Felipe Carvalho do Bonfim Dutra
Gabriel Palombo
Sumário: Introdução; 2 A violência e a perpetuação do medo no meio escolar: o nascedouro de uma sociedade litigante; 3 A mediação de litígios e suas repercussões no meio escolar; 4 Mediação escolar e descongestionamento do judiciário: a efetividade da autocomposição de litígios; Considerações finais.
Resumo
A cultura de paz escolar como meio de redução da violência e de litigância no judiciário. O presente trabalho visa mostrar como a mediação de conflitos e a Cultura de Paz podem ser implantadas no cenário escolar a fim de empoderar os indivíduos na resolução de crises e litígios. Partindo-se do pressuposto de que numa sociedade hipercomplexa como a brasileira o conflito é inato, deve-se pensar em formas de gestão dessas crises de modo que as partes conflitantes saiam ganhando. A priori, o ensino da mediação de conflitos num meio de iniciação do indivíduo nos círculos sociais o torna protagonista de suas discussões. Os valores pregados pela mediação, tais quais: a alteridade, o “colocar-se no lugar do outro” e a não-violência geram desde cedo a ideia de que este tem plena capacidade de gestão de litígios, sem uso de meios coercitivos. O trabalho relaciona, a posteriori, a mediação escolar e suas repercussões no cenário do Judiciário brasileiro, cuja situação é calamitosa, sendo marcado pelas altas custas processuais e pela lentidão do sistema, que é acessado por toda e qualquer causa ou conflito. O ensino da mediação propicia, assim, um duplo benefício: melhoria educacional e redução do número de processos judiciais, tornando a atuação do Estado menor na vida dos cidadãos e estimulando o entendimento mútuo. O trabalho mostra, por fim, como a atuação estatal é ineficaz na resolução de pequenos conflitos (vizinhança, família, trabalho), e como os meios alternativos são importantes na construção de um país menos litigante, mais justo e gerenciador de suas próprias crises.
Palavras-chave: Cultura de Paz; Mediação escolar; Novos paradigmas; Meios alternativos; atuação estatal.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa expor como os meios alternativos de resolução de crises podem incidir no contexto de aprendizado escolar, de modo a contribuir com o empoderamento dos sujeitos empreendidos naquele contexto. Compreendendo aquele meio como um dos primeiros centros de convivência social dos estudantes, visa-se debater como a violência escolar, tratada em seus mais diversos aspectos, contribui com a opressão e o medo nos jovens, perpetuando um ambiente de grande hostilidade.
O trabalho propõe-se também a avaliar em que medida a Cultura de Paz pode reduzir e mitigar esse ambiente de rivalidades, bem como suas repercussões, a longo prazo, no cenário de extrema litigância que vive o Judiciário brasileiro.
Com base nos postulados da sociologia reflexiva, em Pierre Bourdieu, coloca-se em suspense a questão, investigar-se-ão as categorias conflito, violência, cultura de paz, mediação e ambiente escolar, a partir de técnicas de pesquisa bibliográfica, documental e análise de conteúdo para a consecução dos fins propostos.
A relevância do tema proposto se dá justamente pelo caráter de transformação social que a escola traz consigo e de sua possibilidade de trazer autonomia relacional aos ingressantes no convívio comunitário.
Seção por seção, enfrentar-se-á o que denominou-se a origem de uma sociedade litigante a partir das práticas violentas e da cultura do medo no ambiente escolar, locus da presente análise; as repercussões da mediação de litígios na escola; e a efetividade da autocomposição pela ótica do descongestionamento do Poder Judiciário.
Ao final, algumas considerações representativas das pesquisas realizadas e aqui publicizadas.
2 A VIOLÊNCIA E A PERPETUAÇÃO DO MEDO NO MEIO ESCOLAR: O NASCEDOURO DE UMA SOCIEDADE LITIGANTE
O cenário escolar é um meio de intenso conflito, demarcado pelo cotidiano de disputas e crises relacionais entre os alunos, tornando-o um meio inefetivo. A Era Moderna é marcada pela progressiva atribuição de [1]importância à formação escolar, de modo a capacitar os indivíduos não só a conhecerem o meio que os cercam, como também sua introdução em um meio social cada vez mais pluralizado.
É nesse meio que se encontram as raízes da sociedade atual, podendo-se mesmo dizer que a violência crescente nos centros urbanos e rurais está direta e intrinsecamente ligada a uma falha na educação básica, no qual a Cultura do medo e do poder do opressor geram um indivíduo incapaz de reconhecer outros como iguais.
Um meio escolar incapaz de gerir problemas como bullying, racismo e as mais diversas formas de violência, inclusive a simbólica, gera, em maior ou menor grau, um adulto que não consegue usar do diálogo na resolução de seus litígios, que não enxerga o poder que ele mesmo possui na busca de soluções vantajosas para ambas as partes, senão aquele poder baseado no autoritarismo e no uso de meios coercitivos. Tem início, nessa senda, a força motriz da Cultura da litigância no país, que torna o Poder Judiciário lento, desacreditado e extremamente burocrático. A relação que se tenta estabelecer, a priori, é que uma educação básica que não forma adequadamente seus alunos numa perspectiva cívica, tem como efeito uma sociedade sem empoderamento, que não se vê como protagonista de sua própria vida.
A discussão perpassa por conceitos como poder e violência e, desse modo, Hannah Arendt (1970) nos relata que “o poder é inerente a qualquer comunidade política”. O que ocorre na cultura da litigância é o fato de que cada ator social destina seu poder de atuação ao Estado, que, de maneira totalmente distante e impessoal ao conflito, não tem como tomar a decisão mais acertada. O poder simbólico está em todo o meio social, contudo a maneira de seu uso mostra em que grau os indivíduos podem protagonizar as crises em que se envolvem.
A violência escolar, que “diz respeito a todos os comportamentos agressivos e antissociais, incluindo os conflitos interpessoais, danos ao patrimônio, atos criminosos, etc.” (LOPES, 2005) fundamenta-se como um enorme meio de opressão num cenário que deveria, assim como todos os outros cenários, ser marcado pelo diálogo e afeto. A fase juvenil, marcada pela formação cognitiva e intelectual dos estudantes, vê-se de tal modo abalada que impede o desenvolvimento pleno do jovem, impossibilitando que ele desenvolva suas potencialidades. Assim, a violência atua como
resultante da interação entre o desenvolvimento individual e os contextos sociais, como a família, a escola e a comunidade. (…) O modelo do mundo exterior é reproduzido nas escolas, fazendo com que essas instituições deixem de ser ambientes seguros, modulados pela disciplina, amizade e cooperação, e se transformem em espaços onde há violência, sofrimento e medo. (LOPES, 2005)
Deixando de lado uma análise mais genérica sobre violência, pode-se especificá-la em certos conceitos com grande incidência no meio escolar, tais como o preconceito, o bullying, o racismo, e toda e qualquer forma de violência simbólica ou material, que oprime e segrega indivíduos.
O racismo, conforme o Dicionário de Política, é uma
referência do comportamento do indivíduo à raça a que pertence e, principalmente, o uso político de alguns resultados aparentemente científicos, para levar à crença da superioridade de uma raça sobre as demais. Este uso visa a justificar e consentir atitudes de discriminação e perseguição contra as raças que se consideram inferiores. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2010
O racismo no Brasil mostra os resquícios da sociedade escravista do séc. XIX e, e está intimamente ligada com a opressão aos negros ao longo de toda a história brasileira. Não é estranho ainda encontrar nas escolas o uso de termos que fazem referência à cor da pele como fator de estigmatização e rebaixamento do outro. Fatos esses que consubstanciam um déficit de cidadania e desrespeito por parte dos alunos e que gera graves crises aos afetados pelas doutrinas raciais opressoras.
Toda ideia é socialmente construída, logo ela também pode ser conjuntamente desfeita. O adolescente que adentra à escola com os valores deturpados, em grande medida pela família (único núcleo social que ela teve convívio antes da escola), pode perfeitamente ser alvo de campanhas de ressignificação de identidades, de modo a que ele entenda que o simples fato de ser branco não corresponde a nada mais do que o próprio fato de ele ser branco, fundamentado no Caput do Artigo 5° da Constituição Federal que aduz “ todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)”.
No que tange ao Bullying escolar, terminologia mais moderna e que tem sido amplamente desenvolvida nos últimos 10 anos, esta corresponde a um
conjunto de atitudes de violência física e/ou psicológica, de caráter intencional ou repetitivo contra uma ou mais vítimas que se encontram impossibilitadas de se defender. Seja por questão circunstancial, seja por uma desigualdade subjetiva de poder, por trás dessas ações sempre há um “bully” que domina a maioria dos alunos de uma turma e proíbe qualquer atitude solidária em relação ao agredido” (SILVA, 2015)
É interessante, pois, mencionar de que forma o poder se manifesta em uma simples sala de aula. Por vezes, um indivíduo sozinho dá início a um conflito generalizado, simplesmente por ter ele reconhecimento e legitimidade no grupo a que comanda. A partir do momento em que ele começa a subjugar um colega como forma de elevar seu status quo, reprime-o simbolicamente, de modo quase imperceptível sob um olhar contextual externo. Internamente, contudo, o conflito transcorre e a vítima tem medo de expor a situação.
Assim, a mediação de conflitos, no contexto da Cultura de Paz e da Ética da Alteridade, atua não só nos conflitos cuja materialidade é notada, mas age também nos simbólicos e, principalmente, no sentido de prevenir essas atitudes de segregação e desrespeito de tal modo desarrazoadas e infundadas.
O que se nota também é que a escola funciona como um microssistema da sociedade. De modo que as ações e conjunturas presentes nesse contexto são aplicadas, quase que pelo método subsuntivo, à vida exterior. As relações de poder e hierárquicas; corpo administrativo; líderes de turma; grupos opressores; grupos oprimidos; funcionam de modo análogo ao que se vê no convívio e na prática social.
O que ocorre na escola não é que os indivíduos não conseguem resolver seus litígios. É que, na maioria das vezes, os conflitos são resolvidos com violência, sem uso do diálogo, coadunando com o exposto por CONTIJO (2013), no qual
aponta-se que a violência física tem sido utilizada como forma de comunicação e de resolução de conflitos, sendo naturalizada e banalizada nos diferentes espaços sociais, o que suscita o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento que exigem o posicionamento de todos os atores envolvidos no fenômeno (CONTIJO. et al ,2013, p. 22)
Logo, pode-se perfeitamente afirmar que, sendo este o primeiro Núcleo societário no qual os alunos deixam a convivência na homogeneidade do lar e passam a conviver com os diferentes modos de ser dos colegas, ele é de suma importância para projetar o indivíduo por toda a sua vida.
Uma escola violenta, sem diálogo e respeito às diferenças, resulta num meio social litigante, que desloca a responsabilidade ao Estado de tudo quanto poderia ser resolvido na esfera civil. Nesse sentido, a violência
se caracteriza como um fenômeno complexo, salientando-se a necessidade do desenvolvimento de pesquisas que, além de identificá-la e caracterizá-la, busquem aprofundar sua compreensão, abarcando as experiências de todos os atores que compõem o cotidiano escolar (CONTIJO. et al ,2013, p. 23)
A violência escolar é empreendida tanto a alunos, quanto a professores. Segundo dados da OCDE e da PROVA BRASIL-INEP (2014), 12,5% dos professores ouvidos no Brasil disseram ser vítimas de agressões verbais ou de intimidação de alunos pelo menos uma vez por semana; aproximadamente 10% relataram já terem sido alvo de ameaça por aluno; cerca de 1/3 diz ter sido verbalmente agredido por aluno e 2% haviam sofrido violência física destes.
Os mencionados dados consubstanciam o exposto. O uso da violência verbal como forma de demonstração de poder, bem como das outras formas de violência, torna a sala de aula um ambiente permeado de disputas e dissuasões, onde a busca de conhecimento e o aprendizado são deixados a segundo plano.
Relaciona-se a isso o fato de cada vez mais escolas assumirem o papel social da família de formar o caráter ético do adolescente. As atribuições que caberiam aos pais são transmitidas aos professores que, em meio a tantos conteúdos a serem ministrados e alunos a ensinar, têm de buscar uma mudança de mentalidade dos jovens. Circunstância que não é de fácil gerenciamento, visto que não há, em muitos casos, legitimidade dada pelos alunos agressores aos professores. Instala-se, assim, o cenário de intenso conflito por que perpassa a escola brasileira.
O ensino da Cultura de Paz na escola e a noção de que a violência pode ser superada por meio do diálogo são fundamentais para o país, sendo coadunada com a ideia de que o Judiciário passará a ser menos buscado, ou buscado somente em casos mais graves, cuja indisponibilidade do bem jurídico tutelado não permita a autocomposição.
3 A MEDIAÇÃO DE LITÍGIOS E SUAS REPERCUSSÕES NO MEIO ESCOLAR
A mediação de conflitos insere-se no contexto das medidas alternativas de resolução de litígios adotadas pelo Judiciário para evitar que as discordâncias que porventura chegariam à jurisdição estatal sejam resolvidas pelas partes.
Essas medidas alternativas são legitimadas e reconhecidas pelo Estado brasileiro, que garante o cumprimento dos acordos feitos, de modo a trazer celeridade e evitar mais gastos com a processualística do país, que já demanda uma fatia grande dos cofres públicos.
Apesar da existência e garantia dada pelo Estado de que os acordos serão cumpridos e de que nem todos os conflitos (principalmente os relacionados a família, vizinhança, trabalho e núcleos de afinidade) precisam chegar ao Judiciário, a eficiência dessas medidas ainda é pequena. Boa parcela da população acredita que o poder coercitivo do Estado vale mais que os acordos empreendidos inter-partes e que acionar a Justiça resolverá de fato o problema. Essa ideia de senso- comum, contudo, acaba por tornar o país o campeão em litigância e por fazer com que os conflitos que deveriam ser resolvidos na jurisdição estatal sejam acometidos de demasiada lentidão.
A mediação vem, pois, a partir da teoria do conflito, apresentar uma nova forma de tratar a conflitualidade. Ela parte do pressuposto de que o Estado não resolve efetivamente os conflitos. O que ele pode fazer é simplesmente obrigar uma das partes ao cumprimento de uma obrigação, não tornando-as integrantes do processo resolutivo.
Na jurisdição estatal tem-se a Cultura do ganha-perde, onde um lado do processo tem a razão e outro não. A realidade não é assim. Os conflitos são desenvolvidos por irracionalidades e incompreensões de ambas as partes, onde a falta de diálogo e da Ética da alteridade (colocar-se no lugar do outro) consubstanciam a continuidade do desentendimento.
A mediação perfaz a construção da solução do conflito. Por meio dela, ambas as partes discutem a raiz do problema e a culpa de cada um na disputa que empreenderam. Nela não se estabelece ganhador ou perdedor, mas sim a Cultura do ganha-ganha, no qual as duas partes se ajudam de modo a saírem beneficiadas.
Sobre a atuação da mediação, tem-se que
é um meio geralmente não hierarquizado de solução de disputas em que duas ou mais pessoas, com a colaboração de um terceiro, o mediador- que deve ser apto, imparcial, independente e livremente escolhido ou aceito-, expõem o problema, são escutadas e questionadas, dialogam construtivamente e procuram identificar os interesses comuns, opções e, eventualmente, firmar um acordo. (VASCONCELOS, 2008, p.36)
Assim, deve-se começar a falar dos meios alternativos de resolução de litígios desde a escola, de modo a que, no futuro, a Cultura da Litigância e de violência diminua e o Estado deixe atuar tanto em causas cuja resolutividade seja simples. O agigantamento do Estado e de sua jurisdição nada traz de bom ao país, a não ser à tropa de advogados que sai das cadeiras das faculdades de Direito a cada ano.
Além da participação na resolução conflitiva, a mediação propicia a reconstrução da relação entre os polos, indo de modo profundo na estrutura relacional. Quem participa da mediação resolve não só aquele litígio imediato, mas também aprende e protagoniza posteriores discordâncias. Logo, o caráter dialogal desse instituto consubstancia uma forma precisa de não- recorrência ao Judiciário, tornando as partes donas de sua própria beligerância, senhoras de seu próprio caminho.
O mediador não intervém no diálogo. Ele é meramente um organizador do debate, explorando pontos importantes que foram omitidos e esclarecendo fatos controvertidos. A ele não cabe decidir o conflito, nem obrigar uma ou outra parte a ceder em determinado ponto. O mérito do objeto litigioso é todo debatido, argumentado, pensado e decidido pelas partes, que se comprometem muito mais no cumprimento do acordo estabelecido. Sendo as partes construtoras do acordo, a corresponsabilidade é muito maior do que se o Estado anunciasse quem está com a razão.
Assim, esse instituto tem plena aplicação nas escolas brasileiras, visando a criação de uma Cultura onde a paz e o diálogo sejam primordiais, não necessitando de coerção ou violência.
Valem certos questionamentos: se a mediação de conflitos não é adotada efetivamente na resolução dos conflitos sociais como forma de não recorrência ao Judiciário, a aplicabilidade desse instituto no âmbito escolar geraria resultado? Há como associar o ensino da mediação de conflitos na escola a uma eventual e progressiva diminuição, a posteriori, da litigância no país? A resposta envolve uma série de pontos de vista e propõe uma saída, ao menos parcial, ao combalido Poder Judiciário brasileiro.
Eis a resposta.
O primeiro ponto a ser levantado é a situação da educação brasileira no que tange ao processo de socialização dos estudantes. Levando em conta a atuação dos diversos atores sociais no meio escolar, as potencialidades da juventude são primeiramente exploradas na sala de aula. É nos bancos da escola que o aluno, no convívio com os outros, passa a ter as concepções de certo e errado e a fundamentar seu caráter e moralidade.
Neste sentido, Stuart Hall (1998) nos relata que a compreensão de sujeito na sociedade é a da identidade formada na interação entre o “eu” e ela própria. O sujeito tem sempre uma essência interior, que é o “ser real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades oferecidas por eles. Dando continuidade a esse raciocínio, a violência perpetrada já na escola abala tanto opressores quanto oprimidos pela vida toda, por instaurar uma Cultura de medo e agressão.
Quando o processo de socialização falha e a escola não consegue tornar o aluno apto a conviver com os indivíduos diferentes, acaba tornando-os sujeitos cuja identidade é moldada pela incompreensão e o desrespeito àqueles que não possuem características tidas como normais. Nesse ensejo, mencionam-se, como exemplo, as agressões verbais a adolescentes acima do peso, negros, baixos, homossexuais, pobres, bem como outros usados para discriminação.
O segundo ponto é entender porque a violência fascina tanto os indivíduos e como essa cultura da litigância é estimulada desde cedo nas escolas brasileiras. Quando um jovem demonstra qualquer sinal de fraqueza perante o círculo de amizades a qual faz parte, principalmente os homens, ele é incentivado a reagir a altura da provocação e a demonstrar que possui mais poder (força física) que o provocador.
Sobre essa noção de poder exposta, tem-se que ela consiste em fazer com que os outros ajam conforme “eu” escolho, conforme o que “eu” quero (HARENDT, 1969). O poder começa a ser manifestado pela violência de modo que a cada a disputa as polaridades são mais acirradas. Cabe mesmo comparar o uso dessa força física legitimadora do poder dentro da escola com o monopólio estatal do direito de punir que o Estado tem (WEBER, 1913).
Nos dois casos se recorre ao uso da violência, uma empregada pelo próprio estudante e outra pelo poder do Estado. As duas reverberam no não-protagonismo do indivíduo. As duas forças usam de meios coercitivos e não consensuais de resolução de litígios.
Logo, pode-se perceber que desde a infância o brasileiro aprende a recorrer a uma instância de poder coativo, que legitime suas decisões, abdicando do diálogo e do entendimento recíproco.
O terceiro ponto é avaliar como o ensino público, em péssimas condições e com grandes déficits de aprendizagem, e tendo em vista que a maioria dos estudantes se encontra nele, tem contribuído com o fortalecimento da violência e da opressão.
Uma análise superficial do sistema público de ensino já revela o estado caótico que este se encontra, não oferecendo, por vezes o mínimo de condições de estudo e integração social entre os estudantes. Pode-se mesmo dizer que o próprio Estado usa de certa violência simbólica para com os adolescentes ao não oferecer a eles as mesmas condições de ensino que o setor privado. Os estudantes de baixa-renda, que ocupam a maior parte das vagas dessas escolas, não enxergam na educação uma possibilidade de mudança de vida, perpetuando assim o ciclo de pobreza e de violência sistêmica.
Sob este prisma, a mediação de conflitos atua mostrando que os conglomerados socioeconômicos não impedem que nenhum indivíduo alcance seus objetivos. Apesar das extremas desigualdades sociais existentes no Capital moderno, há como superar os obstáculos postos no caminho, mudando-se os rumos de suas vidas e afastando-se o crime, a violência e a opressão.
Cabe ressaltar que a referência ao ensino público não nega haver violências no ensino privado, cujo poder aquisitivo das famílias é maior. O que se busca relacionar é que a violência escolar se liga intrinsecamente à má distribuição de renda e que a escola pública concentra grande parte de alunos de baixa renda, não possibilitando a eles visões de mundo que propiciem ascensão social.
Diante de todo o exposto, depreende-se que o ensino da mediação escolar gera um ambiente onde a pluralidade de indivíduos atua em benefício mútuo, fazendo com que as especificidades de cada um preencham um universo capaz de gerar uma sociedade menos violenta.
As diferenças, na visão da mediação, não se anulariam (por meio da continuidade dos conflitos), mas se somariam de modo a que cada ser pudesse desenvolver suas potencialidades, talentos e aptidões. Se a mediação não tem sido devidamente utilizada no âmbito cível é porque ela não foi efetivamente internalizada pela população em geral.
Assim, a mediação implica não somente um método auto-compositivo alternativo à jurisdição estatal para resolução de conflitos. Ele se revela como um norteador de uma sociedade que se propõe a explorar integralmente as virtudes de uma Cultura de Paz, por meio de seus postulados e paradigmas, a fim de dar a cada indivíduo as ferramentas necessárias para administrar seus conflitos, que são característicos de qualquer tecido social.
4 MEDIAÇÃO ESCOLAR E DESCONGESTIONAMENTO DO JUDICIÁRIO: A EFETIVIDADE DA AUTOCOMPOSIÇÃO DE LITÍGIOS
No que tange ao liame entre a Cultura de Paz escolar e a resolução alternativa de conflitos[2] (sem recorrer ao Judiciário), Weber aduz que
O Estado é uma forma de violência legítima, do qual o homem se escondeu de suas próprias formas de autogoverno, passando ao Estado, detentor do monopólio da força legítima, e para onde a institucionalização da coerção faz com que pareça normal o uso da violência (WEBER, 2004)
Assim, o Estado é uma manifestação última do poder, e pela qual uns se subordinam a outros.
Ainda no intuito de descobrir por que o homem perdeu a autonomia da resolução de seus conflitos e o passou ao Estado, para, assim, mostrar como a mediação de conflitos pode ser efetiva no início do convívio social dos indivíduos, Arendt comenta que “ a vontade de poder e a vontade de obedecer estão interligadas e o instinto de submissão é tão proeminente na psicologia humana quanto a vontade de poder, sendo até mais relevante”. Isso mostra que, para os atores sociais envolvidos num conflito é muito mais cômodo atribuir ao Estado a capacidade de sua resolução, o que não tende a resolver as disputas por não ir ao cerne do problema, mas que tira o “trabalho” dos conflitantes.
Nesta senda, a mediação de conflitos, tradicionalmente usada como medida alternativa ao Poder Judiciário, mas ainda pouco efetiva na terrae brasilis, tem grande potencial, se desenvolvida ao longo da educação básica, como complemento ao currículo escolar. Para Cavalcanti, a mediação escolar caracteriza-se como
Um meio não hierarquizado de solução de disputas em que duas ou mais pessoas (estudantes), com a colaboração de um mediador, expõem o problema, são escutadas e questionadas, dialogam construtivamente, procuram identificar os interesses comuns e, eventualmente, firmar um acordo (restauração da relação). (CAVALCANTI, 2010)
A mediação, enquanto presente no cenário de medidas extrajudiciais de resolução de litígios, consubstancia também o efetivo acesso à justiça na medida em que este “tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação” (VASCONCELOS, 2008, apud CAPPELLETTI,1988. p. 11-13).
A autocomposição, na qual a mediação se insere, apesar de sua imensa aplicabilidade nos conflitos escolares, não pode ser usada em todo e qualquer caso, mas somente naqueles em que houver direitos disponíveis. Assim, ela é
admitida sempre que não se trate de direitos tão intimamente ligados ao próprio modo de ser da pessoa, que a sua perda a degrade a situações intoleráveis. Trata-se dos chamados direitos de personalidade (vida, incolumidade física, liberdade, honra, propriedade intelectual, intimidade, estado etc). Quando a causa versar sobre interesses dessa ordem, diz-se que as partes não têm disponibilidade de seus próprios interesses (matéria penal, direito de família etc.) (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2010, p. 26).
No bojo da reflexão proposta, no qual se tenta estabelecer uma relação direta entre ensino de mediação e redução de litígios, é interessante notar o cenário do judiciário brasileiro na atualidade.
Dados doRelatório Justiça em Números (2014) revelam que dos 95,1 milhões de processos que tramitaram no Judiciário brasileiro no ano de 2013, 85,7 milhões encontravam-se no primeiro grau, o que corresponde a 90% do total. Revelam também que o primeiro grau baixou 23 milhões de processos, a demonstrar que sua capacidade produtiva anual é de apenas 27% da demanda imposta à sua apreciação. Isso demonstra que para dar vazão ao estoque de processos seria[3] necessário cessar a distribuição por quase 4 anos e, nesse período, baixar anualmente o mesmo número de processos de 2013. No primeiro grau da Justiça Estadual (excluídos os juizados especiais), o congestionamento é de 80%, contra 44% do segundo grau (diferença de 36 pontos percentuais). Na Justiça do Trabalho o congestionamento é menor, mas a diferença entre primeiro e segundo graus é, percentualmente, ainda mais acentuada: apenas 31% de congestionamento no segundo grau contra 51% no primeiro (diferença de 20 pontos percentuais).
O funcionamento da máquina judiciária brasileira movimentou, em 2014, R$ 68,4 bilhões. Esse montante representa um crescimento de 4,3% em relação ao ano anterior. Corresponde, também, a 1,2% do PIB e a 2,3% do total dos gastos públicos do país.
A apresentação desses dados demonstra que o país vive uma verdadeira guerra. Litiga-se por tudo. O judiciário está abarrotado e não tem capacidade de atender de modo justo às imensas demandas da população. As altas custas processuais, a demora nas decisões e o sentimento de afastamento que o cidadão tem dos magistrados geram um cenário paradoxal. Ao mesmo tempo em que a população passa a não acreditar mais na justiça brasileira, os processos continuam a crescer e as medidas alternativas de resolução de crises (mediação, conciliação e arbitragem) não têm sido eficazes a ponto de operar uma transformação.
Por certo, a mediação escolar pode contribuir e muito com uma sociedade menos beligerante. O cenário de litigância não mudará da noite para o dia. Também não se está dizendo que a mediação (como medida específica) resolverá todos esses problemas, mas que, sendo adotada dentro de uma conjuntura de ações por parte da sociedade civil, pode efetivar o acesso à justiça e fazer com que os fatos realmente dignos de serem submetidos à tutela jurisdicional, o sejam.
É valido salientar a atuação do Novo Código de Processo Civil[4] que prevê a criação de uma audiência obrigatória de “conciliação e mediação” antes da apresentação de contestação pelo réu, o que pode resultar na efetivação de acordos, mostrando, assim, a intenção do legislador em que as partes busquem o diálogo e evitem ao máximo continuar o processo. Para que não haja a audiência, ambas as partes devem optar por sua não realização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, a mediação não pode mais ser tida como medida secundária, mas sim como primeira forma de resolução de conflitos escolares e sociais.
A atuação política no intuito de fortalecer os indivíduos desde cedo e de mostrar-lhes que o diálogo e o entendimento mútuo podem trazer muito mais ganhos que recorrer a formas violentas ou estatais de resoluções de crises pode efetivar a Cultura de Paz no país, diminuir os índices de violência e sanear o já combalido sistema judiciário brasileiro.
É evidente que são medidas de longo prazo e que sua implementação requer forte atuação de mediadores na educação básica, entretanto a atual conjuntura de violência e litigância no Brasil requer mudanças de paradigma estruturais.
Assim, deve-se começar a falar dos meios alternativos de resolução de litígios desde a escola, de modo a que, no futuro, a Cultura da Litigância e de violência diminua e o Estado deixe de atuar tanto em causas cuja resolutividade seja simples.
Portanto, o acesso à justiça não se dá só por meio da tutela jurisdicional. O agigantamento do Estado e de sua jurisdição nada acrescenta ao estado nacional, e apenas potencializa a exploração da litigância.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
[2] Cabe salientar que os meios alternativos de resolução de crises existem desde a Roma Antiga, contudo só na década de 1970 nos Estados Unidos houve um ressurgimento desse movimento de diminuição de litigiosidade no Judiciário. O movimento ganhou força no mundo todo e agora a tendência da nova processualística e do efetivo acesso à justiça (conforme Cappelletti) é que primeiro haja uma tentativa de conciliação e/ou mediação antes das partes adentrarem ao processo.
[3] Apesar dos últimos estudos do CNJ serem de 2014, o Brasil alcançou em 2015 a marca exorbitante de 100 milhões de processos tramitando em todas as instâncias e áreas de atuação do Judiciário
[4] O NCPC entrou em vigor no mês de março de 2016 e revogou o Código de 1973. Ele sofreu alterações antes mesmo de entrar em vigor, em decorrência da lei 13.536, de fevereiro do corrente ano.