Preocupa-me, sobremaneira, a forma açodada como tem o Governo Federal trabalhado para impor um projeto de alto risco e que pode agravar a “doença” do Rio São Francisco – já padecendo, na foz, de recuo das águas, por insuficiência de vazão. A ANA (Agência Nacional de Água), agência encarregada expedir o certificado de sustentabilidade hídrica e de conceder a outorga de uso definitiva, demitiu-se de colher os dados para elaboração do balanço hídrico indispensável para aferir se a obra é, técnica e economicamente, viável. Passou essa incumbência para o Ministério da Integração Nacional, que, por sua vez, oficiou os próprios Estados para que enviassem demonstrativos dos valores de demanda e de oferta hídricas em seus territórios.
Ocorre que tal solicitação foi dirigida, EXCLUSIVAMENTE, AOS ESTADOS DAS BACIAS RECEPTORAS, OU SEJA, ÀS UNIDADES DA FEDERAÇÃO PRETENSAMENTE BENEFICIÁRIAS DA EVENTUAL TRANSPOSIÇÃO, SEM CONSULTAR OS ESTADOS INTEGRANTES DA BACIA DOADORA DA ÁGUA, CERTAMENTE OS ÚNICOS PREJUDICADOS PELO PROJETO DE TRANSPOSIÇÂO, DA FORMA COMO ELABORADO.
Ora, embora não seja técnico na matéria, parece-me evidente que a falta de demonstrativos relativos à demanda e oferta hídricas dos Estados doadores inviabiliza a elaboração de um balanço hídrico minimamente confiável, o que pode lançar o país em desastre ambiental e econômico sem precedentes.
Ademais, do ponto de vista jurídico, nada justifica o tratamento diferenciado que o Ministério da Integração Nacional deu aos Estados beneficiários em relação aos Estados doadores.
Por outro lado, a obra foi orçada para permitir, excepcionalmente, a captação da vazão máxima diária de 114,3 m3/s e instantânea de 127m3/s, – a depender de um nível de água do reservatório de Sobradinho que se verifica de 7 em 7 anos – e para permitir a captação de uma vazão normal de 26,4m3/s, deixando claro que se trata de obra superdimensionada !
Note-se que os dados que vêm de ser coletados pelo Ministério da Integração Nacional junto aos Estados integrantes das bacias receptoras carecem de consistência em relação àqueles constantes do Estudo de Impacto Ambiental ( EIA RIMA) – que já haviam sido aprovados – e a outros dados apresentados por esses mesmos Estados em publicações oficiais.
A falta de consulta aos Estados doadores poderá levar Minas e Bahia a adotar, em relação aos rios estaduais que alimentam o São Francisco, critérios de utilização em benefício exclusivo de sua população, tornando a obra absolutamente inútil.
Enfim, a transposição afigura-se obra desnecessária – até por que órgãos técnicos nacionais e internacionais já demonstraram que os Estados das bacias receptoras dispõem de oferta de água suficiente – que poderá aumentar a doença do “Velho Chico”, provocar uma verdadeira catástrofe ambiental, concorrer para uma drástica redução da oferta de energia no nordeste, sem falar no previsível risco de prejuízos aos cofres públicos federal, estaduais e municipais.
Passa, por outro lado, sobre a legislação que instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (Lei 9984/00), ao desrespeitar as prioridades, limites e critérios de outorga para uso das águas estabelecidos no Plano Hídrico da Bacia do São Francisco, elaborado pelo respectivo Comitê.
Aliás, a competência do Comitê da Bacia do São Francisco – que já vinha elaborando projeto de transposição, respeitados os parâmetros do Plano de recursos hídricos por ele elaborado – foi usurpada pelo Conselho Nacional para aprovação do Projeto do Governo Federal.
É de se lembrar que os chineses levaram 50 anos para decidir a transposição do Rio Amarelo, enquanto o Governo Lula pretende dar início a obra de tal envergadura – e de resultado tão duvidoso – nos poucos meses que ainda restam de seu governo. Estou convencido de que matéria dessa magnitude só poderia ser deflagrada em inicio de mandato, com ampla discussão, coleta e análise dos dados de todos os Estados envolvidos, inclusive os dos doadores – que decididamente não foram colhidos – e após a revitalização do rio.
O Governo Lula precisa, de rigor, não se deixar seduzir por medidas de palanque, mas que são capazes de prejudicar grandemente o país e pôr em xeque o pacto federativo. Ele é Presidente do Brasil, não devendo tratar os Estados diferentemente, de modo a privilegiar alguns em detrimento de outros e de toda a federação.
* Ives Gandra da Silva Martins, Advogado. Doutor em Direito. Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária.