Processo Civil

O tribunal da consciência moral e a consciência moral do Tribunal: o “episódio Toffoli”

“Lo único que se necesita para que triunfe el mal es que los hombres buenos no hagan nada”.

Edmund Burke

É habitual observar que os cidadãos reclamam para si um âmbito de privacidade que não estão dispostos a permitir que desfrutem certo tipo de indivíduos,
especialmente quando se trata de determinados funcionários públicos. Como cidadãos, exigem que se respeite seu próprio direito à intimidade; isto é,
reclamam, entre outras coisas, que não se conheçam dados sobre sua vida privada, sobre seu próprio corpo, suas crenças morais e religiosas ou que não se
interfira arbitrariamente na formulação de seus planos de vida. Por outro lado, ao mesmo tempo alçam suas vozes cada vez com uma maior assiduidade e
contundência solicitando e prestando informações acerca das atitudes individuais, as relações pessoais, os bens particulares e o comportamento moral das
pessoas públicas, de funcionários, políticos e também de juízes, sobretudo quando ocupam as mais altas instâncias judiciais de um país. (D. F. Thompson).

No caso particular dos juízes, uma das razões que se oferece para justificar esse fato (empiricamente observável) é que dado que tomam decisões que afetam
ao conjunto da sociedade, os cidadãos têm o direito a conhecer suas aptidões pessoais, suas competências morais e os traços mais relevantes de seu caráter
pela influência que estes podem exercer ou comprometer suas decisões. Têm direito a saber se, por exemplo, seus comportamentos passados ou se as amizades
que frequentam podem representar um obstáculo para o desempenho de suas funções ou se sua ideologia e ética pessoal afetará seu juízo de um modo acusado.
Têm direito a saber, enfim, em mãos de quem estão depositadas suas vidas e os destinos de sua comunidade.

O que este tipo de indagação sobre os aspectos pessoais dos juízes procura evitar é a aparência de parcialidade ou de favoritismo e, ao mesmo tempo, de
manter a confiança pública nos membros que compõem o poder judicial (J.F. Malem Seña). E não se trata precisamente de algo carente de significado e
importância, uma vez que a administração da justiça não é independente do caráter virtuoso daqueles a quem cabe concretizá-la. Sem instituições justas e
sem juízes-cidadãos justos mal pode funcionar adequadamente a vida democrática.

Por essa razão, os juízes devem ter um especial cuidado em não realizar aquelas ações que possam vir a ser consideradas como merecedoras de crítica moral.
Se um dos deveres impostos pelo sistema à magistratura é que os juízes devem abster-se de realizar condutas que diminuam seu cargo e sua função ou que
ofereçam mera aparência de imparcialidade ou probidade, então é absolutamente necessário que mantenham uma atitude virtuosa, que atuem em todo momento com
equilíbrio, sensatez e autocontrole.

Desgraçadamente, alguns magistrados brasileiros costumam adotar uma atitude frente ao direito que viola sistematicamente alguns princípios morais úteis e
ineludíveis para resolver conflitos atuais e do futuro imediato. Ciclicamente, alguns juízes perdem de vista o valor moral, impessoal, do direito. Olvidam
que a ordem de direito somente é útil quando aceitamos que é possível remeter todo conflito ou conduta ilícita de indivíduos ou grupos sociais a uma
normatividade que nos assegure que as decisões vão mais além do interesse que poderia prevalecer em uma empresa familiar. Desconsideram, enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da idéia de direito e da justiça que o fundamenta, a exigência e a responsabilidade ética que têm de
criar e manter, por meio de seus comportamentos, a credibilidade na qual deve descansar a inabalável confiança dos cidadãos acerca de sua atividade: uma
manifestação indispensável de virtude e excelência de caráter.

É certo que há leis, normas e princípios constitucionais que não se cumprem, que se violam, que são letra morta, que se modificam ou se interpretam segundo
convenha aos interesses de determinados indivíduos ou grupos. Todos sabemos que os labirintos dos tribunais estão entre os lugares mais inseguros do País.
Todos temos uma ideia fixa, verdadeira ou não, comprovável ou não, do imperfeito, parcial e às vezes descomprometido (eticamente) desempenho do Poder
Judiciário. Mas há um limite. O direito segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, isto é, de que
não se tornou exclusivamente instrumental. De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o direito e a força bruta, que permite
distinguir entre a ordem de um delinquente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de um determinado imposto.

Não podemos permitir que em determinados tribunais do País alguns magistrados confundam o direito com uma ferramenta ocasional de critérios pessoais, mais
que de critérios jurídicos, morais e/ou sociais. Não podemos escamotear à sociedade brasileira a evidência de que, sob a casca do legalismo formal, a
virtude moral é condição sine qua non para o pleno e legítimo exercício da função jurisdicional. De verdade crêem alguns magistrados de nossos
tribunais superiores que se pode andar pelo mundo minimizando e/ou dissimulando os abusos das artimanhas políticas?

O mau que há em querer contentar a todos sem ferir os caprichos dos amos do poder é que se entra quase de imediato em um beco sem saída e se perde o
horizonte do sentido comum. Uma situação em que a bússola moral dos juízes perde o norte, que as limitações habituais de deslealdade institucional e dos
impulsos desonestos se diluem nos excessos da pessoalidade e que o cinismo se impõe por encima do nível moral que reservamos a nossos congêneres
verdadeiramente humanos. E é precisamente nesses casos em que o povo se sente indignado, traído e ofendido, em que a própria sociedade que se vê privada de
seus mais elementares direitos, especialmente do seu direito de resistir aos verdadeiros “inimigos do Estado”. “Horrendos juízes” – como disse em
seu momento o escritor Rolf Hochhuth – os que se curvam, contra toda a noção corrente de moralidade, aos desejos de seus donos políticos.

Talvez fosse coisa de recordar que quando a consciência moral de um juiz não é o suficientemente sofisticada como para se manter a margem de determinados
julgamentos, corresponde ao próprio tribunal o dever e a coragem de atuar em consequência, especialmente quando as normas da moral a que chamamos
civilizada e as de um sistema jurídico a que consideramos democrático proíbem veementemente este tipo de conduta. Que ao Poder Judiciário cabe aplicar as
leis da democracia e que se a decisão de aplicar ou não uma lei dependesse exclusivamente do capricho de seus membros a Constituição se converteria
rapidamente em “
nada más que una pieza de tela que los jueces se arrancarían luchando como perros, hasta que sólo quedaran jirones desgarrados, sucios,
insignificantes”.
(Gustav Radbruch)

Enfim, que a verdadeira ética da função judicial consiste precisamente em reafirmar que nem sequer os magistrados dos mais altos tribunais estão por encima
da lei e que a ausência de seriedade e honradez por detrás de toda atuação jurisdicional condena qualquer concepção da Justiça à ruína. É necessário
salvaguardar um mínimo decoro de justiça, não reduzir os valores humanos a determinados interesses particulares que despolitizam o específico fenômeno da
corrupção pela via da banalização inespecífica, não confundir o imenso universo político, histórico e moral do direito com a aplicação tendenciosa ou
corrupta de um conjunto de leis precipitadamente adaptadas ao gosto do poder.

O sentido do Estado de Direito, isto é, constitucional e democrático, é mais vasto que qualquer tipo de oportunismo judicial e algo muito mais nobre e
complexo que a esperança ou a exigência de consciência moral por parte de um juiz em particular. A boa vontade não basta por si só para garantir o acerto
moral e legal de determinados magistrados; depende também de determinados atos e suas consequências. E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas
como esse o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é
inapropriada, é muito provável que a intenção seja uma farsa.

O que realmente necessitamos hoje, e de maneira imperiosa –ao menos a maioria dos cidadãos -, é um renascimento (e fortalecimento) da confiança, da virtude
e da honestidade judicial, sob pena de vermos completamente dilapidado o capital moral e político daqueles que devem assegurar a integridade do Estado de
Direito e lutar contra o aumento alarmante e indigno da demagogia, da impunidade e da corrupção. É necessário que entendam, de uma vez por todas, que não
são representantes exclusivos de uma minoria de “bem aventurados”. São uns cidadãos mais que, como qualquer primata ou besta biológica de nossa espécie,
devem assumir os compromissos e as responsabilidades que a sociedade lhes exige.

O País necessita de bons juízes. Juízes honestos e honrados, distantes de toda corrupção moral, econômica e/ou política. E também necessita juízes que
sejam capazes de apartar-se voluntariamente de toda e qualquer causa cuja decisão pode resultar marcada por um prurido, interesse ou prejuízo pessoal. Um
bom juiz que seja consciente das limitações que conformam sua própria personalidade e seu caráter. Sem isso, a imparcialidade dificilmente será assegurada.
E sem imparcialidade jamais haverá oportunidade para a Justiça.

De minha parte, estou convencido que a consciência moral de todo um tribunal é mais importante que o tribunal da consciência de uns poucos magistrados. Não
há que esperar a intervenção do Espírito Santo, o desassossego da voz da consciência ou a vontade de moralidade por parte de um juiz em concreto para
reagir contra todo e qualquer tipo de vergonhosa e aviltante parcialidade. Afinal, o mau (e/ou tendencioso) uso do poder é, depois de tudo, a essência da
tirania. E o exercício do poder na administração da justiça não constitui nenhuma exceção a esta regra.

* Atahualpa Fernandez, Membro do Ministério Público da União/MPT; Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em
Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e
Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU-
Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público pela UFPa.; Pós-doutorado em Neurociencia Cognitiva – Universitat de les
Illes Balears/Espanha; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Cognición y Evolución
Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física
Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB.

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa. O tribunal da consciência moral e a consciência moral do Tribunal: o “episódio Toffoli”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/o-tribunal-da-consciencia-moral-e-a-consciencia-moral-do-tribunal-o-episodio-toffoli/ Acesso em: 22 dez. 2024