Processo Civil

Legitimidade passiva e possibilidades intervencionais nos delitos de trânsito

Legitimidade passiva e possibilidades intervencionais nos delitos de trânsito

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Ao receber o gentil convite para participar deste painel, foi-me solicitado que abordasse o tema referente à legitimação passiva para a demanda indenizatória decorrente de acidente de trânsito, assim como as possibilidades de ocorrerem eventuais formas intervencionais nessas ações.

 

Em uma primeira aproximação, cabe lembrar o duplo plano das relações jurídicas. Não se pode confundir o direito objetivo, como codificador de pautas de conduta – segundo expressão de Araken de Assis (“Cumulação de Ações”, São Paulo, RT, 1989, p. 61) –, com o direito à tutela jurídica, exercitável por meio da ação. A existência de algum direito insatisfeito, somada à vedação da autotutela, impõe a busca da jurisdição como meio de obter o seu adimplemento coactamente. Serve o processo para solucionar conflitos de interesses. Assim, verificada a lide no plano do direito material, por incumprimento de uma obrigação jurídica, sua satisfação deve ser buscada por meio da demanda, pelo exercício do direito público de tutela.

 

Servindo o processo para o acertamento de relações jurídicas insatisfeitas, mister que venham a juízo os seus participantes, pois a sentença apreciará o vínculo obrigacional em sua integralidade. Na busca de cumprimento de obrigação indenizatória, seu titular dirige a pretensão contra quem deve ressarcir o dano. Indispensável que haja uma identidade entre os figurantes da relação de direito material e os participantes do processo. Essa coincidência qualifica as partes como legítimas.

 

Em termos de responsabilidade aquiliana, necessário que se identifique quem seja o responsável pela reparação, sendo que o art. 159 do Código Civil define a ilicitude no campo civilístico, ao estabelecer: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência,  violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigada a reparar o dano”.

 

Igualmente o art. 1.523 do Código Civil estabelece a responsabilidade solidária em havendo prova da concorrência para o dano por culpa ou negligência.

 

Vê-se, pois, que a tipificação da obrigação indenizatória no estatuto pátrio se limita aos atos ilícitos definidos por Messio como os que “são queridos pelo sujeito que os realiza e, cumpridos contra uma norma de lei, produzem um dano a outro sujeito; e, por causa dele, importam para quem haja realizado o ato, a obrigação de ressarcir o dano inferido” (apud Marcos Bernardes de Melo, “Teoria do Fato Jurídico”, São Paulo, Saraiva, 3ª ed., 1988, p. 205).

 

A ilicitude é o elemento nuclear do suporte fático – para usar a linguagem ponteana – para a caracterização do ato contrário ao Direito, podendo-se dizer que todo fato, seja evento, seja conduta, que implique violação da ordem jurídica, negando os fins do Direito, é ato ilícito.

 

Para gerar a obrigação indenizatória, no entanto, indispensável mais um apertado nexo do que o simples critério lógico da causalidade. Para se ter um fato como constitutivo de responsabilidade, é indispensável a identificação da causa no processo formativo do dano.

 

Carbonier escreve que a causalidade não deve ser concebida de uma forma puramente lógica, aderindo à teoria da causalidade adequada, conforme refere Antunes Varela, ao asseverar: “ O pensamento fundamental da teoria é que, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o ‘facto’ praticado pelo agente tenha sido, ‘no caso concreto’, a condição (s.q.n.) do dano: é necessário ainda que ‘em abstrato ou em geral’, o fato seja uma ‘causa adequada’ do dano” (“Das Obrigações em Geral”, Coimbra: Almedina, 7ª ed., I/887, 1991).

 

Assim, indispensável é atentar nos antecedentes do dano para considerá-lo como apto para produzir o efeito lesivo. O fato é condição necessária do dano, mas tal requisito não é suficiente para que possa ser considerado como causa desse dano. Em se tratando de fato ilícito culposo, mister que o agente tenha uma conduta ilícita geradora da condição de dano, para se considerar o fato imputável ao agente como causa adequada do dano.

 

Essa necessidade de evidenciação da causa adequada é muito bem demonstrada pelo civilista português Antunes Varela, que afirma (1) ser essencial que o fato seja a condição ou uma das “condições do dano”. Também imprescindível para a responsabilização é (2) a “previsibilidade” do fato constitutivo da responsabilidade, elemento integrante do conceito da culpa. Finalmente, a causalidade adequada não se refere ao fato e ao dano isoladamente considerados, mas (3) ao “processo factual” que, em concreto, conduziu ao dano.

 

Desse contexto, possível é afirmar-se que o estatuto pátrio adotou a teoria da causalidade adequada. Assim, para que um dano seja reparável pelo autor do fato, necessário que este tenha atuado como condição do dano.

 

Descabe adotar-se a solução sustentada por Aguiar Dias e difundida entre os civilistas franceses (que vem sendo aceita pela jurisprudência pátria) da presunção de causalidade, não de culpa ou de responsabilidade, concluindo: “Temos a impressão de que o problema ganha uma simplicidade e fica com sua solução facilitada se estabelecemos que, em face daquela presunção de causalidade, ao dono da coisa incumbe, ocorrido o dano, suportar os encargos dele decorrentes, restituindo o ofendido ao statu quo ideal, por meio da reparação” (“Da Responsabilidade Civil”, Rio de Janeiro, Forense, 5ª ed., 1973, p. 40).

 

Se dita solução lhe parece singela para a resolução da espécie, ela também é absolutamente contrária ao direito positivo pátrio.

 

Dimensionado, em rápidas pinceladas, o elemento subjetivo da responsabilidade civil, não se pode deixar de apontar, como único legitimado para a demanda reparatória, o responsável pelo dano, ou seja, aquele que agindo culposamente causou dano a outrem. Mais, que o agir previsível foi causa objetivamente adequada à produção do dano. Sem a presença dessa tríplice identidade, não se pode detectar a culpa geradora da obrigação indenizatória. Assim, cabe afirmar que a ação deve-se dirigir contra o responsável pelo pagamento da indenização.

 

Se uma pessoa que sofreu algum dano atribui a responsabilidade a alguém, está a afirmar que é titular de um direito indenizatório, ou seja, que tem um vínculo jurídico com aquele contra quem dirige a ação. Instaurando-se a demanda entre essas pessoas, em princípio poder-se-ia afirmar que participam do processo os que integram a relação material, ou – para usar a terminologia sufragada pelo estatuto processual pátrio – que há legitimidade de partes. Porém, se com a instrução restar evidenciado que não é o réu o responsável pelos danos, não se pode dizer, por via de conseqüência, que se encontram em juízo os integrantes da relação obrigacional. Se aquele que foi trazido para o processo e apontado como o responsável não for reconhecido como tal, estar-se-á flagrando que o demandado não integra a relação jurídica afirmada pelo autor como existente, ou seja, é um ilegitimado para estar no processo. Tal assertiva demonstra que, em princípio, só há legitimidade de parte quando existe um direito do autor contra o réu. Não se identificando na pessoa do demandado o responsável pelo prejuízo, não ocorre a identidade de partes que se faz indispensável para a demanda ter um acertamento de mérito.

 

Assim postas essas premissas, possível é afirmar-se que, dirigida pretensão indenizatória contra quem não se considera responsável pela reparação, deve ele alegar sua ilegitimidade passiva. Há por parte do autor a sustentação de integrarem ambos uma relação jurídica do qual ele é o titular e o demandado é o devedor. Negando o réu ser o responsável pelos prejuízos, está afirmando, em última análise, que não integra relação jurídica obrigacional, ou seja, que não deveria estar no processo, pois contra ele o autor não tem nenhum direito, nenhuma ação. Tal linha argumentativa é base de sustentação de ilegitimidade de parte, na busca de um juízo de carência de ação, nos termos preconizados pelo estatuto processual, a ensejar a extinção do processo, forte no inc. VI do art. 267 do Código Civil. Dessa forma, sempre que for alegada ausência de responsabilidade, está o demandado a afirmar que não participa de qualquer relação jurídica material, não tendo nenhuma obrigação indenizatória para com o autor. Dito argumento, portanto, enseja tão-só a busca do encerramento do processo pela alegação de fato extintivo do direito do autor, isto é, inexistência de relação jurídica material entre as partes. Essa deve ser a única linha de defesa do demandado.

 

Na hipótese de o perigo ter sido provocado por pessoa distinta da autora do dano, indispensável é a identificação do culpado, para que contra ele seja dirigida a pretensão reparadora. Apesar dos inúmeros julgados que sustentam a obrigação indenizatória do agente, este não passou de mero instrumento, nada mais do que um longa manus do responsável pelo dano. Tal postura infirma o princípio norteador da responsabilidade civil sufragada pela nossa lei, restando por consagrar a responsabilidade objetiva, com a adoção da teoria do risco, que, no entanto, tem endereço certo à responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público (art. 15 do Código Civil). Também insustentável a posição defendida por Ademir Canali Ferreira de que o dever indenizatório deflui do risco social da situação de perigo e se estabelece objetivamente (“A Exposição ao Perigo como Fato Gerador da Responsabilidade Civil Objetiva”, AJURIS, Porto Alegre, v. 19, pp. 89:100, 1980).

 

Menos ainda de responsabilidade pelo fato da coisa se pode falar. Aguiar Dias afirma que não há nada tão incongruente como expressar em responsabilidade por fato da coisa a que deriva de acidentes ocorridos com veículos (op. cit., p. 31).

 

Inexistindo culpa, não se pode concluir pela responsabilidade extracontratual, pois a colisão ocorreu contra a vontade do réu e sem nenhuma participação sua; sendo mero instrumento da ação de outrem, somente este pode responder pelo fato.

 

Não se trata na hipótese de legítima defesa, abuso de direito ou estado de necessidade – as três categorias a que se refere o art. 160 do Código Civil, cujos arts. 1.519 e 1.520 determinam a reparabilidade, não pela culpa, mas em face da presença do dano, conforme esclarece CLÓVIS BEVILÁQUA (CC, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916, v. 1, p. 471). Mais se afigura a ocorrência de caso fortuito, nos termos do art. 1.058 do CC, conforme sustenta Wilson Mello da Silva: “Se o fato de terceiro referentemente ao que ocasiona um dano, envolve uma clara previsibilidade, necessidade e, sobretudo, marca a ‘inevitabilidade’ sem que, para tanto, intervenha a menor parcela de culpa por parte de quem sofre o impacto consubstanciado pelo fato de terceiro, óbvio é que nenhum motivo haveria para que não se equiparasse ele ao caso fortuito” (“Da responsabilidade Civil Automobilística”, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 105).

 

Assim também se posiciona Silvio Rodrigues, trazendo o seguinte exemplo: “Um motorista de automóvel circula obedecendo a todas as regras de trânsito; é abalroado por caminhão desgovernado, que no choque lança o automóvel contra pedestre. A causa única foi a culpa do motorista do caminhão e que deve responder pelo evento sozinho” (“Direito Civil, Responsabilidade Civil”, Rio de Janeiro, Saraiva, 1977, p. 178).

 

Seguindo essa diretriz, por evidente que não se pode ter como correta a legitimatio ad causam quando dirigida a demanda contra o causador direto do dano, que sob nenhum título tem obrigação reparatória. A solução será o desacolhimento da demanda, ou melhor, o reconhecimento da carência de ação, conforme prefere a lei pátria.

 

O art. 264 do CPC consagra o princípio da estabilidade da demanda, isto é, imodificabilidade quando da angularização por meio do ato citatório. Impõe-se a mantença das mesmas partes, não havendo possibilidade de alteração do elemento subjetivo, a não ser que haja permissão legal.

 

Dentro dessas exceções está o instituto da nomeação à autoria, em que obtém o réu a sua substituição no processo em face do seu errado endereçamento. Corrige tal forma intervencional a ilegitimidade passiva. Porém, dispõe o instituto de contornos nítidos e restritos. Há a possibilidade de buscar o acertamento do pólo passivo tão-só na hipótese de ter sido acionado o detentor ou o mero executor, em vez do proprietário, do seu mandante ou patrão. Não serve a nomeação para livrar o réu da ação indenizatória em delito de acidente de trânsito. Seja qual for a alegação de ausência de responsabilidade, não há como tipificá-lo como mero detentor do bem ou mandatário em cumprimento de ordem alheia, para se encaixar na estrita situação de fâmulo da posse.

 

Também a denunciação da lide não é forma adequada para livrar o demandado da obrigação de pagar a indenização que lhe está sendo cobrada, pois o instituto não se presta para a busca da substituição da parte. Mas incrível a freqüência em que se verifica o uso da denunciação na tentativa de ver-se o demandado substituído no processo, para que fique em seu lugar aquele que aponta como responsável pela obrigação indenizatória. Ao alegar o réu, por exemplo, que não é mais o proprietário do veículo que se envolveu na colisão, em vez de  simplesmente sustentar sua ilegitimidade, fere denunciação com o intuito de que passe a figurar como réu a pessoa para quem alienou o bem. Também a sustentação de falta de culpa por absoluta inércia, ou seja, quando seu envolvimento no evento decorrer de postura culposa de outrem, não pode dar ensejo à denunciação da lide. O que autoriza a litisdenunciação é o exercício concomitante do direito de regresso, que, no entanto, não exime a obrigação de pagar. É outorgado ao denunciante somente um título executivo para cobrar do denunciado o que tiver pago ao autor. Ou seja, aquele que fere a denunciação não pode pretender ser substituído pelo denunciado, para que venha ele a ocupar o seu lugar, pois não tem o instituto o condão de alterar as partes do processo.

 

Ainda, o instituto intervencional com mais possibilidade de ser acionado em delitos de trânsito é o chamamento ao processo, em que há o ingresso de mais réus na demanda. Prevêem os arts. 1.521 e 1.523 do Código Civil a solidariedade na reparação civil pela prática do ato ilícito. Havendo multiplicidade obrigacional, movida a ação somente contra um dos obrigados solidários, o chamamento é a forma adequada de integrar co-responsáveis na ação, na condição de réus. Mais uma vez, no entanto, merece ser lembrado que também não serve este instituto quando a sustentação é de inexistência de obrigação, mas exclusivamente quando a assertiva é de solidariedade obrigacional de ambos frente ao autor.

 

Necessário, pois, um criterioso uso das formas intervencionais para evitar-se uma imposição de pagamento quando não era este o intuito do demandado, pois tentativas de desoneração feitas de forma abusiva podem gerar um mal maior, de ver-se condenado a pagar por culpa que não existe.

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Legitimidade passiva e possibilidades intervencionais nos delitos de trânsito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 1994. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/legitimidade-passiva-e-possibilidades-intervencionais-nos-delitos-de-transito/ Acesso em: 22 dez. 2024