Processo Civil

Observações sobre o conceito de pretensão

Observações sobre o conceito de pretensão

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

SUMÁRIO

 

1. A Derivação para a pretensão processual. 1.1. O fenômeno da publicização. 2. Posicionamento de Pontes de Miranda. 3. Revisão crítica. 3.1. A confusão entre os dois planos. 3.2. Precisões indispensáveis. 4. Plano do direito material e plano de direito processual. 5. Considerações finais.

 

 

 

1. A derivação para a pretensão processual.

 

Houve um movimento pendular no conceito de ação, privatizado, desde os romanos até Savigny, e abstrativista, desde Plósz e Degenkolb a Alfredo e Ugo Rocco, sem olvidar a feição constitucional que lhe atribuiu Couture.

 

Com Carnelutti, restou visualizado o fenômeno da jurisdição, como fruto de vedação estatal da autotutela e a conseqüente obrigação do Estado em compor os conflitos de interesses, para a mantença da paz social. Também ficou bem delimitada a existência de dois planos distintos: o direito subjetivo e a relação de direito processual.

 

Do estudo do direito de ação, os autores deslocaram o eixo de atenção de seus estudos, centrando grande parte da problemática na pretensão processual, como lembra Fairén Guillen e Hélio Tornaghi.

 

Tal desvio de rota deve-se, grandemente, a Jaime Guasp, que chega a proclamar: “El concepto de pretensión procesal es desgraciadamente un concepto preterido y lo seguirá siendo todavía durante algún tiempo hasta que los planos de la vision científica en que hoy acostumbramos a movermos se ajusten algo más a la realidad de la vida y den a cada una de las nociones fundamentales del derecho del proceso su verdadero contorno y perfil” 1 .

 

Detecta, no pensamento científico em torno do processo, duas posturas: um feixe de teorias de caráter predominantemente sociológico, que busca, antes de tudo, um substrato material no processo , como fenômeno natural, e outro, o grupo dominante, de índole marcadamente jurídica, que investiga a estrutura do direito, em seu aspecto normativo, e que encobre o material social processual. Afirmada a insubsistência dos dois posicionamentos, busca uma dupla e suficiente base. Diz que o legislador, socorrendo-se de sua sensibilidade sociológica, ao vislumbrar as concretas necessidades sociais, transformam-nas em instrumentos jurídicos.

 

“El derecho se acerca a la sociología siempre de la mesma manera; toma de ella los problemas cuya solución postula la comunidad, estabelece un esquema de instituciones artificiales, en las que trata de reflejar o sustituir las estruturas e funciones puramente sociales del fenómeno y, una vez realizada es labor de alquimia, se despreocupa íntegramente de aquella materia social para operar sólo com las nuevas formas creadas. La verdad esque el derecho, par salvar a la sociología, no tiene más remedio que matarla” 2.

 

Ao apreender a realidade sociológica da queixa intersubjetiva, ínsita ao ser humano, o legislador transmuda-a para o plano jurídico, como pretensão jurídica. No momento em que esta recebe tratamento especificado em um setor peculiar do ordenamento jurídico, passa a chamar-se de pretensão processual.

 

Considera Guasp a ação como um fenômeno extraprocessual e define a pretensão como um ato, uma declaração de vontade, na qual se solicita a atuação do órgão jurisdicional frente à pessoa determinada e distinta ao autor da declaração. A pretensão é um ato processual e, ao mesmo tempo, o objeto do processo. O fenômeno processual da pretensão é, fora e antes da relação jurídica, um direito prévio ao processo, deduzindo-se simultaneamente ou não com a demanda.

 

Estabelece, desta forma, a distinção entre ação, pretensão e demanda.

 

“La idea fundamental a este respecto pode resumir-se así: concedido por el Estado el poder de acudir a los Tribunais de Justicia para formular pretensiones (derecho de acción), el particular puede reclamar qualquer bien de la vida frente a outro sujeito distinto de un órgano estatal (pretensión procesal) iniciando para ello el correspondiente proceso (demanda) ya sea al mismo tiempo, ya sea después que esta iniciaciós ³ .

 

1.1 O fenômeno da publicização.

 

Pelo breve perfil traçado, vê-se a pacificação em torno do reconhecimento do direito de agir como direito público subjetivo, decorrente da vedação estatal da autotutela, havendo uma certa tendência constitucionalista de vislumbrar a ação como direito de petição, prevista e outorgada pela Lei Maior. Desta forma o direito à tutela jurídica divorcia-se da existência ou não da violação ou ameaça de turbação do direito subjetivo material.

 

Apesar de estabelecido este divisor, os doutrinadores passaram a outorgar à pretensão o elo de ligação dos dois planos do direito, conceito com estrutura conceitual um pouco difusa. Tal postura pode ensejar, perigosamente, o retorno à privatização do conceito de ação, pois somente restou deslocado da ação para a pretensão o condicionamento do exercício do direito à tutela jurídica, quando da ocorrência de fibrilações no campo do direito material.

 

2. Posicionamento de Pontes de Miranda.

 

A Cientificidade do trabalho desenvolvido por Pontes de Miranda merece destaque em face da elaboração minuciosa e precisa de conceitos que até então restavam um pouco nebulosos. A partir da precisão terninológica, mais facilmente poder-se-ão analisar as posições aqui expostas.

 

Mister se faz que, para melhor apreensão do singular posicionamento do ilustre jurista, sejam fixados alguns conceitos, cujo conteúdo enseja um melhor entendimento de sua postura.

 

Pontes de Miranda parte da definição de direito subjetivo como vantagem decorrente de incidência de uma norma jurídica sobre um suporte fático tido como suficiente. Todo direito subjetivo, produto de uma regra de direito objetivo, é uma limitação à esfera de atividade de outro ou de outros possíveis sujeitos de direito. A regra jurídica dirige-se a pessoas, fixando-lhes posições em relação jurídica. Quem está ao lado ativo é sujeito de direito, ao que corresponde ao dever do sujeito passivo. A correlação direitos e deveres não é coextensiva, eis que, nos direitos absolutos (ex.: direito de propriedade), há pluralidade de sujeitos passivos, enquanto nos direitos relativos, figura pessoa determinada no pólo passivo.

 

Se o direito subjetivo tende à prestação, surgem a pretensão e a ação. Pontes de Miranda entende como pretensão a posição subjetiva de poder exigir de outrem uma prestação positiva ou negativa. Pretensão, pois, é a tensão para algum ato ou omissão dirigida a alguém. O direito tende para diante de si, dirigindo-se ao sujeito passivo, para que cumpra seu dever jurídico. O correlato a pretensão é uma obrigação, um dever premível. Pretensão é a faculdade jurídica de exigir, tendo por fito a satisfação. É meio para o fim, é distinta, é segundo momento do direito subjetivo. É a exigibilidade do direito que gera a pretensão. Ao direito corresponde o dever, à pretensão a obrigação. A prestação é obrigatória desde o nascimento da pretensão, mas, se o titular não exige, não precisa ser satisfeita desde logo. Resta evidenciada, desta maneira, a separação entre constituição e exercício da pretensão. Ao posso do titular do direito, corresponde o ser obrigado do destinatário.

 

Tanto os direitos absolutos como os relativos geram pretensões. Com relação aos primeiros, a pretensão se manifesta na proibição geral da turbação e esbulho.

 

É, erga omnes, proibição contra todos, que corresponde à estrutura dos direitos com sujeitos passivos totais. O proibir é exigir ato negativo. A pretensão real tende a obter a continuidade do estado que não se há de perturbar. Direitos relativos geram pretensões contra pessoas determinadas.

 

Se, mesmo premido, o obrigado não cumpre, surge para o sujeito de direito a ação que visa não à prestação, mas ao efeito jurídico específico previsto na lei e que independe da atuação voluntária do sujeito passivo. Não se pode confundir, exigir e acionar. Da oposição do direito, pela transgressão da norma, nasce a ação, se o obrigado, pelo exercício da pretensão, não a satisfaz. O direito subjetivo e a pretensão não se confundem com a ação, que é um plus, que supõe combatividade.

 

De ordinário, a pretensão contém a ação, que é a exigência mais a atividade para que satisfaça. A ação não é só o ato de exigir. A ação ocorre na vida da pretensão ou do direito, quando esta, exercida, não é satisfeita. Quando se exerce a pretensão e a ação, exerce-se o direito, sendo que, quando se exerce a ação, exerce-se a pretensão, que faz parte do direito.

 

Quanto aos direitos reais, da infração à exigência geral de abstenção, nasce a ação, que é dirigida contra quem infringiu a proibição. A ofensa de terceiro que atinge direito relativo de outro, faz surgir a pretensão e a ação, pois foi invadida a esfera jurídica de outrem.

 

O Estado tem interesse no atendimento do direito objetivo para a manutenção da paz social e, por ter proibido o exercício da autotutela, estabeleceu o monopólio estatal da Justiça, cabendo-lhe a obrigação de decidir os pleitos em que se alegam direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e execuções.

 

Surge, desta forma, o direito público à tutela jurídica, com o conseqüente dever estatal de outorga da prestação jurisdicional. Tal direito já nasce exigível, sendo uma pretensão pré-processual à tutela a ser exercida através da ação processual.

 

O direito de agir, após a monopolização, foi tornada função exclusiva do Estado, não podendo mais o sujeito ativo tutelar seus direitos, pretensões e ações. Surge a pretensão à tutela jurídica, exercitável através do remédio jurídico-processual da “ação”.

 

Quando se propõe uma “ação”, qualquer que seja, exerce-se a pretensão pré-processual à tutela jurídica a que se obrigou o Estado. Tal pretensão é irrenunciável, ainda que se possa renunciar ao direito, à pretensão e à ação.

 

A ação existe antes de ser exercida pela dedução em juízo e, antes, portanto, de qualquer invocação da pretensão à tutela jurídica. Esta diz respeito ao que se estabelece entre o autor e o Estado e aquela é objeto de exame pelo Juiz, como um dos elementos da res iudicium deducta.

 

“O remédio jurídico processual é oriundo da lei processual, o caminho que tem de ser perlustrado por aquele que vai a juízo, dizendo-se com direito subjetivo, pretensão e ação, ou somente ação. Tão diferentes são ação e remédio jurídico-processual, que todos os dias, ao julgarem os feitos, os Tribunais declaram que o indivíduo não tem a “ação”. No entanto, usaram do remédio jurídico-processual. Poderiam dizer mais: que não tinham sequer pretensão, nem, ainda mais, direito subjetivo” 4.

 

A “ação” não é direito, é proteção judicial. Se alguém exerce justiça de mão própria, exerce pretensão à autotutela e, se tem direito, pretensão e ação, exerce o que lhe cabe. Se não tem direito, pretensão ou ação, não se exerceu qualquer deles, exerceu-se a pretensão à tutela jurídica, e a sentença restou desfavorável.

 

“Primeiro, a pretensão à tutela jurídica existe antes de ser exercida, como toda pretensão. Segundo, a pretensão a tutela jurídica por parte do demandado existe, ainda que não se exerça, porque iura novit curia. O Estado,  pelo órgão judicial, tem o dever e a obrigação de “aplicar” o direito, e, pois, de atender ao pedido. A sentença pode ser favorável ou não. Quer o seja, quer o não seja, com ela cumpre o Estado o dever de entregar a prestação jurisdicional, a que corresponde o direito e a pretensão à tutela jurídica, e a obrigação de entregá-la, que se estabeleceu com o exercício da pretensão à tutela jurídica e, pois, com o nascimento da pretensão processual” 5 .

 

Todo direito, toda pretensão e toda ação tem o seu conteúdo, que é a determinação de sua extensão. O ato positivo ou negativo do titular, segundo o seu conteúdo, é o exercício do direito, da pretensão e da ação.

 

Dentro dos limites do conteúdo dos direitos, pretensões e ações é que devem os mesmos ser exercidos. Se excede, não é exercício, é ato ilícito ou ineficaz.

 

O titular de um direito, pretensão ou ação pode exercê-los ou não, dependendo de seus interesses, mas a inércia pode gerar conseqüências (ex.: prescrição, perda do direito de opção).

 

O direito real não é só a soma de proibição de turbação, é também referência a espaço que pode ser exercitado, quase sempre pelo uso do objeto do direito (ex.: alienar, construir, plantar).

 

As ações (direito material) exercem-se em juízo (ação processual) ou fora dele e, nesse último caso, correspondem à ação administrativa (ex.: tribunal administrativo, juízo arbitral) ou ação própria (ex.: em juízo de autotutela).

 

Quando a pretensão só se pode exercer pela “ação”, há pretensão sem exigibilidade extrajudicial, mas há “ação” judicial. Ação de direito material exerce-se principalmente por meio de “ação” (remédio jurídico-processual), isto é, exerce a pretensão à tutela jurídica criada pelo Estado.

 

“Os leigos estranham que o “sem ação” vá a juízo e tenha direito a ter sentenciado o feito, isto é, direito à sentença. No fundo, confundem a “pretensão de direito material” e a ação com a pretensão e o exercício da “pretensão à tutela jurídica” 6.

 

O exercer a pretensão ou ação contida no direito é exercício deste.

 

Em todo o direito, toda a pretensão e toda a ação, está incluído o poder de revelar-se que é actio e corresponde ao conteúdo favorável da sentença,  quando se exerce a pretensão à tutela jurídica. O titular do direito, que o revela, o alega, o postula, exerce o poder, que faz parte do direito. A afirmação da existência do direito é começo do exercício, passando-se o mesmo com o titular da pretensão ou da ação.

 

A afirmação judicial é começo de exercício e se faz com res deducta ao se exercer a pretensão à tutela jurídica. A essencial pretensão de toda relação jurídica é de afirmação de sua própria existência. A ação declaratória é exercício do poder contido no direito e há a provocação do órgão competente para declará-la.

 

O poder de se fazer respeitar exaure o conteúdo de todas as “ações”. As ações são classificadas segundo aquilo que se espera da sentença: declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva. A sentença desfavorável é sempre declaratória negativa da existência do direito, pretensão ou ação afirmada em juízo.

 

3. Revisão crítica.

 

3.1 A confusão entre os dois planos.

 

Voltando ao conceito formulado por Celso, vê-se que a palavra actio sempre foi interpretada como unificadora do direito privado com o processo. Se, no entanto, a entendermos como significado ação de direito material, o conceito é de perfeita precisão, não perdendo sua atualidade, como, aliás, é lembrado por Fábio Luiz Gomes.

 

Windscheid isolou a pretensão e distinguiu a actio do direito material da forma processualizada e, ao nominar de anspruch a possibilidade de perseguir a satisfação de um direito ofendido, acaba por transpor a pretensão processual para o campo do direito material.

 

Wach direciona a ação contra o Estado e contra o obrigado, mas resta por condicionar o exercício do direito a uma sentença de conteúdo determinado, integrante do ordenamento jurídico concreto, expressão que acabou por titular sua teoria. Como lembra Araken de Assis: “Foi relativa a autonomia concedida por Wach à ação, pois termina caindo no equívoco dos civilistas: não se poderia, mais uma vez, explicar as ações infundadas ou as demandas temerárias, quando o autor não é titular de direito material 7 .

 

Igual condicionamento do exercício do direito de ação é detectada em Carnelutti. Ao introduzir a expressão razão processual como sendo a afirmação da existência do direito subjetivo, desvia da pretensão qualquer função entrelaçadora entre os dois planos do direito, mas termina por outorgá-la à  razão que considera elemento da pretensão.

 

“O processo não defende só direitos subjetivos ou pretensões. Se bem que muitas vezes os suponha, o destino do processo é a atuação da lei, a realização do direito subjetivo. Hoje, só secundariamente é que protege os direitos subjetivos. Por isso mesmo, o direito, a pretensão e a ação existem, a despeito da existência, ou não, dos remédios processuais. Quando deles lança mão alguém, crendo-se ou não com direito, não lhos nega o Estado. Se só os que têm a pretensão tivessem direito ao uso dos remédios, haver-se-ia de começar do fim para o princípio: quem tem razão (direito, pretensão), tem ação, quem tem ação, tem remédio jurídico processual. Ora, só se sabe quem tem “razão” depois que se instaurou o processo (remédio), que se verificou ser procedente a ação (isto é, existir), por se terem produzido as provas, e se pronunciou a sentença, contendo o direito objetivo” 8 .

 

3.2  Precisões Indispensáveis.

 

Mister se faz destacar os estudos que, entre nós, vêm sendo desenvolvidos pelos eméritos professores Ovídio Baptista da Silva e seu discípulo Fábio Luiz Gomes, que, embora partindo dos conceitos cientificizados por Pontes, acabam por estabelecer distinção entre exercício da pretensão processual e a ação processual.

 

Para Fábio Gomes, o exercício da pretensão processual é: “O encaminhamento que deflagrará a ação, ou seja, o estágio intermediário entre o direito subjetivo, enquanto estado inerte, e o efetivo exercício do mesmo perante o Estado” 9 .

 

Da mesma forma, o ilustre mestre gaúcho, apesar de mais explícito, não especifica o que chama de simples exercício de pretensão.

 

“No plano do direito processual, todavia, o exercício do direito de tutela jurídica exige que o titular não só o invoque, formulando um pedido ao Juiz, mas, além disso, condiciona a prestação da tutela à efetiva “ação” do interessado. Se a ordem jurídica se contentasse com a simples provocação da atividade  jurisdicional, com o simples exercício da pretensão, enquanto exigência de tutela, deixando o resto ao Juiz, teríamos no caso a prestação da tutela jurisdicional, mediante o simples exercício da pretensão. Mas não é isso que ocorre. Em verdade, o autor (aquele que age), na relação jurídico-processual, não só exige como, juntamente com o Juiz, deve também ele exercer atividade, agindo para obter a prestação da tutela jurisdicional. A este agir para obtê-la dá-se o nome de “ação processual” 10.

 

Vê-se a tentativa de estabelecer uma distinção entre o agir para obter a tutela jurídica e o simples exercício da pretensão, sem, no entanto, ser explicitada a forma como este se desenvolveria.

 

Com o máximo respeito que merecem os ilustres mestres, tal distinção não encontra respaldo para ser sustentada. A única forma de exercer-se o direito à tutela jurídica é através do exercício da pretensão pré-processual à tutela jurídica, deflagradora da “ação” processual. O exercício da pretensão à tutela jurídica faz nascer a pretensão processual, que se materializa através do remédio processual.

 

Qualquer outra atividade, mesmo que tende à deflagração da ação, desenvolve-se no plano extraprocessual, é exercício da pretensão de direito material. Se tal estágio intermediário se jurisdicializa, trata-se, ainda, de exercício da pretensão material, feita através do Estado, e, em nenhuma dessas hipóteses se pode falar em exercício da “ação” processual.

 

De outra parte, a necessidade de agir no sentido de exercer atividade dentro do processo, para que ocorra “ação” e não só simples exercício da pretensão, é distinção que não encontra sequer respaldo legal (art. 267, § 4º, do CPC). Após o decurso do prazo de resposta, a inércia do autor, ou mesmo sua intenção de desistência, sem a concordância do figurante no pólo passivo, obriga a outorga da prestação jurisdicional.

 

4. Plano do direito material e plano do direito processual.

 

A utilização dos mesmos vocábulos, como referenciais para conceitos que não se podem confundir, mais nebulosidade traz para a visualização do tema, o que levou Pontes de Miranda a grafar de forma destacada o vocábulo “ação” para referir-se ao remédio jurídico da ação processual.

 

A partir da sistematização decorrente das precisões conceituais estabelecidas, possível é afirmar-se a total independência entre o direito subjetivo material, que floresce com a incidência da norma jurídica de direito objetivo, e o direito à tutela jurídica outorgada pelo Estado, quando avocou a jurisdição. Desde o estabelecimento da ordem jurídica, é impensável a existência de um Estado em que não haja o controle estatal para o asseguramento dos interesses das partes e a conseqüente preservação pacífica do convívio social. Pela vedação da autotutela, resta ao Estado o dever de aplicação do direito, e a impossibilidade de perseguição pessoal dos direitos, pretensões e ações outorgadas pela lei.

 

Surge, desta forma, o direito público subjetivo à tutela jurídica, que tem como sujeito passivo o Estado, com o correlato dever de outorgar a prestação jurisdicional. No momento em que se estabelece a vedação, surge a exigibilidade à tutela jurídica e a obrigação contraposta de prestar a justiça. A pretensão à tutela jurídica e pré-processual, uma vez que é seu exercício que determina o nascimento da pretensão processual. A pretensão processual, só acionável através do remédio jurídico da “ação”, gera a obrigação do Estado, de aplicar o direito, através da sentença, de forma descomprometida com o seu resultado.

 

“A ação não é direito, insista-se mais uma vez: “É exercício de um direito público subjetivo de tutela jurídica”. Há o direito à proteção jurisdicional do Estado e, concomitantemente com ele, a pretensão como faculdade ou “poder de exigir” que o Estado preste a tutela que se obrigou. Desta forma, concomitantemente com o dever estatal, nasce a obrigatoriedade da prestação jurisdicional, cujo exercício é veiculado através da “ação processual” 11.

 

Lapidar é Pontes de Miranda: “Há a pretensão (pré-processual) à tutela jurídica, a pretensão de direito material (público) e a “ação” (remédio jurídico-processual)” 12 .

 

Não se pode olvidar que os direitos, pretensões e ações de direito material podem ser exercidos tanto judicial como extrajudicialmente, sendo cabível uma exemplificação.

 

1. O conteúdo dos direitos é exercitável pela fruição dos mesmos, quase sempre sem a necessidade de intervenção judicial. Há, no entanto, casos de  indispensabilidade de chancela judicial para o exercício de um direito material, como a alienação de bem de incapaz ou a necessidade do suprimento da outorga marital, em que a parte só busca o exercício do seu direito de disposição.

 

2. Também a pretensão de direito material pode ser exercida de forma direta quando se pressiona pessoalmente o obrigado a prestar o que deve. Havendo, porém, interpelação judicial, às vezes indispensável para a interposição da “ação”, o que se exercita é uma pretensão de direito material, não uma pretensão processual , nem mesmo uma “ação”.

 

“A pretensão exerce-se  ou perante o obrigado, diretamente, ou “através” do Estado, de regra o Juiz (exercício judicial da pretensão). A pretensão perante o Estado é outra coisa; é a pretensão que teria o titular daquela à tutela jurídica. A interpelação, de  regra, é exercício de pretensão com prestação positiva” 13 .

 

“…

 

“Exercer a pretensão é exigir a prestação; propor “ação” é pedir a tutela jurídica” 14.

 

3. Apesar da inexistência de dispositivo explícito, o exercício extrajudicial da ação de direito material é exceção ao princípio do monopólio estatal da Justiça e só de forma excepcional e casuísta é autorizado pelo ordenamento jurídico. Pontes de Miranda elenca vários casos 15, mas o exemplo mais utilizado é o art. 502 do CC, que autoriza a defesa pessoal da propriedade, tendo, inclusive, o ordenamento penal subtraído o caráter de criminalidade de tal agir. Normalmente, o exercício da ação material faz-se através da “ação” processual, que se materializa pelo processo, cujo exercício independe da existência de qualquer violação, ameaça ou temor de violação de direito, pretensão ou ação de direito material.

 

Por derradeiro, cabe lembrar que, enquanto o direito, a pretensão e a ação de direito material podem ser exercidos pessoal, administrativa ou judicialmente, a ação processual só é exercitável através do processo.

 

A pretensão pré-processual de tutela jurídica, que já nasce com o direito à tutela jurídica, é exercitável através do remédio jurídico processual – a “ação”.

 

Interessante fazer uma comparação entre os dois planos de direito, pretensão e ação, tanto no direito material quanto no direito processual, para identificar as suas diferenças.

 

1. Enquanto o direito subjetivo nasce com a norma jurídica – direito objetivo – o direito à tutela jurídica decorre do monopólio da jurisdição pelo Estado. É indispensável, outrossim, qualquer previsão legal a respeito deste último direito, mesmo no âmbito constitucional, pois é princípio imanente a qualquer ordem jurídica estatal, como lembra Ovídio Baptista da Silva 16.

 

2. A pretensão de direito material, nos direitos relativos, decorre da infração ao dever do sujeito passivo. Esta infração, que se pode resumir a um estado de incerteza, implica uma exigibilidade a favor de alguém e uma obrigação de outro sujeito. Já na órbita dos direitos reais, o direito material nasce exigível, com uma eficácia subjetiva ampla, quer dizer, contra toda a coletividade ou erga omnes. Este fenômeno também sucede com a pretensão processual, com uma diferença: enquanto os direitos materiais absolutos se corporificam como uma proibição contra esses sujeitos passivos totais, a pretensão processual guarda correlação com o Estado sem nenhum caráter proibitivo.

 

3. A ação que nasce do direito material, e nasce da infringêncica de alguma norma no direito objetivo, não possui o mesmo desabrochar que a ação processual. Esta última pode ser exercida por qualquer pessoa, mesmo que não lhe socorra qualquer direito material, porque qualquer pessoa tem o direito à tutela jurídica e, portanto, sempre há de resultar de uma prestação jurisdicional satisfativa – a sentença – independentemente do resultado refletido no plano material.

 

5. Considerações finais.

 

Estabelecidas essas premissas, impostas também pela análise do pensamento fértil de Pontes de Miranda, torna-se nítida a dificuldade encontrada na doutrina para vislumbrar a total e completa independência entre o plano do direito material, de um lado, e a relação  jurídico-processual, de outro. Desde a fase romanista até os rotulados adeptos do abstrativismo, que não se impõe amarras à ação processual, de uma e outra forma acabam por consagrar à pretensão processual condições inerentes à relação de direito material.

 

 Tal tendência histórica e jurídica, inclusive, determinou o surgimento de uma teoria, chamada como eclética, que busca um ponto de confluência entre o plano de direito material e do direito processual, impondo, afinal, condições existentes no direito material ao exercício da ação processual, para vê-la sob forma jurisdicional. Esse condicionamento, vislumbrado sob três ângulos: legitimação, interesse e possibilidade jurídica do pedido, resume-se, no entanto, exclusivamente ao direito material. Entre nós, defende a teoria, de forma coerente e firme, o mestre Galeno Lacerda, mas tal tese, haurida de Enrico Tullio Liebman, resta sufragada no vigente CPC, art. 267, inc. VI, por Alfredo Buzaid, brilhante e fiel discípulo de Liebman.

 

Entretanto, Liebman, perigosamente, se aproxima de uma visão privatista de ação processual, pois, subtraindo caráter jurisdicional à manifestação do Juiz acerca da inocorrência das condições da ação e, ao mesmo tempo, deixando de esclarecer qual a titulação dessa atividade dita de joiramento, impõe inexistentes amarras à atividade do órgão jurisdicional e lhe furta, em última análise, uma parcela de jurisdição.

 

Esses equívocos parecem compreensíveis e nefastos à medida que se tem exata dimensão do conceito de pretensão pré-processual à tutela jurídica: a sua exclusiva existência no plano do direito material infirma as vigentes teorias acerca da natureza da ação processual.

 

Mais uma última vez é de lembrar-se Pontes de Miranda.

 

“O direito à tutela jurídica, de que se irradia a pretensão à tutela jurídica, é pré-processual, proveniente de o Estado ter chamado a si a função de justiça. No direito material, há direito, pretensão e ação, mas tudo isso é objeto do pedido. A “ação” que se propõe, remédio jurídico processual, dá ensejo ao processo, à relação jurídico-processual, que começa com o despacho na petição (autor e Estado) e se angulariza com a citação (autor, Estado; Estado, réu). A confusão que a respeito ocorre nos juristas italianos leva a erros graves. É preciso que não se identifiquem a ação, de direito material, e a “ação”, de direito processual” 17.

 

 

 

 

 

 

(1) – GUASP, 1972, p. 3.

 

(2) – Ibidem, p. 17.

 

(3) – Ibidem, p. 25.

 

(4) – PONTES DE MIRANDA, 1970, 1/94.

 

(5) – Ibidem, p. 242.

 

(6) – Ibidem, p. 102.

 

 

(7) – ASSIS, 1977, p.84.

 

(8) – PONTES DE MIRANDA, 1970, 1/273.

 

(9) – GOMES, 1983, p. 126.

 

(10) – SILVA et alii, 1983, p.110.

 

(11) – Ibidem, p. 109.

 

(12) – PONTES DE MIRANDA, 1977, p. 335.

 

(13) – PONTES DE MIRANDA, 1970, 1/85.

 

(14) – Ibidem, p. 86.

 

(15) – Idem, 1977, p. 237.

 

(16) – SILVA, et alii, 1983, p. 188.

 

(17) – PONTES DE MIRANDA, 1970, 1/189.

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Observações sobre o conceito de pretensão. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 1995. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/observacoes-sobre-o-conceito-de-pretensao/ Acesso em: 22 dez. 2024