Processo Civil

Separação: culpa ou só desamor?

Separação: culpa ou só desamor?

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

A palavra cônjuge sempre foi distinguida para identificar quem está unido pelos sagrados laços do matrimônio. É interessante, no entanto, atentar em sua origem, já que jugum era o nome dado pelos romanos à canga ou aos arreios que prendiam as bestas às carruagens. O verbo conjugare (de cum jugare), entre outros sentidos, significa a união de duas pessoas sob a mesma canga, donde conjugis quer dizer jungido ao mesmo jugo ou ao mesmo cativeiro.

 

Não se pode deixar de reconhecer que esse é o sentido que muitas vezes possui o casamento quando a união está prestes a findar. Ainda assim, nítida a dificuldade de qualquer um dos cônjuges em romper um vínculo que foi estabelecido para ser eterno. Como a separação abala a própria identidade da pessoa, é doloroso tomar a iniciativa, ainda que seja para pôr fim à infelicidade.

 

O fato é que a sociedade ocidental, ao estabelecer um modelo de família, predispõe ao casamento e aposta em sua manutenção. Os padrões de comportamento são instituídos distintamente para homens e mulheres, já vincados para o estabelecimento de uma sociedade conjugal. Ao homem cabe o espaço público e à mulher, o privado, nos limites da família e do lar. A essa distinção estão associados os papéis ideais: ele provendo a família, e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função. Esses estereótipos são impostos desde muito cedo. As meninas são treinadas para o desempenho da função doméstica e recebem de brinquedo bonecas, casinhas e panelinhas. Aos meninos é reservado um mundo exterior, pois brincam com bolas, carrinhos e aviões. Isso enseja a formação de dois mundos: um, de dominação, externo, produtor; o outro, de submissão, interno e reprodutor, levando à geração de um verdadeiro código de honra.

 

A sociedade outorga ao macho um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão da fêmea. As mulheres acabam recebendo uma educação diferenciada, pois necessitam ser mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e desejos. Por isso o tabu da virgindade, a restrição ao exercício da sexualidade e a sacralização da maternidade.

 

A evolução da Medicina, com a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias, levaram ao surgimento de uma nova postura feminina, que impôs a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao se integrar no mercado de trabalho, saiu para fora do lar, cobrando do homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro idealizado da família, ensejando previsível desequilíbrio, terreno fértil ao surgimento de conflitos. Nesse contexto é que surgem as desavenças e, muitas vezes, a violência, como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com a atuação do outro no desempenho do modelo de comportamento esperado, ocorre o rompimento do vínculo afetivo. Necessidade econômica, culpa, compaixão, ódio ou preocupação com a prole fazem, no entanto, com que permaneçam as pessoas muito tempo ainda enredadas em um relacionamento já falido. Apesar das sensações de perda, tristeza e culpa, que geram conflitos internos e conduzem a carências afetivas, o sentimento de abandono é mais forte, levando à raiva e à depressão.

 

Um sempre culpa o outro – muito raramente culpa a si mesmo – pelo insucesso em preservar a integridade do casamento que um dia os dois juraram manter na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, amando e respeitando um ao outro por todos os dias de suas vidas.

 

Ninguém quer assumir a responsabilidade pelo fracasso, pois o “bandido” da história é quem pediu o divórcio; o “mocinho” é quem deseja continuar com a família, conforme Judith S. Wallerstein e Sandra Blekeslee.[1]

 

Inquestionavelmente mudou o conceito de família, e ilusória a idéia de permanecer eterno o casamento e intacto o compromisso assumido. O divórcio é causa e efeito dessas mudanças. Não há mais a crença na segurança dos relacionamentos, pois se modificaram as relações entre homens e mulheres e entre pais e filhos. A separação, apesar de ser um trauma familiar doloroso, tornou-se o único remédio útil e necessário.

 

Fatores socioculturais e de ordem religiosa levam à necessidade de buscar a identificação de um culpado para o fim de uma relação. De forma nítida, evidencia-se a tentativa de se manter a função institucional do casamento como meio de preservar a família, tida como a célula mater da sociedade. Por isso, adotou a legislação pátria o princípio da culpa como único fundamento para a dissolução coacta do casamento. Não havendo consenso, o cônjuge culpado não pode pedir a separação. Na valoração da culpa, visualiza-se uma concepção contratualista do casamento, em que o descumprimento das obrigações acarreta imposição de sanções. Inflige-se uma punição, um castigo, enfim, a aplicação de uma penalidade a quem deu causa à dissolução da sociedade conjugal.

 

Elencava o art. 317 do Código Civil[2] as causas do então desquite: adultério, tentativa de morte, sevícias, injúria grave ou abandono do lar. A Lei do Divórcio acabou por estabelecer um conceito mais abrangente, aumentando o arbítrio judicial, mas permanece a necessidade de uma causa identificadora da responsabilidade pelo rompimento. Há perda de direitos ao se detectar culpa ou pela simples iniciativa do processo de separação.

 

Estabelece o art. 5º da lei divorcista as únicas hipóteses em que pode ser requerida a separação por somente um dos cônjuges. No caput do indigitado artigo, a previsão é de conduta desonrosa ou violação dos deveres do casamento a tornar insuportável a vida em comum. Na hipótese do § 1º, a simples ruptura da vida em comum por mais de um ano é causa suficiente para a separação. Porém, ainda nesse caso, existem seqüelas a quem toma a iniciativa da ação. Conforme o § 3º desse dispositivo legal, os bens remanescentes, levados para o casamento pelo réu, lhe pertencem. Essa regra merece ser lida atentamente, pois altera o próprio regime de bens do casamento, que se tem por imodificável. Mais: se a ação de separação é de iniciativa da mulher, perde ela o direito de usar o nome do marido (art. 17, § 1º), sanção sem qualquer justificativa, pois o fato da propositura da ação, por si só, não identifica o responsável pela ruptura da vida em comum. Nesse dispositivo (mais do que no § 2º, em que talvez se encontre algum motivo, por revelar um certo traço de crueldade abandonar um doente), não se pode deixar de reconhecer, que pretende o legislador punir o próprio fato da separação, prevendo conseqüências que nada dizem com imputabilidade. Culpado é simplesmente aquele que ousa pedir a separação, ainda que já separado o casal há mais de um ano.

 

O mero decurso do tempo após a separação de fato, que evidencia a irreversibilidade da comunhão de vida, ainda que seja causa suficiente para o pedido de separação, impõe seqüelas ao cônjuge que tiver a iniciativa da ação. As sanções de ordem patrimonial e pessoal dispõem, nitidamente, de caráter intimidatório, como a forçar o cumprimento dos deveres do casamento para que ele não se dissolva.

 

Na conversão da separação em divórcio, mesmo excluindo a sentença qualquer referência à causa da separação, continua apenando aquele que buscara a separação ao impor-lhe a permanência do dever de assistência (art. 26), o que se traduz, por certo, em obrigação alimentar.

 

Não se pode deixar de ver nessas disposições legais ainda um resquício do velho princípio, que constava do art. 320 do Código Civil, de que só a mulher inocente e pobre teria direito a alimentos. Assim, mediante um raciocínio lógico-dedutivo, pode-se concluir que o simples pedido de separação enseja a perda da inocência.

 

Com relação à guarda dos filhos, a própria topografia dos dispositivos da Lei do Divórcio revela a ênfase do legislador em premiar o cônjuge inocente com a companhia dos filhos, como expressamente rezava o art. 326 do Código Civil. A única regra que mereceria existir é a do art. 13, que outorga ao juiz a faculdade de dispor conforme o interesse da prole, sem atentar em posturas dos pais que não digam diretamente com o bem do filho. Cabe lembrar que quem mais sofre no processo de separação são os filhos, pois perdem a estrutura familiar que embasa seu desenvolvimento psicológico, físico e emocional. Consideram-se rejeitados e impotentes, nutrindo um profundo sentimento de solidão, como se os pais estivessem violando as obrigações da paternidade. De outra parte, experimentam grande aflição ao serem pressionados a tomar partido, sentindo como se estivessem traindo um dos pais. Conforme as já citadas autoras, O divórcio é uma experiência pungente, dolorosa e de longa permanência na memória do filho que ainda deve conviver com a sensação de que está sozinho no mundo.[3]

 

De outro lado, a necessidade da identificação da culpa de um dos pais, por meio de um processo que desnuda a intimidade da vida em comum, por certo produz traumas às vezes irreversíveis. Assim, a tentativa legal de mantença do casamento acaba se revelando contrária às próprias pessoas nele envolvidas, a quem se pretende proteger.

 

Motivação de outra ordem também subtrai a justificativa para a apuração de responsabilidade pelo fim do casamento.

 

Inquestionável que a Constituição Federal, ao alargar o conceito de família, emprestando juridicidade à união estável, parece que privilegia o casamento. Em face de tal aparente preferência, não se poderia conferir tratamento mais benéfico ao fim de um concubinato do que ao rompimento de um vínculo matrimonial. Porém, os alimentos decorrentes da relação concubinária não dispõem – ao contrário do que ocorre com o casamento – de caráter punitivo-indenizatório, mas somente conteúdo de natureza assistencial. Os dois diplomas legais que regulam esse novo instituto não condicionam à identificação do responsável pelo fim do relacionamento a concessão de alimentos a quem deles necessitar.

 

Ao invés de se buscar no princípio da isonomia uma justificativa para inserir a culpabilidade como elemento integrativo do direito aos alimentos decorrente da relação concubinária, a tendência que mais condiz com a nova realidade é a de subtrair a necessidade de identificação da culpa pelo fim do casamento, equiparando ambas as situações dentro de uma ótica mais liberalizante e moderna. Mister que não se perquiram os elementos subjetivos que levaram à cessação da união, quer decorrente de casamento, quer da mera convivência, bastando o exaurimento do elo amoroso.

 

A tendência atual é desmistificar o divórcio, que deixou de ser visto com repúdio que estigmatiza principalmente a mulher. Trata-se de uma decisão pessoal, na qual descabe a intervenção do Estado exigindo a identificação de um responsável para puni-lo de forma exemplar.

 

Estamos vivendo em um novo mundo, que não mais comporta uma visão idealizada da família. Concede a sociedade, abertamente, o direito de homens e mulheres de serem felizes, independente dos vínculos afetivos que venham a estabelecer.

 

Ao falar em desamor, o melhor é finalizar parafraseando Camões:

 

Amor é fogo que arde sem se ver;

 

é ferida que dói e não se sente;

 

é um contentamento descontente;

 

é dor que desatina sem doer.

 

 

 

 

[1] WALLERSTEIN, Judith S.; BLEKESLEE, Sandra. Sonhos e Realidade no Divórcio. São Paulo: Saraiva. p. 33.

 

[2] A referência é ao CC de 1916.

 

[3] Idem, p. 41.

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Separação: culpa ou só desamor?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 1997. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/separacao-culpa-ou-so-desamor/ Acesso em: 22 nov. 2024