Política

Salman Rushdie não está totalmente certo

Salman Rushdie não está totalmente certo

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

O conhecido escritor indiano, que deve ter seus méritos literários — afinal, ganhou, com seu “Versos Satânicos”, o Whitbread Prize —, em entrevista de 10-9-2006 ao jornal “O Estado de S. Paulo”, fez algumas assertivas sobre o terrorismo que não refletem a realidade com total isenção.

 

No seu caso, alguma distorção seria esperável. Teve que viver escondido, por quase dez anos, com a cabeça a prêmio. Isso porque, na referida obra, descreveu o profeta Maomé de modo irreverente. O “ayatollah” Khomeini o condenou por “apostasia” e ofereceu uma recompensa de três milhões de dólares para quem o matasse. Não fosse a eficiente proteção do serviço secreto britânico só poderia ter dado a entrevista em sessão espírita. Se o tema “terrorismo” é por si só espinhoso, imagine-se opinar sobre o mesmo quem passou vários anos sobressaltado com a iminência de ser morto por fanáticos.

 

Falando sobre o assunto, Rushdie afirmou que “Terror é glamour e fascínio pela morte”, limitando excessivamente o significado da violência. No ”bolo” do terror, desconsiderou totalmente a “farinha”, ou pelo menos os “ovos” — componente menor — do indigesto produto que mantém em sobressalto o mundo ocidental. Refiro-me à sensação de sofrer ou presenciar a injustiça, por parte de muitos terroristas, que assim agem por pensar que não dispõem de outro tipo de reação.

 

Quando patriotas mais combativos, no decorrer dos séculos, reagiam contra invasores de seus países, não se pode dizer que agiam apenas motivados pelo “glamour”. Muito menos que sentissem apenas “fascínio pela morte”. Isso é explicação de escritor, de poeta, de quem se preocupa muito mais com o manejo atraente das palavras, do que com o verdade mais profunda do que escreve. Todos os países que foram invadidos e permaneceram sob domínio militar de outros, manifestaram reações que, para os invasores significavam “terrorismo”, ainda que com outro nome. Como já disse antes, em artigo neste site, espanhóis matavam sorrateiramente soldados franceses quando da invasão napoleônica; civis franceses (“maquis”), inconformados com a ocupação nazista, reagiram à ocupação sem esperar ordem do governo francês, ordem que não poderia mesmo ser dada; o Marechal Tito, na Iugoslávia, também combateu, com guerrilha, às imposições vindas de fora de seu país; os judeus também recorreram ao terrorismo — no movimento Irgun Zvai Leumi, liderado por Menachem Begin —, contra o domínio britânico na Palestina, por volta de 1942. E se os Estados Unidos — por remotíssima, descabelada hipótese — tivessem sido invadidos pela União Soviética, no tempo da Guerra Fria, milhares de americanos tornar-se-iam “terroristas”, em linguagem russa.

 

Rushdie poderia alegar, em resposta, que nesses casos concretos, a violência terrorista foi dirigida apenas contra militares, as forças ocupantes, não contra a população civil. Ocorre que a partir da Segunda Guerra mundial o conceito de “inimigo” sofreu imenso alargamento. Salvo engano, foi Hitler quem “re-inaugurou” algo que já existira na antiguidade mas começava a ser contida com tratados internacionais: a “guerra total”. Hitler ordenou o bombardeio indiscriminado de cidades inglesas, matando muito mais civis que militares. E os Aliados — ingleses e americanos — pagaram na mesma moeda, também sem o mínimo respeito pela vida de milhares de pessoas. A cidade alemã de Dresden — chamada de “Florença do Elba” — em 13 de fevereiro de 1945, quando a guerra contra o nazismo já estava praticamente ganha, foi arrasada pelos bombardeios aliados. Em uma só noite, último dia do carnaval, morreram cerca de dez mil pessoas, restando 15 quilômetros quadrados de escombros. Isso tudo sem falarmos nas duas bombas atômicas, contra Hiroshima e Nagasaki. Não seria isso uma forma de “terrorismo’ contra “terrorismo”. Não daria para esperar o efeito psicológico da primeira bomba, antes de lançar a segunda?

 

Quando os palestinos reagiram, matando, contra o retorno de judeus à Palestina os israelitas, não conseguindo identificar individualmente os terroristas que cometiam os atentados, partiram também para a represália indiscriminada, de certa forma também “terrorista”, bombardeando casas e quarteirões, matando tanto combatentes quanto a população civil.

 

Por que digo tudo isso? Porque quem se considera lesado, vitimado por algum tipo de injustiça e violência, e constatando que não existe uma justiça mundial — a Corte Internacional de Justiça, da ONU, profere decisões cuja obediência depende, ridiculamente, da boa vontade “soberana” do país condenado — não vê outro modo de reagir a não ser pelo terrorismo. “Se o inimigo nos ataca de forma indiscriminada, matando por atacado, porque não reagir da mesma forma?”, pensa, tanto o poder militar mais forte quanto o menos forte, o “terrorista”.

 

Rushdie, na entrevista, disse que “…uma coisa devemos ter claro: o terrorismo não é a busca de objetivos legítimos por algum tipo de meio ilegítimo”. E acrescenta: “Se o conflito entre israelenses e palestinos, por exemplo, fosse milagrosamente resolvido de um dia para outro, acredito que não veríamos uma diminuição dos ataques”.

 

Rushdie acredita errado. Se o conflito fosse resolvido, ou por acordo que satisfizesse ambas as partes, ou por decisão superior — de uma corte internacional, com poder de impor o cumprimento do julgado — e com indenizações às partes que perderam território na decisão, não haveria motivo para os árabes se auto-explodirem. Ninguém, no seu juízo perfeito, se mata por vaidade, por glamour. O jovem — o suicida geralmente é jovem — que se oferece para se dilacerar certamente carrega dentro de si uma forte carga de ódio contra alguma coisa. Remova-se essa “coisa”, esse ódio, e o instinto natural da vida fará o seu papel usual. Mas para remoção do ódio é preciso que o jovem sinta que de alguma forma a justiça prevaleceu.

 

Em suma: se o terrorismo tem, de fato, muitos componentes, como diz Rushdie, a melhor maneira de combatê-lo não será apenas com a violência, que incita novas violências. Será mais inteligente “desmontá-lo”, “desconstruí-lo”, com fortes injeções de justiça verdadeira. Notadamente na questão palestina, o principal nutriente do ódio islâmico.

 

Algum eufórico e milionário fabricante de armas poderá argumentar: “Mas o que dizer das mensagens de Osama bin Laden”, que pretende abertamente destruir a civilização ocidental e apenas incidentemente se mostra condoído do sofrimento palestino?”

 

Bin Laden é um caso à parte, doentio, patológico. Se fosse possível nomear uma comissão de psiquiatras para ler, ouvir e analisar todas as suas manifestações, penso que parte desses especialistas — os mais velhos — apostariam na hipótese de megalomania, talvez decorrente de sífilis cerebral não tratada. Talvez. Pediriam, inutilmente, uma amostra de seu sangue, para análise. Tais exames mostram até quem teve a doença, embora esteja curado.

 

O leitor pensa que estou brincando. Posso esta errado — a sífilis saiu de moda —, mas não brincando. A história nos revela inúmeros casos de megalomania decorrente de sífilis cerebral (Nietsche, dizem; Mussolini; Al Capone, com certeza). Alguns médicos, após a derrota da Alemanha, tentavam explicar alguns disparates políticos de Hitler dizendo que o Führer, quando bem jovem, teria sido contaminado por uma judia, transformando a simples antipatia ou estranheza contra os judeus em ódio mortal. Seus atos impensados, declarando guerra contra todos, pretendendo dominar o mundo e instaurar o “Reich” de mil anos, recusando-se a encarar a realidade — mesmo a Alemanha já arrasada —, talvez sejam bons indícios. Quando ele ficou provisoriamente cego, em combate, soldado na I Grande Guerra, um médico que o examinou disse que sua cegueira não proviera dos gases venenosos lançados pelos ingleses. Disse que a cegueira decorria da sífilis e que se ela fosse tratada, recuperaria a visão. Dito e feito.

 

Rushdie afirma, na entrevista, que não adianta discutir com Bin Laden, tentar convencê-lo de que está errado. Concordo, será inútil. É um fanático, com ou sem treponema pallidum. Mas não será isso que deve levar o mundo ocidental e encarar o terrorismo como estrita e gratuita manifestação do mal. Esse mal tem raízes em algo mais sério. Se os focos de injustiça — principalmente na questão palestina, e sem querer esmagar os judeus — forem removidos, a platéia de Bin Laden será muito menos receptiva às suas pregações de ódio descabelado. Compare-se o que aconteceu na Alemanha, no intervalo entre as duas grandes guerras. Não houvesse injustiças gritantes no Tratado de Versalhes, Hitler, por mais eloqüente que fosse, não teria reunido tanto poder.

 

Terroristas apenas aproveitadores, à busca de glamour, avessos à uma vida normal, também existem. Mas se lhes faltar a “matéria prima” básica — a injustiça, o sofrimento coletivo — logo perdem audiência. Passam a ser encarados como “gangsters”. Questão de polícia, não de política.

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Salman Rushdie não está totalmente certo. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/salman-ruschdie/ Acesso em: 22 nov. 2024