamental à segurança pública, impedindo que a tecnologia seja utilizada a serviço do crime.
Autores:
Francisco Sannini. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.
Eduardo Luiz Santos Cabette. Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em Graduação, Pós-Graduação e cursos preparatórios.
[1] Para um estudo mais completo, sugerimos: CABETTE, Eduardo. SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3. Ed. Leme, São Paulo: Mizuno, 2023.
[2] GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica. São Paulo: RT, 1997., p. 98/100.
[3] STJ, Reclamação 36.734/SP (2018/0285479-8).