Processo Civil

Audiência Online ou negativa tecnológica de acesso à justiça

Resumo: A pandemia de coronavírus está prestes a virar o pandemônio judicial por conta de possibilidade de decretação de revelia e multa em face de não comparecimento às audiências online.

Palavras-Chave: Acesso à Justiça. Estado Democrático de Direito. Garantias Constitucionais do processo. Ato digital ou virtual. Audiência Online. Direito Processual Civil brasileiro.

No meu entender a alteração trazida pela Lei 13.994/2020 que modificou a Lei 9.099/95 apesar de editada em um momentum extraordinário causado pela pandemia do coronavírus, parece que pretende se estabelecer definitivamente. Amargando-se inúmeras dificuldades enfrentadas pela crise sanitária no Brasil e, consequentemente, com firme agravamento econômico e financeiro, o legislador trouxe uma pseudosolução que, em verdade, significa uma educada negativa de acesso à justiça.

A possibilidade de realização de audiências online de conciliação, de forma não presencial, das demandas já iniciadas perante os Juizados Especiais Cíveis estão mesmo fadadas a prematura extinção, seja porque os interessados não conseguem acesso aos feitos, seja porque boa parte da população menos favorecida, e que tradicionalmente recorre ao Judiciário para se socorrer nas lides, onde são fartamente prejudicados, não possuem acesso à internet e, muitas vezes, nem o mínimo conhecimento necessário para participar da audiência online.

Anteriormente, por meio de resoluções do Conselho Nacional de Justiça que suspenderam a contagem dos prazos até 30 de abril de 2020 e, também, de ter fixado a suspensão de audiências presenciais, uma outra Resolução do CNJ[1] determinou que a contagem de prazos processos dos processos físicos continuam suspensos e, que os prazos dos processos eletrônicos voltassem a transcorrer a partir de 04 de maio de 2020. Ainda determinou que os atos presenciais ficam proibidos de serem designados. Criou-se então um desigual tratamento entre processos físicos e processos eletrônicos.

Apontou-se que na hipótese de não se puder praticar os atos na forma eletrônica ou online, seja por impropriedade técnica de qualquer dos litigantes ou pessoa envolvida no feito (não somente as partes, mas também testemunhas ou terceiros interessados), os atos deverão ser adiados, depois de fundamentada decisão judicial e devidamente certificada nos autos do processo.

Ainda ressaltou que fica vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento online das partes, testemunhas a qualquer localidade fora dos prédios oficiais do Poder Judiciário. Apesar dessa previsão, o busilis está mesmo formado e não solucionado.

Porque a referida lei ainda dispõe que o ato não deve ser designado ou deixar de ser adiado, sem que o juiz analise a possível participação em audiências virtuais ou digitais e, que essa responsabilidade de garantir a intimação e presença dos litigantes em tais feitos, não deve ser repassada aos advogados e aos procuradores.

Há uma notória contradição, pois segundo as recomendações científicas da OMS[2] que impôs o distanciamento social, recomendando evitar-se aglomeração de pessoas e, toda sorte de cuidados como uso de máscaras e utilização de álcool gel para desinfecção, a realização de atos online perde total sentido, pois, dever-se-ia realizar-se o ato online mesmo sem a presença das partes e testemunhas .

Ademais o busilis permanece não apenas quanto a garantia de intimação e presença online dos litigantes e interessados, nem mesmo, por substituir a presença física no fórum, mas, tais audiências serem designadas pressupondo que todos os jurisdicionados possuem aparelho celular inteligente provido de internet móvel ou fixa e, ainda, que tenham endereço digital (e-mail).

Aliás, desde de 2016, quando em 18 de março entrou em vigor o CPC de 2015, muitas vezes, os advogados e advogadas precisavam criar o e-mail[3] para seus clientes, principalmente, os mais idosos, pois tal item passou a integrar obrigatoriamente a qualificação das partes.

Mesmo quando se ouvia do cliente que não saberia acessar e nem teria interesse em fazê-lo, não obstante fornecermos o login e senha e, até prover um pequeno passo-a-passo como fazê-lo. Mas, era e, ainda é, uma realidade muito distante de grande número de pessoas, mesmo numa capital como a do Rio de Janeiro.

Após breve descrição de audiência por meio do aplicativo de HANGOUTS[4], as intimações trazem a séria advertência, que a falta de comparecimento online, importará em revelia, presumindo-se o juízo que são verdadeiras as alegações afirmadas na inicial pelo autor, bem como a aplicação de multa de dois por cento do valor da causa. Apesar de ser mera presunção iuris tantum é capaz de trazer sérios prejuízos aos jurisdicionados.

Deve-se a aplicação de multa, o fato da não obediência a convocação por e-mail constituir ato atentatório contra a Justiça, outra excentricidade, que só agrava a situação do demandante. Não é possível que o não comparecimento a audiência online seja punido com revelia e multa, pois há inúmeros fatores como a instabilidade da internet que no Brasil é uma regra, enquanto que a pobreza e a miséria contundentes de alguns jurisdicionados sejam patentes, porém, cerimoniosamente ignoradas.

Enfim, trata-se de crassa inconstitucionalidade pois viola direito fundamental de acesso à justiça, sem contar, na violação do devido processo legal e, ainda, do princípio do contraditório. Ademais, é inadmissível que a nova Lei autorize o julgamento do mérito pelo juiz competente, pelo simples não atendimento de comparecimento em audiência online.

Lembremos que grande parte da população brasileira atualmente amontoa-se em filas gigantescas em frente a CEF para receber parcos seiscentos reais como auxílio emergencial para sua subsistência e sua família, por isso, não é crível que se possa exigir e, ainda punir, a ausência em audiência online. Isso, sem abordar, que juntamente com a crise sanitária alavanca-se uma crise institucional no Brasil sem precedentes, onde o próprio Presidente da República pleiteia o fechamento do Congresso Nacional e do STF (a mais alta Corte judicial brasileira). Causas francamente inconstitucionais e antidemocráticas. Aliás, era tudo o que país não precisava.

A disposição dessa lei viola e prejudica todas as garantias constitucionais dos jurisdicionados, particularmente, aqueles que se encontrem em situação de vulnerabilidade social, parecendo mesmo serem mais uma estratégia de extinção de feito em massa, para diminuir a carga de trabalho no Judiciário brasileiro.

Ademais, não é para manter um pseudoandamento das demandas propostas perante os Juizados Especiais Cíveis que podemos olvidar de crassas diferenças e desigualdades entre os litigantes, que podem ou não dispor de meios para participação de audiências virtuais. Tanto no aspecto tecnológica como no aspecto educacional e cultural.

A violação de garantias constitucionais do processo principalmente do devido processo legal substancial que pressupõe a presença de requisitos que estabelecem regras que determinam que medida restritiva de direitos só se torna legítima quando for indispensável ao caso concreto e, somente quando, não puder ser substituída por outra medida, que o meio escolhido atinja com eficácia o objetivo desejado e, enfim, que o ato pratico foi efetivo e restringiu flagrantemente os direitos dos jurisdicionados.

Sinceramente aguardo que instituições como a OAB, IAB e tantas outras igualmente interessadas na justiça brasileira venham arguir a total inconstitucionalidade dessa lei que de forma insana e irresponsável pretende atribuir revelia aos menos favorecidos nas demandas perante os Juizados Especiais Cíveis.



[1] A Resolução 314/2020 atualiza a norma anterior, estabelecida em março pelo presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, e que terminaria no dia 30 de abril. … Já os processos que tramitam em meio eletrônico terão os prazos processuais retomados a partir de 4 de maio de 2020.

[2] A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia.

Vide link:  https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875 É a sexta vez na história que uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional é declarada. As outras foram: 25 de abril de 2009 – pandemia de H1N1; 5 de maio de 2014 – disseminação internacional de poliovírus; 8 agosto de 2014 – surto de Ebola na África Ocidental; 1 de fevereiro de 2016 – vírus zika e aumento de casos de microcefalia e outras malformações congênitas; 18 maio de 2018 – surto de ebola na República Democrática do Congo.

[3] Correio eletrônico ou simplesmente e-mail se refere a método que permite compor, enviar e receber mensagens através de sistemas eletrônicos de comunicação. O correio eletrônico é mais antigo que a própria internet. Aliás, o mesmo foi um dos principais motivos para a criação da grande rede dos computadores. Acredita-se que os primeiros sistemas de e-mail desenvolvidos foram o Q32 da SDC (System Development Corporation) e o CTSS do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Os e-mails são enviados e recebidos por meio de um sistema de correio eletrônico, o qual utiliza um protocolo de internet para permitir o encaminhamento dos dados. Basicamente, existem dois tipos de e-mails: o Pop3 e o Webmail.

[4] É uma interface com recursos variados para realizar videoconferência, ou bate-papo por áudio ou texto. Em março de 2017, a Google anunciou que o Hangouts seria desenvolvido como um produto voltado para negócios, sendo a marca Hangouts dividida em dois produtos principais: Hangouts Chat e Hangouts Meet

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Audiência Online ou negativa tecnológica de acesso à justiça. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/audiencia-online-ou-negativa-tecnologica-de-acesso-a-justica/ Acesso em: 20 nov. 2024